Aula 25 da Quarentena (= 153)
Aula 153 [= 25 da Quarentena] (5/jun
[9.ª, 5.ª, 4.ª, 3.ª]) Começo por acrescentar
uns comentários a tarefas que devolvi ou que fizeram recentemente (excertos diversos
com menção de heterónimos em O Ano da Morte de Ricardo Reis e enquadramento no
resto da obra [A]; comentário a poema de Pessoa em torno de Camilo Pessanha
[B]; questionário sobre processos fonológicos, texto do cerco de Badajoz,
ou Badalhouce, e «O Menino da sua Mãe» [C]).
A — O excerto 2 referia o
telegrama que fora afinal o pretexto para Reis atravessar o Atlântico,
regressando a Lisboa. Esse telegrama fora-lhe enviado por Álvaro de Campos (reparem
no acento — tantos que o puseram mal! — e no «de»), que anunciava duas coisas:
a morte de Pessoa; e a sua, de Campos, partida para Glasgow. Podiam ter
lembrado que, segundo a carta de Pessoa a Adolfo Casais Monteiro a explicar a génese dos heterónimos,
Campos se licenciara em Engenharia Naval naquela cidade escocesa (não haveria
outra ligação à cidade); quanto a mim, Saramago foi até pouco imaginativo neste
ponto: eu veria Campos a emigrar para cidades mais cosmopolitas ou mais
industriais ou a viajar. Por vezes fizeram confusão, pensando que se tratava de
carta, o que é natural pois que a vossa geração já não lidou com telegramas. A
seguir ponho um exemplo de telegrama com o aspeto que tinham (mas faltam os
STOP que substituíam os pontos finais). O telegrama é apropriado a Campos
(distância, modernidade, imediatismo). Era importante dizer que se trata do
«reencontro» de Reis com Pessoa, logo nos primeiros capítulos do livro. O
telegrama que fui buscar à net tem que ver a Sociedade Portuguesa de Escritores
e é assinado por Delfim Santos, filósofo.
No excerto
3 referia-se um verso do «Poema em linha reta», de Álvaro de Campos: «eu
que tenho sido cómico às criadas de hotel». Veja-se o poema todo, que revela tédio,
depressão, irritação, em torno de discussão acerca de ridículo e vileza, e, por
isso, não é inadequado a um momento em que Reis parece um pouco ridículo por
namoriscar uma Lídia muito mais nova e que, no fundo, o servia). O «Poema em
linha reta» não deixa de ter laivos do Campos mais vertiginoso («arre», «porrada»,
a extensão de alguns dos versos, os paralelismos repetições-enumerações, a
apóstrofe «Ó príncipe»). Mas a ironia amarga é mais a do Campos abúlico do que
do Campos sensacionista-futurista.
POEMA EM
LINHA RETA
Nunca
conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os
meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas
vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas
vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente
sujo,
Eu, que
tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que
tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho
enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho
sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho
sofrido enxovalhos e calado,
Que quando
não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de
hotel,
Eu, que
tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que
tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que,
quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da
possibilidade do soco;
Eu, que
tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico
que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço
e que fala comigo
Nunca teve
um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi
senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...
Quem me dera
ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse
não um pecado, mas uma infâmia;
Que
contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são
todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há
neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes,
meus irmãos,
Arre, estou
farto de semideuses!
Onde é que
há gente no mundo?
Então sou só
eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as
mulheres não os terem amado,
Podem ter
sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que
tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso
eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que
tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no
sentido mesquinho e infame da vileza.
Lembram-se
decerto desta versão incluída na telenovela O Clone, mas que omite o
verso em causa (provavelmente, «criadas de hotel» não seria descodificado em
português do Brasil? será isso? ajudem-me, meus caros alunos brasileiros), que
vimos em aula:
O excerto
5 volta a jogar com elementos que só poderiam ser bebidos na carta a Adolfo
Casais Monteiro e, mais concretamente, na passagem com a biografia dos
heterónimos (a morte, cedo, de Caeiro, em 1915); aproveita-se também o miradouro
de Santa Catarina (Adamastor, paisagem avistada até Montijo), o que permitiria
situar o passo já nessa segunda parte passada em casa própria. Há ainda
referência a filmes da época: além de uma experiência no São Luís — que, já se
sabe, fica na rua da PVDE, a António Maria Pereira — de cinema tridimensional,
os filmes — que passaram efetivamente em 1936, em Lisboa — O Pão Nosso de
Cada Dia, de King Vidor, e o ainda mais célebre Os trinta e nove degraus,
de Alfred Hitchcock. Deem uma vista de olhos ao início destes dois:
O Pão Nosso de Cada Dia (só começa cerca dos cinco minutos):
Os Trinta e Nove Degraus
No excerto
7, a menção às notícias da morte de Pessoa plasmadas nos jornais permitia
situarmos o passo na parte inicial do romance. Podiam citar a circunstância de
Pessoa ser então visto sobretudo como o autor de Mensagem, a única obra
em português que publicara (e aliás um ano antes apenas). Há aí
ainda uma brincadeira com Ricardo Reis não poder ser citado como falecido também
(«já cá faltava o erro»).
O excerto
8 foca-se numa obra de escritor-pintor amigo de Fernando Pessoa — Nome
de Guerra, de José de Almada Negreiros. Ora, é verdade que este livro de
Almada só foi publicado em 1938; portanto nem Reis nem, muito menos, Caeiro
seriam «deste mundo quando Almada Negreiros publicar a sua obra».
B — Sobre a correção do comentário
ao poema de Pessoa em torno de Pessanha, queria só dizer-lhes que não se pode
referir este poeta por «Camilo», porque esse nome, assim sem mais nada, é
associado de imediato a Camilo Castelo Branco, autor de Amor de Perdição.
Terá de ser «Pessanha», «Camilo Pessanha», «o autor de Clepsidra» (já agora, para Clepsidra).
E fica aqui apenas um bom comentário, exemplo de muitos que poderia deixar
aqui:
Neste poema de Fernando Pessoa ortónimo, o sujeito poético inveja Pessanha
pela forma como escreve utilizando a intuição e não a razão ou a lógica («Ah
como eu quereria / ser como aqueles em quem a inspiração é já poesia») e pelo
modo como consegue compatibilizar o sentir e o pensar («Como sentias? Por que
modo / O que em ti é matéria estranha / Era teu natural, teu todo?»). Fernando
Pessoa e, com ele, o sujeito poético consideram que o sentir e o pensar são
sentimentos incompatíveis, uma vez que não consegueria sentir sem pensar naquilo
que se está a sentir e, consequentemente, deixar de o sentir.
O «eu» do poema também inveja a forma como Pessanha conseguiu mergulhar na
introspeção do eu, sem nunca se confrontar com o seu ser plural e por isso não
se fragmentar («E a forma toda a alma tem!...»). Para além disso, o sujeito
lírico considera que Pessanha, contrariamente à teoria pessoana do fingimento
poético, que defende que a poesia deve ser a expressão transfigurada do rasto
de uma emoção, escreve sobre o que sente sem ter de dessa emoção se distanciar
(«E os teus versos são / Como o que passa no sonhar / E que é melhor que uma
visão / Sem que haja de que despertar»).
Inês C. (12.º
3.ª)
C — No questionário, a pergunta com
mais problemas foi a sobre «lugar» (< localem).
Nas estatísticas, vi que os setenta e tal que responderam ora escolheram a
apócope de um suposto verbo «lugare» (49%) ora, como era o caso, a
dissimilação (outros 49%). Com efeito, aquele /-r/ é para que não haja dois sons
iguais /l-/ e /-l/ (o último dissimila-se, isto é, diferencia-se do outro, em /r/).
Estava explicado nos slides: localem
> locale > local > logal > logar > lugar.
A
segunda pergunta com menos respostas acertadas (mas já com 65%, o que é bem
diferente) foi a de «Guernica». Sim, foi um episódio da guerra civil de Espanha
mas concretizado por alemães (apoiantes das tropas de Franco). Esta localidade
basca, bombardeada, ficou famosa também pelo quadro de Picasso. Sobre
«Guernica», sugiro estes vídeos:
Para
arrumarmos melhor estas matérias acerca da história do português e dos processos
fonológicos, pedia-lhes que experimentassem ir resolvendo as seguintes duas
fichas do Caderno de atividades. Primeiro, tentem mesmo resolver cada pergunta,
respondendo; e vejam depois as soluções que vêm logo a seguir.
Agora,
leiam as soluções propostas pelo próprio manual:
A
seguir ponho links de quatro aulas que fiz para a Universidade Aberta há muitos
anos, no início dos anos noventa. Nessa altura dava aulas na Faculdade de
Letras de Lisboa e encomendaram-me estes quatro programas sobre história da
língua portuguesa. O vídeo estava nos seus primórdios (as montagens não eram
completamente computadorizadas, ainda se trabalhava com VHS e Beta).
Estes
programas passavam ao sábado de manhã, na RTP-2, e os alunos da Aberta
viam-nos, e espero que não tirassem apontamentos, porque há partes bastante
amalucadas. Lembro-me de às noites de sexta-feira estarmos até às seis ou sete da
manhã a fechar o programa que era para ser emitido às oito e tal (um pouco como
agora estou a tentar acabar esta aula para ficar pronta para daqui a uma hora).
Não
percam muito tempo a vê-los mas vale a pena relancearem estes partes, por terem
a ver com as matérias que temos estado a dar:
No programa
4, os primeiros minutos referem os textos portugueses mais antigos e decorrem
no ambiente da «Notícia de Torto» (ca. 1214), entre Braga e Barcelos. Note-se
que na altura ainda não se tinha encontrado a «Notícia de Fiadores» (1175). O
locutor vai com uma pressa extraordinária, o que tem uma explicação. Não se montava o filme em função do
texto, era o texto que era escrito (por mim)
para coincidir com as imagens e o pobre do locutor tinha de ler de modo a não
se atrasar relativamente às imagens. Enfim... Deste programa vejam só até ao minuto 5 e pouco:
No programa 2, fala-se dos dialetos
portugueses, nos minutos 12,20 a 20 (mas é tudo demasiado denso, académico; não valerá a pena):
No programa 1, aborda-se a mudança
linguística e o português no mundo. Talvez seja útil já quase no fim, cerca de 18,40:
No programa 3 há uma parte sobre os
cancioneiros medievais que já lhes mostrara em aula — de 7.20 a 16 —,
que pode ser útil para rever a lírica trovadoresca (aconselho-a talvez apenas aos
que farão exame; revejam esses quase dez minutos, a partir de 7.20, em que fala
a professora Elsa Gonçalves):
Prometera
pôr nesta aula uma pequena tarefa de oralidade (leitura em voz alta).
Lançarão no Classroom duas leituras em voz alta. Prefiro dizer «boas», em vez
de «expressivas», porque, quando dizemos «expressivas», parece que pretendemos performances
histriónicas, muito dramatizadas, e nem sempre a expressividade adequada é essa.
O
ficheiro que carregarão no Classroom será áudio apenas e deverá reunir a leitura
do(s) texto(s) de Mensagem que estava previsto cada um ir recitar
(lê-lo-ão apenas, mas usarão o texto, ou textos, que lhes estavam atribuídos quando era para ser recitação;
vejam aqui)
e a leitura de um texto do ortónimo publicado em vida, com entre quinze a, no
máximo, uns quarenta versos, que escolherão aqui (cuidado que alguns textos iniciais são muito longos e estranhos; a
partir da página 79 é que há mais textos que lhes podem interessar).
Usem
só um ficheiro, onde ficará tanto o poema de Mensagem como de Dispersos
(o nome do ficheiro poderá conter a página da edição de Dispersos onde
começa o poema que lerão: «página #»). Escolham bem o poema — não são
assim tantos textos, porque se trata apenas do que Fernando Pessoa publicou
ainda em vida — e ensaiem bastante a leitura antes de gravarem. O poema, ou
poemas, de Mensagem leiam-no(s) por esta edição ou por esta.
Só
hoje à tarde ou amanhã abrirei no Classroom o espaço para esta tarefa. Devem, portanto, ser
chamados a ela hoje ou amanhã.
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