Excerto da aula 4 da Quarentena sobre Jorge Luis Borges
Haverá só que
esclarecer o seguinte. O nome do grande escritor argentino Jorge Luis Borges
escreve-se sem acentos (este «Luis» é em espanhol, é claro). No seu livro Ficções,
Borges inseriu um conto, «Análise da obra de Herbert Quain», que Saramago
aproveita porque põe Reis a ler uma obra que teria sido escrita por esse protagonista
de texto de Borges, The God of the
Labyrinth. No conto de
Borges esse livro teria desaparecido, injustamente ignorado, Saramago recupera
essa obra inexistente.
Lê o conto de
Jorge Luis Borges de que falámos, «Análise da obra de Herbert Quain» (na
tradução brasileira: «Exame da obra de Herbert Quain»), que te dou em texto
copiado deste PDF de Ficções: http://www.mkmouse.com.br/livros/ficcoes-jorgeluisborges.pdf (da editora Teorema, a quem agradeço e peço que
não me processe — é pouco provável, porque, salvo erro, a Teorema já faliu, e
não se diga que foi por haver quem lhe andasse a ler à borla os PDF, até porque
tenho aí as obras completas do Borges só que estão com muitos volumes em cima e
dava muito trabalho desfazer essa toore de livros).
Dentro do PDF o conto
que nos interessa está na pp. 42-46, mas sugiro que o leias a partir da reprodução
que pus imediatamente a seguir (o PDF não discrimina o itálico das referências
a livros, o que procurei fazer; em compensação, na minha versão, a parte da
estrutura, matemática, da obra não está boa [neste PDF da Globo fica bem: https://teoriadoespacourbano.files.wordpress.com/2013/02/borges-ficc3a7c3b5es.pdf — pp. 34-37]):
Análise da obra de Herbert Quain
Herbert Quain morreu
em Roscomrnon; verifiquei sem espanto que o Suplemento Literário do Times
mal lhe dedica meia coluna de piedade necrológica, em que não há epíteto
laudatório que não esteja corrigido (ou seriamente admoestado) por um advérbio.
O Spectator, no número a seu respeito, é sem dúvida menos lacónico e
talvez até mais cordial, mas equipara o primeiro livro de Quain — The God of
the Labyrinth — a um de Mrs. Agatha Christie e outros aos de Gertrude
Stein: evocações que ninguém julgará inevitáveis e que não alegrariam o
defunto. Este, aliás, nunca se julgou genial; nem sequer nas noites peripatéticas
de conversação literária, em que o homem que já deu que fazer aos prelos brinca
invariavelmente a ser Monsieur Teste ou o doutor Samuel Johnson... Apercebia-se
com toda a lucidez da condição experimental dos seus livros: admiráveis talvez
pelo novo e por certa lacónica probidade, mas não pelas virtudes da paixão. “Sou
como as odes de Crowley”, escreveu-me de Longford a seis de Março de 1939. “Não
pertenço à arte, mas à simples história da arte”. Para ele, não havia
disciplina inferior à história.
Repeti uma modéstia
de Herbert Quain; naturalmente, esta modéstia não esgota o seu pensamento.
Flaubert e Henry James habituaram-nos a supor que as obras de arte são raras e
de execução laboriosa; o século dezasseis (recordemos a Viagem do Parnaso, recordemos
o destino de Shakespeare) não compartilhava desta desconsolada opinião. Herbert
Quain também não. Achava que a boa literatura é muito comum e que quase não há
diálogo de rua que não consiga sê-la. Também achava que o facto estético não
pode prescindir de nenhum elemento de espanto e que é difícil espantar-se de
cor. Deplorava com sorridente sinceridade a servil e obstinada conservação de
livros pretéritos... Ignoro se a sua vaga teoria é justificável; sei que os
seus livros anseiam demasiado pelo espanto.
Deploro ter
emprestado a uma senhora, irreversivelmente, o primeiro que publicou. Já
declarei que se trata de um romance policial: The God of the Labyrinth;
posso agradecer que o editor tenha proposto a sua venda nos últimos dias de
Novembro de 1933. Nos primeiros de Dezembro, as agradáveis e árduas involuções
do Siamese Twin Mistery ocuparam Londres e Nova Iorque; eu prefiro
atribuir a essa coincidência ruinosa o fracasso do romance do nosso amigo. E
também (e vou ser totalmente sincero) à sua execução deficiente e à vã e
frígida pompa de certas descrições do mar. Ao cabo de sete anos, é-me
impossível recuperar os pormenores da ação; eis o seu plano; tal como agora o
empobrece (tal como agora o purifica) o meu esquecimento. Há um indecifrável
assassinato nas páginas iniciais, uma lenta discussão nas intermédias, e uma
solução nas últimas. Já esclarecido o enigma, há um parágrafo longo e
retrospetivo que contém esta frase: “Todos julgaram que o encontro dos dois
jogadores de xadrez havia sido casual.” Esta frase dá a entender que a solução
é errónea. O leitor, inquieto, relê os capítulos pertinentes e descobre outra
solução, que é a verdadeira. O leitor deste livro singular é mais perspicaz que
o detetive.
Ainda mais heterodoxo
é o “romance regressivo e ramificado” April March, cuja terceira (e
única) parte é de 1936. Ninguém, ao considerar este romance, se nega a
descobrir que é um jogo; permitam-me recordar que o autor nunca o considerou
outra coisa. “Eu reivindico para esta obra”, ouvi-o dizer, “os aspetos
essenciais de todo o jogo: a simetria, as leis arbitrárias e o tédio”. Até o
nome é um débil calembour: não significa “Marcha de Abril” mas sim,
literalmente, “Abril Março”. Alguém sentiu nas suas páginas um eco das
doutrinas de Dunne; o prólogo de Quain prefere evocar esse inverso mundo de
Bradley, em que a morte antecede o nascimento e a cicatriz a ferida e a ferida
o golpe (Appearance and Reality, 1897, página 215)1.
Os mundos que propõe April March não são regressivos; regressiva é a
maneira de historiá-los. Regressiva e ramificada, como já disse.
_____________
1. {Nota no pé da página} Ai da
erudição de Herbert Quain, ai da página 215 de um livro de 1897. Um
interlocutor do Político, de Platão, já descreveu uma regressão
parecida: a dos Filhos da Terra ou Autóctones que, submetidos à influência de
uma rotação inversa do cosmos, passaram da velhice à maturidade, da maturidade
à infância, e da infância à desaparição e ao nada. Também Teopompo na sua Filípica,
fala de certos frutos boreais que originam em quem os come o mesmo processo
retrógrado... Mais interessante é imaginar uma inversão do Tempo: um estado em
que recordávamos o porvir e ignorávamos, ou só pressentíamos, o passado. Cf.
o canto décimo do Inferno, versos 97-102, onde se comparam a visäo profética e
o presbitismo.
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Integram a obra treze
capítulos. O primeiro refere o ambíguo diálogo de uns desconhecidos numa gare
de estação. O segundo refere os acontecimentos da véspera do primeiro. O
terceiro, também retrógrado, refere os acontecimentos de outra possível véspera
do primeiro; o quarto, os de outra. Cada uma destas três vésperas (que
rigorosamente se excluem) ramifica-se noutras três vésperas, de índole muito
diferente. A obra total consta, portanto, de nove novelas; cada novela, de três
longos capítulos. Destas novelas, uma é de carácter simbólico; outra,
sobrenatural; outra, policial; outra, psicológica; outra, comunista; outra,
anticomunista, etc. Talvez um esquema ajude a compreender a estrutura.
x1 y1 x3 x4 x y2 x5 x6 x7 y3 x8 x9 {Não está bem transcrito este esquema}
Desta estrutura
pode-se repetir o que declarou Schopenhauer das doze categorias kantianas: “sacrifica
tudo a um furor simétrico”. Previsivelmente, um ou outro dos nove contos é
indigno de Quain; o melhor não é o que ele ao princípio ideou, o x 4; é
o de natureza fantástica, o x 9. Outros são estragados por graçolas
lânguidas e por pseudoprecisões inúteis. Quem os ler por ordem cronológica (por
exemplo: x 3, y 1, z) perde o sabor peculiar do estranho
livro. Dois contos — o x 7 e o x 8 — carecem de valor individual;
é a justaposição que lhes dá eficácia... Não sei se deva recordar que, já
depois de publicado April March, Quain se arrependeu da ordem ternária e
previu que os homens que o imitassem optariam pela binária
x1 y1 x2 z x3 y2 x4 {Não está bem transcrito este esquema}
e os demiurgos
e os deuses pelo infinito: infinitas histórias, infinitamente ramificadas.
Muito diferente, mas
retrospetiva também, é a comédia heroica em dois actos The Secret Mirror.
Nas obras já resumidas, a complexidade formal tinha entorpecido a imaginação do
autor; aqui, a sua evolução é mais livre. O primeiro ato (o mais extenso)
passa-se na casa de campo do general Thrale, C.I.E., perto de Melton Mowbray. O
invisível centro da trama é Miss Ulrica Thrale, filha mais velha do general.
Através de algum diálogo adivinhamo-la amazona e altiva; suspeitamos que ela
não costuma frequentar a literatura; os jornais anunciam o seu noivado com o
duque de Rutland; os jornais desmentem o noivado. Venera-a um autor dramático,
Wilfred Quarles; ela concedeu-lhe uma ou outra vez um beijo distraído. As
personagens são de vasta fortuna e de antigo sangue; os afetos, nobres embora
veementes; o diálogo parece hesitar entre a mera vaniloquência de Bulwer-Lytton
e os epigramas de Wilde ou de Mr. Philip Guedalla. Há um rouxinol e uma noite;
há um duelo secreto debaixo de um alpendre. (Quase totalmente impercetíveis, há
uma ou outra curiosa contradição, há pormenores sórdidos.) As personagens do
primeiro ato reaparecem no segundo — com outros nomes. O «autor dramático»
Wilfred Quarles é um caixeiro-viajante de Liverpool; o seu verdadeiro nome,
John William Quigley. Miss Thrale existe; Quigley nunca a viu, porém
morbidamente colecciona fotografias suas do Tatler ou do Sketch.
Quigley é autor do primeiro ato. A inverosímil ou improvável “casa de campo” é
a pensão judaico-irlandesa em que vive, transformada e exaltada por ele... A
trama dos atos é paralela, mas no segundo tudo é levemente horrível, tudo se
adia ou se frustra. Quando The Secret Mirror se estreou, a crítica
pronunciou os nomes de Freud e de Julien Green. A menção do primeiro parece-me
absolutamente injustificada.
A fama divulgou que The
Secret Mirror era uma comédia freudiana; esta interpretação propícia (e
falaciosa) determinou o seu êxito. Infelizmente, Quain já tinha completado os
quarenta anos; estava aclimatado ao fracasso e não se resignava com doçura a
uma mudança de regime. Resolveu desforrar-se. Em fins de 1939 publicou Statements,
porventura o mais original dos seus livros, sem dúvida o menos gabado e o mais
secreto. Quain costumava argumentar que os leitores eram uma espécie já
extinta. “Não há europeu (arrazoava ele) que não seja um escritor, em potência
ou em ato”. Afirmava também que, das diversas felicidades que pode fornecer a
literatura, a mais elevada era a invenção. Já que nem todos são capazes dessa
felicidade, muitos terão de se contentar com simulacros. Foi para esses “escritores
imperfeitos”, cujo nome é legião, que Quain redigiu os oito contos do livro Statements.
Cada um deles prefigura ou promete um bom argumento, voluntariamente frustrado
pelo autor. Uns — que não os melhores — insinuam dois argumentos. O leitor,
distraído pela vaidade, crê tê-los inventado. Do terceiro, The Rose of
Yesterday, cometi a ingenuidade de extrair “As ruínas circulares”, que é
uma das narrativas do livro O jardim dos caminhos que se bifurcam.
1941
Jorge Luis Borges é um autor que lhes recomendo. Muitas vezes, como
Pessoa, brinca «aos autores inventados», criando bibliografias, biografias,
sinopses, etc., de escritores e livros que nunca existiram.
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