Friday, August 30, 2019

Aula 21 da Quarentena (= 147)


Aula 147 [21 da Quarentena] (21/mai [3,ª, 4.ª, 5.ª, 9.ª]) Começo por corrigir um lapso (só no turno 2 do 12.º 9.ª, porque depois, graças a F., ainda pude advertir essa gralha de uma das tabelas). Como é óbvio, o cap. XVI de O Ano da Morte de Ricardo Reis decorre em junho de 1936 (em finais de 35 chega Reis, pouco depois de morrer Pessoa; a partir do cap. IV, entramos em 1936, que é, muito maioritariamente, o ano da morte de Ricardo Reis).

Estive a corrigir nos últimos dias o trabalho de criação de versos ao estilo dos vários Pessoas. Problema primeiro: noção de verso (houve quem fizesse estrofes, ou parágrafos, ou títulos, ou simples expressões nominais). Problema segundo: alguns não conhecem bem o estilo de cada heterónimo.

No caso de Campos estava indicado «futurista-sensacionista», ou seja, o das odes vertiginosas (por exemplo: «Ode Marítima», «Ode Triunfal» , «Saudação a Walt Whitman», facílimas de imitar, «pastichar»). Uns imitaram aqui o Campos do tédio e nostalgia, mas mesmo esse, o de «Aniversário»  ou de «Tabacaria», é menos bem comportado do que se depreende de alguns versos vossos. E, claro, falar de futuro não chega para se ser futurista-sensacionista (e, já agora, como sempre lembro, não é «*sensacionalista»).

No caso de Caeiro, esqueceram a simplicidade da sua sintaxe (feita de muito verbo «ser», léxico mais que acessível, frases só justapostas), sofisticando demasiado os seus versos.

Poucos captaram o estilo messiânico, profético, sebastianista de Mensagem (que tem o seu lado de épico mas não o embevecimento pelos heróis portugueses à Lusíadas).

Ricardo Reis surgiu por vezes demasiado desejoso, feliz ou alegre, quando a reserva, a moderação, o controlo emocional, são características da sua escolha estoica e epicurista.

No caso do ortónimo refugiaram-se na menção da saudade, da nostalgia da infância, só que esquecendo que se trata de uma saudade do que logo se diz não ter acontecido ou, pelo menos, do que não poderia ter sido captado, já que só agora se pensa e, quando se podia sentir, não se pensava. Mas para o ortónimo havia mais saídas (sonho versus realidade; a fragmentação do eu; a constante busca do autorretrato psíquico; o fingimento artístico).

Agradeço à colega de cujos versos  me sirvo a seguir (haveria outros bons exemplos possíveis):

Alberto Caeiro – Olho a tarte e gosto dela mas não me ponho a pensar se ela sente.

Álvaro de Campos – Eia! Eia tarte de maçã, és o passado a cumprir a promessa de Lloyd no presente!

Ricardo Reis – Toma! Que saboreies a tarte, seguindo depois o teu destino.

Fernando Pessoa ortónimo – Oh! És o sabor, nesta grande dor, da minha feliz infância!

Fernando Pessoa de Mensagem – Valeu a pena? A tarte vale a pena se a alma de Darren não é pequena!

[Inês S., 12.º 3.ª]

Copio a seguir um texto que é do nosso manual, que dá também boa ideia das diferentes perspetivas de cada Pessoa:

Diálogo argumentativo, a que refere a p. 91 do Plural 12

Na Casa da Poesia estão sentados cinco homens. Têm sensivelmente a mesma idade, vinte e poucos anos, e apesar das diferenças que, claramente, os distinguem — não apenas físicas, é claro, mas também de porte, de estilo, de maneira de estar — parece uni-los uma invisível cumplicidade, ou um conhecimento anterior ao tempo, talvez.
ÁLVARO DE CAMPOS Uma mesa cheia de copos, uma garrafa e um jarro de água. O que é que esta realidade vos diz?
ALBERTO CAEIRO Que sobre esta mesa está um jarro de água, uma garrafa de vinho e dez copos. A realidade existe e eu vejo-a, nada mais me diz e eu nada mais preciso de saber.
RICARDO REIS Diz-nos que enchamos os copos e brindemos a esta hora tranquila e irrepetível.
PESSOA ORTÓNIMO Brindemos! E ao pegar no meu copo para fazer o brinde, pensarei na casa antiga, sonhando- -me na sala em dias de visitas dos tios e dos primos, a mesa cheia de copos para os brindes ou só para matar a sede.
BERNARDO SOARES Eu olho os copos, mas aquilo que mais vejo é a fábrica de vidro, cheia de operários tristes a transpirar de calor, cansados da sua realidade, que começa a viver e a crescer na minha imaginação.

ÁLVARO DE CAMPOS Compreendo. Nesta realidade de copos em cima da mesa, está a memória de outros copos e de outras mesas, porventura mais felizes e festivas. Está também a imaginação de copos distantes, alguns à espera no futuro, quem sabe. Mas brindemos e saboreemos este vinho do norte que há de transportar-nos para bem longe daqui. Brindemos e sonhemos!

ALBERTO CAEIRO Não! Brindemos à realidade, porque só a realidade é verdadeira, tudo o mais não existe. Se eu vejo estes objetos sobre a mesa, é a sua visão que me desperta: uns copos tingidos de vermelho do vinho, a água transpa­rente no jarro atravessado pela luz, um cheiro um pouco ácido a desprender-se da garrafa que está perto do meu nariz. E esta a realidade presente, concreta, sem mistério, verdadeira. Para que hei de pensar no passado, que já não existe, ou no futuro, que não posso ver? Pensar é estar doente dos olhos. Se eu olhar a luz desta garrafa a pensar em instantes passados ou a sonhar com um futuro imprevisível, por isso inútil, não vejo a maravilhosa luz que agora encanta os meus olhos, nem saboreio a frescura da água ou o perfume do vinho que neste instante partilhamos com alegria. Para quê pensar, se temos sentidos?

Pensar é não compreender.

ÁLVARO DE CAMPOS Ora, brindemos, pois claro! Por mim, podemos brindar e voltar a brindar e também eu vejo a mesma realidade e estou com ela. Vamos lá pegar neste copo, o vinho é para saborear intensamente e ele há de levar- -me para bem longe daqui. O passado? Talvez, Fernando, também me lembro da casa antiga e da mesa cheia de copos e tenho saudades, oh! Se tenho saudades! Do passado e do futuro, tenho saudades do futuro: onde estarei amanhã? Onde poderia estar, se aqui não estivesse? Tenha paciência, Mestre, mas o que seria a vida sem o sonho? A realidade desta mesa é igual à das outras mesas à volta, nesta rua, igual a todas as ruas que daqui avistamos. Eu quero sentir a realidade, mas também quero sonhar. Sonhar! E, tenho de o dizer, Mestre: a minh'alma está com o que vejo menos.

BERNARDO SOARES Estou consigo, amigo Campos, o sonho é mais real do que a realidade e eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. A realidade nada me interessa, porque ela é monótona e pobre. A vida interior, Ah! A vida interior não tem limites e eu sonho-me tudo aquilo que o meu desejo me sugerir. É falsa a vida, assim? E conhecem alguma verdade mais verda­deira do que o sonho? Sonhar abre todas as possibilidades de vida. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas. O que me dizem estes copos? Já disse: fazem-me imaginar as fábricas vidreiras.

FERNANDO PESSOA Tem sorte, Bernardo Soares, viver a sonhar e dizê-lo com essa resignação e até satisfação é invejável. Mas eu, onde vivo eu? Na realidade ou no sonho? A realidade existe, estou dentro dela e eu queria senti-la, como o Mestre Caeiro. Não procuro fugir para o passado, nem para o sonho e, no entanto, estou sempre lá, o pensamento não para, arrasta-me, faz-me sonhar com aquilo que está para além da estreita realidade. Contemplo o que não vejo eis a minha verdade. Sempre entre a realidade e o sonho. Digo-o sem alegria, mas não poderia viver de outra maneira.

RICARDO REIS Não nos cansemos, meus amigos. Vivamos a realidade. Bebamos ao momento que passa. Sonhar? Não me interessam os sonhos, porque nos obrigam a ir para o futuro e no fim do futuro está o quê? A morte! Ah! Pois é... Vá, o prazer está aqui, ao alcance das nossas mãos e das nossas bocas. Brindemos à realidade desta tarde de Primavera. Carpe Diem! Fernando, Colhe o dia, porque és ele!



Agora a aula de hoje propriamente dita. Ainda antes do capítulo que estudámos esta semana na primeira aula desconfinada (tudo isto é tão ridículo, não é?), Ricardo Reis foi a Fátima, na esperança de encontrar Marcenda. O capítulo, o XIV, é um pretexto para Saramago (aqui podemos dizer mesmo Saramago e não apenas narrador) se deter no fenómeno ‘Fátima’.

Copio a seguir as páginas relativas à viagem de Reis. Relê-as. Depois veremos outras perspetivas acerca de Fátima: a de um Guia de Portugal, de 1927; a do próprio Fernando Pessoa, que, talvez em 1935, escreveu uma linhas em prosa sobre Fátima; a de um sketch que já vimos.

Comecemos por O Ano da Morte de Ricardo Reis, cap. XIV. Marquei a amarelo os passos em que o narrador faz referência a um rapazinho que teria descido na estação de Mato de Miranda (precisamente a que servia Azinhaga, a aldeia de José Saramago; e o miúdo de uns doze, treze anos, era, é claro, o próprio autor que estudava então em Lisboa e regressava à aldeia periodicamente). Nada disto é explicitado com nomes mas percebe-se. Os dados da vida real corroboram-no: Saramago nasceu em finais de 1922, em 36 seria um adolescente de treze anos). É um efeito interessante este, porque não se trata em rigor de um texto memorialístico; o autor faz que a criança que foi seja observada por uma personagem de ficção (há certos realizadores que gostam de surgir nos seus filmes a desempenharem pequenos papéis, quase incógnitos — é quase isso que acontece aqui).

A azul assinalei um sonho (que inclui Marcenda) e, mais perto do fim do capítulo, outros dois trechos. Queria que comentasses estes passos (porei a pergunta mais à frente).

Com lilás ficam os passos que descrevem o que dirás mais à frente.

A verde, um passo que me parece interessante por associar Reis a um tema efetivamente de Reis.

A cinzento, uma parte em torno de publicidade, através do lançamento de prospeto por avião ao fortificante Bovril. Este lançamento só se justificaria por estar muita gente em romagem (não seria decerto processo muito comum à época). O Bovril, pelos vistos, ainda existe.



No dia seguinte, tão cedo que achou prudente fazer-se acordar pelo despertador, Ricardo Reis partiu para Fátima. O comboio saía do Rossio às cinco horas e cinquenta e cinco minutos, e meia hora antes de a composição entrar na linha já o cais estava apinhado de gente, pessoas de todas as idades carregando cestos, sacos, mantas, garrafões, e falavam alto, chamavam uns pelos outros. Ricardo Reis acautelara-se com bilhete de primeira classe, lugar marcado, revisor cumprimentando de boné na mão, bagagem pouca, uma simples maleta, descrera do aviso de Lídia, Aquilo por lá tem de se dormir ao relento, em chegando logo veria, decerto será possível encontrar cómodos para viajantes e peregrinos, se forem estes de qualidade. Sentado à janela, no assento confortável, Ricardo Reis olha a paisagem, o grande Tejo, as lezírias ainda alagadas aqui e além, gado bravo pastando, sobre a toalha brilhante do rio as fragatas de água-acima, em dezasseis anos de ausência esquecera-se de que era assim, e agora as novas imagens colavam-se, coincidentes, às imagens que a memória ia ressuscitando, como se ainda ontem tivesse passado aqui. Nas estações e apeadeiros entra mais gente, este comboio é trama, lugares na terceira classe não deve haver nem um desde o Rossio, ficam os passageiros nas coxias atravancadas, provavelmen­te a invasão da segunda classe também já começou, em pouco co­meçarão a romper por aí, não serve de nada protestar, quem quer sossego e roda livre vai de automóvel. Depois de Santarém, na longa subida que leva a Vale de Figueira, o comboio resfolga, lança jorros rápidos de vapor, arqueja, é muita a carga, e vai tão devagar que daria tempo para sair dele, apanhar umas flores nesses valados e em três passadas tornar a subir ao estribo. Ricardo Reis sabe que dos passageiros que vão neste compartimento só dois não descerão em Fátima. Os romeiros falam de promessas, disputam sobre quem leva primazia no número de peregrinações, há quem declare, talvez falando verdade, que nos últimos cinco anos não falhou uma, há quem sobreponha, acaso mentindo, que com esta são oito, por enquanto ninguém se gabou de conhecer a irmã Lúcia, a Ricardo Reis lembram estes diálogos as conversas de sala de espera, as tenebrosas confidências sobre as bocas do corpo, onde todo o bem se experimenta e todo o mal acontece. Na estação de Mato de Miranda, apesar de aqui ninguém ter entrado, houve demora, o respirar da máquina ouvia-se longe, lá na curva, sobre os olivais pairava uma grande paz. Ricardo Reis baixou a vidraça, olhou para fora. Uma mulher idosa, descalça, vestida de escuro, abraçava um rapazinho magro, de uns treze anos, dizia, Meu rico filho, estavam os dois à espera de que o comboio recomeçasse a andar para poderem atravessar a linha, estes não iam a Fátima, a velha viera esperar o neto que vive em Lisboa, ter-lhe chamado filho foi apenas sinal de amor, que, dizem os entendidos em afetos, não há nenhum acima deste. Ouviu-se a corneta do chefe da estação, a locomotiva apitou, fez pf, pf, pf, espaçadamente, aos poucos e poucos acelerou, agora o ca­minho é a direito, parece que vamos de comboio rápido. Picou-se o apetite com o ar da manhã, abrem-se os primeiros farnéis, mes­mo vindo ainda tão longe a hora de almoçar. Ricardo Reis está de olhos fechados, dormita ao embalo da carruagem, como num berço, sonha intensamente, mas quando acorda não consegue recordar-se do que sonhou, lembra-se de que não teve oportunidade de avisar Fernando Pessoa de que viria a Fátima, que irá ele pensar se aparece lá em casa e não me encontra, cuidará que voltei para o Brasil, sem uma palavra de despedida, a última. Depois constrói na imaginação uma cena, um lance de que Marcenda é principal figura, vê-a ajoelhada, de mãos postas, os dedos da mão direita entre­laçados nos da esquerda, assim a sustentando no ar, erguendo o morto peso do braço, passou a imagem da Virgem Nossa Senhora e não se deu o milagre, nem admira, mulher de pouca fé, então Ricardo Reis aproxima-se, Marcenda levantara-se, resignada, é então que ele lhe toca no seio com os dedos médio e indicador, juntos, do lado do coração, não foi preciso mais, Milagre, milagre, gritam os peregrinos, esquecidos dos seus próprios males, basta-lhes o mila­gre alheio, agora afluem, trazidos de roldão ou vindos por seu difí­cil pé, os aleijados, os paralíticos, os tísicos, os chagados, os frenéti­cos, os cegos, é toda a multidão que rodeia Ricardo Reis, a implorar uma nova misericórdia, e Marcenda, por trás da floresta de cabeças uivantes, acena com os dois braços levantados e desaparece, criatu­ra ingrata, achou-se servida e foi-se embora. Ricardo Reis abriu os olhos, desconfiado de que adormecera, perguntou ao passageiro do lado, Quanto tempo ainda falta, Estamos quase a chegar, afinal dormira, e muito.
Na estação de Fátima o comboio despejou-se. Houve em­purrões de peregrinos a quem já dera no rosto o perfume do sagra­do, clamores de famílias subitamente divididas, o largo fronteiro parecia um arraial militar em preparativos de combate. A maior parte destas pessoas farão a pé a caminhada de vinte quilómetros até à Cova da Iria, outras correm para as bichas das camionetas da carreira, são as de perna trôpega e fôlego curto, que neste esforço acabam de estafar-se. O céu está limpo, o sol forte e quente. Ricardo Reis foi à procura de um lugar onde pudesse almoçar. Não faltavam ambulantes a vender regueifas, queijadas, cavacas das Caldas, figos secos, bilhas de água, frutas da época, e colares de pinhões, e amendoins e pevides, e tremoços, mas de restaurantes nem um que merecesse tal nome, casas de pasto poucas e a deitar por fora, taber­nas onde nem entrar se pode, precisará de muita paciência antes que alcance garfo, faca e prato cheio. Porém, veio a tirar benefício do fortíssimo influxo espiritual que distingue estas paragens, foi caso que, por o verem assim bem-posto, vestido à cidade, houve fregueses que lhe deram, rusticamente, a vez, e por esta urbanidade pôde Ricardo Reis comer, mais depressa do que esperava, uns carapaus fritos com batatas cozidas, de azeite e vinagre, depois uns ovos mexidos por amor de Deus, que para o comum não havia tempo nem paciência para tais requintes. Bebeu vinho que podia ser de missa, comeu o bom pão do campo, húmido e pesado, e, tendo agradecido aos compadres, saiu a procurar transporte. O terreiro mostrava-se um pouco mais desafogado, à espera doutro comboio, do sul ou do norte, mas, vindos de além, a pé, não paravam de pas­sar peregrinos. Uma camioneta da carreira buzinava roucamente a chamar para os últimos lugares, Ricardo Reis deu uma corrida, conseguiu atingir o assento, alçando a perna por cima dos cestos e dos atados de esteiras e mantas, excessivo esforço para quem está em processo de digestão e afracado do calor. Sacolejando muito, a camioneta arrancou, levantando nuvens de poeira da castigada estrada de macadame. Os vidros, sujos, mal deixavam ver a paisagem ondulosa, árida, em alguns lugares bravia, como de mato virgem. O motorista buzinava sem descanso para afastar os grupos de peregrinos para as bermas, fazia molinetes com o volante para evitar as covas da estrada, e de três em três minutos cuspia fragorosamente pela janela aberta. O caminho era um formigueiro de gente, uma longa coluna de pedestres, mas também carroças e carros de bois, cada um com seu andamento, algumas vezes passava roncando um automóvel de luxo com chauffeur fardado, senhoras de idade vestidas de preto, ou cinzento-pardo, ou azul-noturno, e cavalheiros corpulentos, de fato escuro, o ar circunspecto de quem acabou de contar o dinheiro e o achou acrescido.
Estes interiores podiam ser vistos quando o veloz veículo tinha de deter a marcha por estar atravancada a estrada de um numeroso grupo de romeiros levando à frente, como guia espiritual e material, o seu pároco, a quem se deve louvar por partilhar de modo equitativo os sacrifícios das suas ovelhas, a pé como elas, com os cascos na poeira e na brita solta. A maior parte desta gente vai descalça, alguns levam guarda-chuvas abertos para se defenderem do sol, são pessoas delicadas da cabeça, que também as há no povo, sujeitas a esvaimentos e delíquios. Ouvem-se cânticos desalmados, as vozes agudas das mulheres soam como uma infinita lamúria, um choro ainda sem lágrimas, e os homens, que quase nunca sabem as palavras, acentuam as sílabas toantes só a acompanhar, espécie de baixo-contínuo, a eles não se lhes pede mais, apenas que finjam. De vez em quando aparece gente sentada por esses valados baixos, à sombra das árvores, estão a repousar um migalho, a ganhar forças para o último troço da jornada, aproveitam para petiscar um naco de pão com chouriço, um bolo de bacalhau, uma sardinha frita há três dias lá na aldeia distante. Depois tornam à estrada, retemperados, as mulheres transportam à cabeça os cestos da comida, uma que outra dá de mamar ao filho enquanto vai ca­minhando, e sobre toda esta gente a poeira cai em nuvens à passa­gem da camioneta, mas ninguém sente, ninguém liga importância, é o que faz o hábito, ao monge e ao peregrino, o suor desce pela testa, abre sulcos no pó, levam-se as costas da mão à cara para limpar, pior ainda, isto já não é sujo, é encardido. Com o calor, os rostos ficam negros, mas as mulheres não tiram os lenços da cabeça, nem os homens despem as jaquetas, os casacões de pano grosso, não se desafogam as blusas, não se desapertam os colarinhos, este povo ainda tem na memória inconsciente os costumes do deserto, continua a acreditar que o que defende do frio defende do calor, por isso se cobre todo, como se se escondesse. Numa volta da estrada está um ajuntamento debaixo duma árvore, ouvem-se gritos, mulheres que se arrepelam, vê-se um homem deitado no chão. A camioneta abranda para que os passageiros possam apreciar o espetáculo, mas Ricardo Reis diz, grita para o motorista, Pare aí, deixe ver o que é aquilo, eu sou médico. Ouvem-se al­guns murmúrios de protesto, estes passageiros vão com pressa de chegar às terras do milagre, mas por vergonha de se mostrarem desumanos logo se calam. Ricardo Reis desceu, abriu caminho, ajoelhou-se no pó, ao lado do homem, procurou-lhe a artéria, estava morto, Está morto, disse, só para dizer isto não valia a pena ter-se interrompido a viagem. Serviu para redobrarem os choros, que a família era numerosa, só a viúva, uma velha ainda mais velha que o morto, agora sem idade, olhava com os olhos secos, apenas lhe tremiam os beiços, as mãos retorciam os cadilhos do xale. Dois dos homens foram na camioneta para irem participar à autorida­de, em Fátima, ela providenciará para que o morto seja retirado dali e enterrado no cemitério mais perto.
Ricardo Reis vai sentado no seu lugar, agora alvo de olhares e atenções, um senhor doutor nesta camioneta, é grande conforto uma companhia assim, mesmo não tendo, desta vez, servido de muito, só para verificar o óbito. Os homens informavam em re­dor, Ele já vinha muito doente, devia era ter ficado em casa, mas ateimou, disse que se enforcava na trave da cozinha se o deixássemos, assim veio a morrer longe, ninguém foge ao seu destino. Ricardo Reis assentiu com a cabeça, nem deu pelo movimento, sim senhor o destino, confiemos que debaixo daquela árvore alguém espete uma cruz para edificação de futuros viajantes, um padre-nosso por alma de quem morreu sem confissão nem santos óleos, mas já a caminho do céu desde que saiu de casa, E se este velho se chamasse Lázaro, e se aparecesse Jesus Cristo na curva da estrada, ia de passagem para a Cova da Iria a ver os milagres, e percebeu logo tudo, é o que faz a muita experiência, abriu caminho pelo meio dos basbaques, a um que resistiu perguntou, Você sabe com quem está a falar, e aproximando-se da velha que não é capaz de chorar disse-lhe, Deixa que eu trato disto, dá dois passos em frente, faz o sinal da cruz, singular premonição a sua, sabendo nós, uma vez que está aqui, que ainda não foi crucificado, e clama, Lázaro, levanta-te e caminha, e Lázaro levantou-se do chão, foi mais um, dá um abraço à mulher, que enfim já pode chorar, e tudo volta ao que foi antes, quando daqui a pouco chegar a carroça com os maqueiros e a autoridade para levantarem o corpo não faltará quem lhes pergunte, Por que buscais o vivente entre os mortos, e dirão mais, Não está aqui, mas ressuscitou. Na Cova da Iria, ape­sar de muito se esmerarem, nunca fizeram nada que se parecesse.
Este é o lugar. A camioneta para, o escape dá os últimos estoiros, ferve o radiador como um caldeirão no inferno, enquanto os passageiros descem vai o motorista desatarraxar a tampa, prote­gendo as mãos com desperdícios, sobem ao céu nuvens de vapor, incenso de mecânica, defumadouro, com este sol violento não é para admirar que a cabeça nos tresvarie um pouco. Ricardo Reis junta-se ao fluxo dos peregrinos, põe-se a imaginar como será um tal espetáculo visto do céu, os formigueiros de gente avançando de todos os pontos cardeais e colaterais, como uma enorme estrela, este pensamento fê-lo levantar os olhos, ou fora o barulho de um motor que o levara a pensar em alturas e visões superiores. Lá em cima, traçando um vasto círculo, um avião lançava prospetos, seriam orações para entoar em coro, seriam recados de Deus Nosso Senhor, talvez desculpando-se por não poder vir hoje, mandara o seu Divino Filho a fazer as vezes, que até já cometera um milagre na curva da estrada, e dos bons, os papéis descem devagar no ar parado, não corre uma brisa, e os peregrinos estão de nariz no ar, lançam mãos ansiosas aos prospetos brancos, amarelos, verdes, azuis, talvez ali se indique o itinerário para as portas do paraíso, muitos destes homens e mulheres ficam com os prospetos na mão e não sabem o que fazer deles, são os analfabetos, em grande maio­ria neste místico ajuntamento, um homem vestido de surrobeco pergunta a Ricardo Reis, achou-lhe ar de quem sabe ler, Que é que diz aqui, ó senhor, e Ricardo Reis responde, É um anúncio do Bovril, o perguntador olhou desconfiado, hesitou se devia per­guntar que bovil era esse, depois dobrou o papel em quatro, me­teu-o na algibeira da jaqueta, guarda o que não presta e encontra­rás o que é preciso, sempre se encontrará utilidade para uma folhinha de papel de seda.
É um mar de gente. Ao redor da grande esplanada côncava vêem-se centenas de toldos de lona, debaixo deles acampam mi­lhares de pessoas, há panelas ao lume, cães a guardar os haveres, crianças que choram, moscas que de tudo aproveitam. Ricardo Reis circula por entre os toldos, fascinado por este pátio dos milagres que no tamanho parece uma cidade, isto é um acampamento de ciganos, nem faltam as carroças e as mulas, e os burros cobertos de mataduras para consolo dos moscardos. Leva na mão a maleta, não sabe aonde dirigir-se, não tem um teto à sua espera, sequer um destes, precário, já percebeu que não há pensões nas redonde­zas, hotéis muito menos, e se, não visível daqui, houver alguma hospedaria de peregrinos, a esta hora não terá um catre disponível, reservados sabe Deus com que antecedência. Seja o que o mesmo Deus quiser. O sol está abrasador, a noite vem longe e não se prevê que refresque excessivamente, se Ricardo Reis se transportou a Fátima não foi para se preocupar com comodidades, mas para fa­zer-se encontrado com Marcenda. A maleta é leve, contém apenas alguns objetos de toilette, a navalha de barba, o pó de sabão, o pincel, uma muda de roupa interior, umas peúgas, uns sapatos grossos, reforçados na sola, que é agora altura de calçar para evitar danos irreparáveis nestes de polimento. Se veio Marcenda, não estará debaixo destes toldos, à filha de um notário de Coimbra hão de esperá-la outros abrigos, porém, quais, onde. Ricardo Reis foi à procura do hospital, era um princípio, abonando-se na sua qualidade de médico pôde entrar, abrir caminho por entre a con­fusão, em toda a parte se viam doentes estendidos no soalho, em enxergas, em macas, a esmo por salas e corredores, ainda assim eram eles os mais calados, os parentes que os acompanhavam é que produziam um contínuo zumbido de orações, cortado de vez em quando por profundos ais, gemidos desgarradores, implorações à Virgem, num minuto alargava-se o coro, subia, alto, en­surdecedor, para voltar ao murmúrio que não duraria muito. Na enfermaria havia pouco mais de trinta camas, e os doentes podiam ser bem uns trezentos, por cada um acomodado segundo a sua condição, dez eram largados onde calhava, para passarem tinham as pessoas de alçar a perna, o que vale é que ninguém está hoje a pensar em enguiços, Enguiçou-me, agora desenguice-me, e então usa-se repetir o movimento ao contrário, assim ficou apagado o mal feito, prouvera que todos os males pudessem apagar-se de tão simples maneira. Marcenda não está aqui, nem seria de contar que estivesse, não é doente acamada, anda por seu pé, o seu mal é no braço, se não tirar a mão do bolso nem se nota. Cá fora o calor não é maior, e o sol, felizmente, não cheira mal.
A multidão cresceu, se é possível, parece reproduzir-se a si mes­ma, por cissiparidade. É um enxame negro gigantesco que veio ao divino mel, zumbe, murmura, crepita, move-se vagarosamente, entorpecido pela sua própria massa. É impossível encontrar alguém neste caldeirão, que não é do Pêro Botelho, mas queima, pensou Ricardo Reis, e sentiu que estava resignado, encontrar ou não encontrar Marcenda parecia-lhe agora de mínima importân­cia, estas coisas o melhor é entregá-las ao destino, queira ele que não encontremos e assim há de acontecer, ainda que andássemos a esconder-nos um do outro, e isto lhe pareceu estupidez tê-lo pensado por estas palavras, Marcenda, se veio, não sabe que eu aqui estou, portanto não se esconderá, logo, maiores são as proba­bilidades de a encontrar. O avião continua às voltas, os papéis coloridos descem pairando, agora já ninguém liga, exceto os que vêm chegando e veem aquela novidade, pena foi não terem posto no prospeto o desenho daquele anúncio do jornal, muito mais convincente, com o doutor de barbicha e a dama doentinha, em combinação, Se tivesse tomado Bovril não estava assim, ora aqui em Fátima não faltam pessoas em pioríssimo estado, a elas, sim, seria providência o frasco miraculoso. Ricardo Reis despiu o casaco, pôs-se em mangas de camisa, abana com o chapéu o rosto con­gestionado, de repente sentiu as pernas pesadas de fadiga, foi à procura duma sombra, aí se deixou ficar, alguns dos vizinhos dormiam a sesta, extenuados da jornada, de orações no caminho, a cobrar forças para a saída da imagem da Virgem, para a procissão das velas, para a longa vigília noturna, à luz das fogueiras e lam­parinas. Dormitou também um pouco, recostado no tronco da oliveira, a nuca apoiada no musgo macio. Abriu os olhos, viu o céu azul por entre as ramagens, e lembrou-se do rapazinho magro naquela estação, a quem a avó, devia ser avó, pela idade, dissera, Meu rico filho, que estará ele a fazer agora, com certeza descalçou os sapatos, é a primeira coisa que faz quando chega à aldeia, a se­gunda é descer ao rio, bem pode a avó dizer-lhe, Não vás ainda que está muito calor, mas ele não ouve nem ela espera ser ouvida, rapazes desta idade querem-se livres, fora das saias das mulheres, atiram pedras às rãs e não pensam no mal que fazem, um dia lhes virão os remorsos, tarde de mais, que para estes e outros animaizinhos não há ressurreições. Tudo parece absurdo a Ricardo Reis, este ter vindo de Lisboa a Fátima como quem veio atrás duma miragem sabendo de antemão que é miragem e nada mais, este estar sentado à sombra duma oliveira entre gente que não conhece e à espera de coisa nenhuma, este pensar num rapazinho visto de re­lance numa sossegada estação de caminho-de-ferro, este desejo sú­bito de ser como ele, de limpar o nariz ao braço direito, de cha­pinhar nas poças de água, de colher as flores e gostar delas e esquecê-las, de roubar a fruta dos pomares, de fugir a chorar e a gritar dos cães, de correr atrás das raparigas e levantar-lhes as saias, porque elas não gostam, ou gostam, mas fingem o contrário, e ele descobre que o faz por gosto seu inconfessado, Quando foi que vivi, murmura Ricardo Reis, e o peregrino do lado julgou que era uma oração nova, uma prece que ainda está à experiência.
O sol vai descendo, mas o calor não abranda. No terreiro imenso parece não caber um alfinete, e contudo, de toda a periferia, movem-se contínuas multidões, é um escoar ininterrupto, um de­saguar, lento à distância, mas deste lado há ainda quem procure al­cançar os melhores lugares, o mesmo estarão fazendo além. Ricar­do Reis levanta-se, vai dar uma volta pelas cercanias, e então, não pela primeira vez, mas agora mais cruamente, apercebe-se duma outra peregrinação, a do comércio e mendicância. Aí estão os po­bres de pedir e os pedinchões, distinção que não é meramente for­mal, que escrupulosamente devemos estabelecer, porque pobre de pedir é apenas um pobre que pede, ao passo que pedinchão é o que faz do pedir modo de vida, não sendo caso raro chegar a rico por esse caminho. Pela técnica não se distinguem, aprendem da comum ciência, e tanto lamuria um como suplica outro, de mão estendida, às vezes as duas, cúmulo teatral a que é muito difícil re­sistir, Uma esmolinha por alma de quem lá tem, Deus Nosso Se­nhor lhe dará o pago, Tenham dó do ceguinho, tenham dó do ceguinho, e outros mostram a perna ulcerada, o braço mirrado, mas não o que procuramos, de súbito não sabemos donde veio o hor­ror, esta cantilena gemebunda, romperam-se os portões do infer­no, que só do inferno podia ter saído um fenómeno assim, e ago­ra são os cauteleiros apregoando os números da sorte, com tanta algazarra que não nos admiremos que as rezas suspendam o voo a meio caminho do céu, há quem interrompa o padre-nosso para palpitar o três mil seiscentos e noventa e quatro, e segurando o terço na mão distraída apalpa a cautela como se lhe estivesse a cal­cular o peso e a promessa, desatou do lenço os escudos requeridos, e torna à oração no ponto em que a interrompera, o pão nosso de cada dia nos dai hoje, com mais esperança. Arremetem os vende­dores de mantas, de gravatas, de lenços, de cestos, e os desempre­gados, de braçadeira posta, que vendem postais-ilustrados, não se trata precisamente duma venda, recebem primeiro a esmola, entregam depois o postal, é uma maneira de salvar a dignidade, este pobre não é pedinchão nem é de pedir, se pede é só porque está desempregado, ora aqui temos uma ideia excelente, andarem os desempregados todos de braçadeira, uma tira de pano preto onde se leia, com todas as letras, brancas para darem mais nas vis­tas, Desempregado, facilitava a contagem e evitava que deles nos esquecêssemos. Mas o pior de tudo, porque ofende a paz das al­mas e perturba a quietude do lugar, são os vendilhões, pois são muitos e muitas, livre-se Ricardo Reis de passar por ali, que num ápice lhe meterão à cara, em insuportável gritaria, Olhe que é ba­rato, olhe que foi benzido, a imagem de Nossa Senhora em ban­dejas, em esculturas, e os rosários são aos molhos, e os crucifixos às grosas, e as medalhinhas aos milheiros, os corações de Jesus e os ar­dentes de maria, as últimas ceias, os nascimentos, as verónicas, e, sempre que a cronologia o permite, os três pastorinhos de mãos postas e joelhos pé-terra, um deles é rapaz, mas não consta do registo hagiológico nem do processo de beatificação que alguma vez se tenha atrevido a levantar as saias às raparigas. Toda a confiaria mercantil grita possessa, ai do judas vendedor que, por artes blandiciosas, furte freguês a negociante vizinho, aí se rasga o véu do templo, caem do céu da boca pragas e injúrias sobre a cabeça do prevaricador e desleal, Ricardo Reis não se lembra de ter alguma vez ouvido tão saborosa litania, nem antes nem no Brasil, é um ramo da oratória que se tem desenvolvido muito. Esta preciosa joia da catolicidade resplandece por muitos lumes, os do sofri­mento a que não resta mais esperança do que vir aqui todos os anos a contar que lhe chegue a vez, os da fé que neste lugar é subli­me e multiplicadora, os da caridade em geral, os da propaganda do Bovril, os da indústria de bentinhos e similares, os da quinqui­lharia, os da estampagem e da tecelagem, os dos comes e bebes, os dos perdidos e achados, próprios e figurais, que nisto se resume tudo, procurar e encontrar, por isso é que Ricardo Reis não para, procurar procura ele, falta saber se encontrará. Já foi ao hospital, já percorreu os acampamentos, já cruzou a feira em todos os senti­dos, agora desceu à esplanada rumorosa, mergulha na profunda multidão, assiste aos exercícios, aos trabalhos práticos da fé, as orações patéticas, as promessas que se cumprem em arrasto de jo­elhos, com as rótulas a sangrar, amparada a penitente pelos sova­cos antes que desmaie de dor e insofreável arroubo, e vê que os doentes foram trazidos do hospital, dispostos em alas, entre eles passará a imagem da Virgem Nossa Senhora no seu andor coberto de flores brancas, os olhos de Ricardo Reis vão de rosto em rosto, procuram e não encontram, é como estar num sonho cujo único sentido fosse precisamente não o ter, como sonhar com uma estra­da que não principia, com uma sombra posta no chão sem corpo que a tivesse produzido, com uma palavra que o ar pronunciou e no mesmo ar se desarticula. Os cânticos são elementares, toscos, de sol e dó, é um coro de vozes trémulas e agudas, constantemen­te interrompido e retomado, A treze de maio, na Cova da Iria, de súbito faz-se um grande silêncio, está a sair a imagem da capelinha das aparições, arrepiam-se as carnes e o cabelo da multidão, o so­brenatural veio e soprou sobre duzentas mil cabeças, alguma coisa vai ter de acontecer. Tocados de um místico fervor, os doentes estendem lenços, rosários, medalhas, com que os levitas tocam a imagem, depois devolvem-nos ao suplicante, e dizem os míseros, Nossa Senhora de Fátima dai-me vida, Senhora de Fátima permi­ti que eu ande, Senhora de Fátima permiti que eu veja, Senhora de Fátima permiti que eu ouça, Senhora de Fátima sarai-me, Senho­ra de Fátima, Senhora de Fátima, Senhora de Fátima, os mudos não pedem, olham apenas, se ainda têm olhos, por mais que Ricardo Reis apure a atenção não consegue ouvir, Senhora de Fátima põe neste meu braço esquerdo a tua mirada e cura-me se puderes, não tentarás o Senhor teu Deus nem a Senhora Sua Mãe, e, se bem pensasses, não deverias pedir, mas aceitar, isto mandaria a humil­dade, só Deus é que sabe o que nos convém.
Não houve milagres. A imagem saiu, deu a volta e recolheu-se, os cegos ficaram cegos, os mudos sem voz, os paralíticos sem mo­vimento, aos amputados não cresceram os membros, aos tristes não diminuiu a infelicidade, e todos em lágrimas se recriminam e acusam, Não foi bastante a minha fé, minha culpa, minha máxi­ma culpa. Saiu a Virgem da sua capela com tão bom ânimo de fazer alguns feitos milagrosos, e achou os fiéis instáveis, em vez de ardentes sarças trémulas lamparinas, assim não pode ser, voltem cá para o ano. Começam a tornar-se compridas as sombras da tarde, o crepúsculo aproxima-se devagar, também ele em passo de procissão, aos poucos o céu perde o vivo azul do dia, agora é cor de pérola, porém naquele lado de além, o sol, já escondido por trás das copas das árvores, nas colinas distantes, explode em vermelho, laranja e roxo, não é rodopio, mas vulcão, parece impossível que tudo aquilo aconteça em silêncio no céu onde o sol está. Daqui a pouco será noite, vão-se acendendo as fogueiras, calaram-se os vendilhões, os pedintes contam as moedas, debaixo dessas árvores alimentam-se os corpos, abrem-se os farnéis desbastados, morde-se o pão duro, leva-se o pipo ou a borracha à boca sedenta, este é o comum de todos, as variantes de conduto são conforme as posses. Ricardo Reis arranchou com um grupo debaixo de toldo, sem confianças, apenas uma irmandade de ocasião, viram-no ali com ar de quem estava perdido, de maleta na mão, uma manta que comprou enrolada no braço, reconheceu Ricardo Reis que ao menos um abrigo assim lhe conviria, não fosse refrescar a noite, e disseram-lhe, O senhor, é servido, e ele começou por dizer, Não, obrigado, mas eles insistiram, Olhe que é de boa vontade, e estava a sê-lo, como se viu logo, era um grande rancho, dos lados de Abrantes. Este murmúrio que se ouve em toda a Cova da Iria é tanto o da mastigação como das preces ainda, enquanto uns satisfazem o apetite do estômago, outros consolam as ânsias da alma, depois alternarão aqueles com estes. Na escuridão, à fraca luz das fogueiras, Ricardo Reis não encontrará Marcenda, também não a verá mais tarde, quando for a procissão das velas, não a encontrará no sono, todo o seu corpo é cansaço, frustração, vontade de su­mir-se. A si mesmo se vê como um ser duplo, o Ricardo Reis lim­po, barbeado, digno, de todos os dias, e este outro, também Ricar­do Reis, mas só de nome, porque não pode ser a mesma pessoa o vagabundo de barba crescida, roupa amarrotada, camisa como um trapo, chapéu manchado de suor, sapatos só poeira, um pe­dindo contas ao outro da loucura que foi ter vindo a Fátima sem fé, só por causa duma irracional esperança, E se você a visse, o que é que lhe dizia, já imaginou a cara de tolo que faria se ela lhe aparecesse pela frente, ao lado do pai, ou, pior ainda, sozinha, veja esse seu aspeto, acha que uma rapariga, mesmo defeituosa, se apaixona por um médico insensato, não percebe que aquilo foram sentimentos de ocasião, tenha mas é juízo, agradeça antes a Nossa Senhora de Fátima não a ter encontrado aqui, se é que ela real­mente veio, nunca imaginei que você fosse capaz de cenas tão ridí­culas. Ricardo Reis aceita com humildade as censuras, admite as recriminações, e, com a grande vergonha de se ver tão sujo, imun­do, puxa a manta por cima da cabeça e continua a dormir. Ali per­to há quem ressone sem cuidados, e detrás daquela oliveira grossa ouvem-se murmúrios que não são de prece, risinhos que não soam como o coro dos anjos, ais que não parecem de espiritual arrebatamento. A madrugada vem clareando, há madrugadores que se es­preguiçam e se levantam para espevitar o lume, é um dia novo que começa, novos trabalhos para o ganho do céu.
A meio da manhã, Ricardo Reis resolveu partir. Não ficou para o adeus à Virgem, as suas despedidas estavam feitas. O avião passara por duas vezes e lançara mais prospetos do Bovril. A camio­neta levava poucos passageiros, não admira, logo é que será a gran­de debandada. Na curva do caminho estava uma cruz de pau espetada no chão. Afinal não tinha havido milagre.



Completa:

[1.] A lilás estão passos que mostram uma característica de Fátima que se pretende evidenciar pejorativamente: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 

[2.] A verde ficou um passo que me parece interessante por associar Ricardo Reis a um tema efetivamente recorrente no heterónimo Reis, o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . , na medida em que . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

[3.] Relendo tudo que está assinalado a azul ao longo do longo texto reproduzido (são três as zonas que marquei a azul, mas estão por vezes distantes), comenta a «polissemia» do último período do capítulo: «Afinal não tinha havido milagre». Explica as interpretações sugeridas, fundamentando a tua análise com citações do texto. (Sugiro cerca de cento e cinquenta palavras.)

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Fernando Pessoa, já no final da vida, talvez em 1935, ou seja, bastante perto do ano em que o Ricardo Reis ficcionado viaja até Fátima (que é 1936), escreveu uma linhas sobre Fátima. O texto, que não ficou concluído, foi estudado por José Barreto, que encontrou pelo espólio de Pessoa mais trechos relacionados com Fátima. Desse texto de, presumivelmente, 1935 reproduzo apenas umas partes mais ou menos soltas (creio que fundadas em decifração de Barreto). Pode ser útil lembrar que Lourdes é o local de romagem em França que, de certo modo, terá inspirado Fátima.


            Fátima é o nome de uma taberna de Lisboa onde às vezes... eu bebia aguardente.

Um momento... Não é nada disso... fui levado pela emoção mais que pelo pensamento, e é com o pensamento que desejo escrever.

Fátima é o nome de um lugar da província, não sei onde ao certo, perto de um outro lugar do qual tenho a mesma ignorância geográfica mas que se chama Cova de qualquer santa. Nesse lugar  em um ou no outro — ou perto de qualquer deles, ou de — ambos, viram um dia umas crianças aparecer Nossa Senhora, o que é, como toda a gente sabe, um dos privilégios infinitos a que se não parte a corda.

[...] e assim como passou a haver “liberdades” em vez de “liberdade”, assim também passou a haver crenças em vez de crença, fés em vez de fé, e vários outros plurais ainda mais singulares.

[...] Seja como for, o facto é que há em Portugal um lugar que pode concorrer e vantajosamente com Lourdes. Há curas maravilhosas, a preços muito em conta; há peregrinações que dispensam o comboio (criação do estúpido etc!).

[...] O negócio da religião a retalho, no que diz respeito à Loja de Fátima, tem tomado grande incremento, com manifesto êxtase místico da parte dos hotéis, estalagens e outro comércio desses jeitos — o que, aliás, está plenamente de acordo com o Evangelho, cuidando-se de bens materiais, “Buscai-vos o Reino de Deus e todas essas coisas vos serão acrescentadas”.



[4.] Uma crítica a Fátima implícita nesta prosa de Pessoa (crítica semelhante a outra que vimos no texto de Saramago) é a de que . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Também não é muito simpática a descrição de Fátima que temos no segundo volume do Guia de Portugal, de 1927. O Guia de Portugal procurava ser um roteiro utilitário para o viajante, mas pretendia igualmente constituir uma coleção de descrições literárias da responsabilidade de bons escritores. O passo de Fátima (pp. 505-506) terá sido escrito pelo organizador da obra, Raul Proença, talvez apoiado em apontamentos de Jaime Cortesão.




[5.] Desta descrição do local (de apenas uma década após a aparição), ressalta sobretudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Ainda a propósito de Fátima não podia deixar de repetir (creio que é já a terceira vez) o passo do milagre em O Último a Sair:




TPC — A partir de agora, sentir-me-ei livre para testar a efetiva leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis. Além do manual, procura levar também o livro de Saramago para as aulas. Para a próxima aula presencial — isto é, a da semana de 26-29 de maio — leva, manuscrito, o conjunto de cinco respostas pedidas há pouco. Os que estão, por razões médicas ou familiares, dispensados institucionalmente das aulas presenciais — e só esses — devem pôr essas respostas no Classroom (os outros, por favor, não liguem à chamada que o Classroom vai fazer no sentido de resolverem esta tarefa e levem-me a folha na 3.ª, 4.ª, 5.ª ou 6.ª feira, respetivamente, 26, 27, 28, 29 de maio)








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