Thursday, September 14, 2006

9.º 1.ª


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Esta secção sobre António Gedeão teve como pretexto o concurso «Rómulo de Carvalho / António Gedeão, o poeta da Ciência» (promovido pelo Plano Nacional de Leitura). Para efeitos desse concurso, funciona como página, da responsabilidade do 9.º 1.ª da Escola Secundária José Gomes Ferreira (Benfica, Lisboa). Não se trata, porém, de página que responda aos requisitos de navegabilidade e interactividade propostos pelo regulamento do Concurso. Desaproveitámos os recursos informáticos, concentrámo-nos nos textos. Em geral, a página reúne textos escritos pelos alunos «à maneira de» ou a propósito de algum texto de Gedeão (dá-se o texto de António Gedeão em corpo pequeno, enquanto a glosa, pelo aluno, fica em corpo um pouco maior). Portanto, também a obra do poeta foi privilegiada em detrimento da vida e restante obra de Rómulo de Carvalho.



Charada


A charada representa dois versos iniciais de um dos poemas mais conhecidos de António Gedeão. Depois de se tentar adivinhar, pode confirmar-se a solução aqui.
[Brigitta]

Entrevista
Uma das professoras de Física da nossa escola, a Professora Emília Estadão, ainda chegou a ser colega de Rómulo de Carvalho. Gustavo e Ricardo entrevistaram-na por escrito.

Senhora Doutora, fale-nos de como conheceu Rómulo de Carvalho.
Rómulo de Carvalho era professor de Física no Liceu Pedro Nunes. Teria ele já quase setenta anos quando aí também leccionei, em 1974. Eu estava em começo de carreira e muito ganhei com o seu apoio. Nessa altura — pouco depois do 25 de Abril —, Rómulo de Carvalho retirara-se da leccionação, já que o seu comportamento organizado não se adaptava a uma certa anarquia e contestação que imperava então entre os alunos. Durante esse ano em que fui colega de Rómulo de Carvalho, ele continuou a dirigir a biblioteca, a apoiar os estagiários e outros professores mais novos e a dirigir o Laboratório de Física. Foi nestas facetas que o conheci.

António Gedeão foi sem dúvida uma personagem que deixou a sua marca na história da literatura portuguesa. E na física? Era ele (enquanto Rómulo de Carvalho) um físico brilhante, inovador e vanguardista? Era um homem que pensava para além do conhecimento ou limitava-se a ensinar o que já se sabia?
Rómulo de Carvalho não foi propriamente um físico investigador, mas antes um pedagogo que divulgava a ciência, usando sempre linguagem acessível mas rigorosa. Era brilhante e rigoroso a transmitir a ciência, a divulgá-la de modo simples, com material fácil de adquirir e numa linguagem perfeita. Punha um cuidado extremo em tudo o que fazia.

Era Rómulo de Carvalho um professor inovador e com gosto no que fazia? Como era a sua relação com os alunos? Conseguia motivá-los a aprenderem e a gostarem da Física?
Como professor apenas me chegaram os testemunhos de alguns alunos que diziam que as suas aulas eram muito organizadas e que, por vezes, convidava alguns mais interessados a irem depois das aulas ao Laboratório aprofundar algumas experiências. De resto, mantinha um certo «distanciamento». Recordo-o como um professor de Física com uma enorme habilidade com as mãos. Quando se estragava algum material, ou era necessário demonstrar algum princípio, lei ou teoria, ele facilmente imaginava, e montava, uma experiência em que punha em evidência um fenómeno, um princípio.

Rómulo de Carvalho exprimia-se bem, quando explicava a matéria? Era objectivo?
A sua expressão aliava a simplicidade e o rigor. Era muito cuidadoso na linguagem, era sempre breve e conciso. Não gostava de palavras rebuscadas. Lembro-me de um dia, numa reunião de professores, ter advertido uma colega por empregar o verbo «constatar» (em vez de «verificar»).

Qual a sua opinião acerca de Rómulo de Carvalho como pessoa? E a opinião em termos profissionais, como colega? Era sociável e amistoso, ou mais ‘fechado’ e antipático? Davam-se bem e trabalhavam sem problemas, ou havia dificuldades?
Era muito exigente com os colegas mais novos. Muitos diziam que não percebiam como na poesia era uma pessoa com tanta sensibilidade e nas relações com os colegas era tão distante, frio. Era uma pessoa «altiva» e discreta, muito elegante no discurso, no seu aspecto e movimentos.

A Senhora Doutora tinha conhecimento da face mais literária do seu colega? Alguma vez leu uma obra de Rómulo de Carvalho (ou do seu pseudónimo António Gedeão)? Se sim, qual?
Por essa altura — nos anos setenta — já todos sabíamos de que Rómulo de Carvalho era também o poeta António Gedeão. No entanto, Rómulo de Carvalho não fazia nunca menção dessa sua outra actividade. Em conversa comigo, apenas uma vez me lembro de ele ter aflorado essa matéria.
Palavras Cruzadas


1. António Gedeão era poeta, Rómulo de Carvalho era ________.
2. António Gedeão era o nome de Rómulo de Carvalho enquanto _____.
3. Apelido do pseudónimo literário de Rómulo de Carvalho.
4. A recente exposição na Biblioteca Nacional sobre Rómulo de Carvalho / António Gedeão intitulou-se «_________ é o meu nome».
5. Nasceu em 1906, foi professor e divulgador de física e investigador da história da ciência.
6. Em 1983, Gedeão publica ______ Póstumos.
7. O poema mais célebre de Gedeão será talvez «Pedra ________».
8. Rómulo de Carvalho foi professor no Liceu _______ Nunes.
9. Aos onze anos, Rómulo escreveu uma continuação dos _____.
10. A disciplina que Rómulo de Carvalho leccionava era ________.
11. Rómulo de Carvalho era casado com a escritora Natália _______.
12. O cantor que mais divulgou Gedeão foi Manuel _______.
13. Um dos poemas mais conhecidos de Gedeão intitula-se «_______ de Carriche».
14. Título de outro dos mais conhecidos poemas de António Gedeão.
15. Um dos livros escritos por Rómulo de Carvalho para a colecção «Ciência para gente nova» chamava-se História da ___________.
A coluna não numerada, a meio, dá «Português».
[Patrícia; as soluções podem vistas aqui.]
Canção do oboé

Tendo em conta o poema de António Gedeão «Canção do oboé», escreve uma «Canção do [outro instrumento musical]».

Canção do oboé

Habita no meu sangue como um solo de oboé.
Inexistente e imaginada
é toda feita de nada
mas necessária como o ar que não se vê.

Com os pés alados das semicolcheias
que extravasam da pauta,
baila no estrado olímpico das veias,
descontraída, turbulente, incauta.

Oiço-a acordado e sinto-me adormecido
nas ondas largas que no sangue vão
como o transístor que se encosta ao ouvido
e apenas ouve quem o tem na mão.

António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D'Água, [2004], p. 214
Canção da bateria

Marcas o ritmo do batimento,
Agitas o estado de espírito,
Envenenas o pensamento,
Como uma pedra, agitas as águas de um lago,
Como a chama consome a lenha,
Como o fumo invade o ar.

O teu som infecta-me a mente,
Acelera a frequência a que respiro,
Muda o olhar de sossego,
Por ti eu suspiro,
E quanto a ti me interrogo:
Porque consomes tu a minha alma?
Porque perturbas tu a minha calma?
Porque te oiço sequer?
Porque te consumo, ingiro?
Porque todos os dias te tento decifrar,
Assim por ti eu respondo.
Melodiosa bateria.

[Gustavo]

Canção do piano
O seu negro brilho realça oito oitavas de notas
E as alinhadas pautas.
Carrego nas teclas pesadas,
Que cantam melodias delicadas.
Com sete notas, faço uma escala
— Dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó.
Quando toco, toda a gente se cala
— Dó-si-lá-sol-fá-mi-ré-dó.
O piano parece chorar,
Quando toco acordes menores,
Mas logo se começa a alegrar,
Se toco escalas maiores.

[Brigitta]
Poema épico
«Poema épico» apresenta-nos personagens que estão nos antípodas (são exactamente ao contrário) de um herói de uma epopeia. Escreve mais uma quadra, de matriz sintáctica semelhante, que trate ainda de outra figura também humilde, aparentemente sem nada que a recomendasse para heroína de epopeia. Usa um dos esquemas rimáticos nestas quadras de Gedeão (A-B-A-B ou A-B-B-A).

Poema épico

O rapagão da camisola vermelha sacode a melena da testa
e retesa os braços num bocejo como um jovem leão voluptuoso.
Dorme a sesta
o involuntário ocioso.

A filha do alfaiate atirou a tesoura e o dedal pela janela
e sumiu-se na noite escura do mundo.
Quis respirar mais fundo
e isso de ser coitada é lá com ela.

O homem da barba por fazer conta os filhos e as moedas
e balbucia qualquer coisa num tom inexpressivo e roufenho.
Súbito chamejam-lhe os olhos como labaredas:
— Eu já venho!

O da face doente,
o que sofre por tudo e por nada, sem querer,
abana a cabeça negativamente:
— Isto não pode ser! Isto não pode ser!

Sentados às soleiras das portas,
mordendo a língua na tarefa inglória,
com letras gordas e por linhas tortas
vão redigindo a História.

António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D'Água, [2004], p. 189
Sentado à porta do casebre, um velho de aspecto nojento
só sabia escarnecer!
Para além daquele hálito fedorento
da sua boca só saía maldizer!
[Diogo]

Enquanto

No poema «Enquanto», «enquanto», conjunção temporal, serve de título e é realmente fulcral na sintaxe e no sentido do texto. Escreve um poema igualmente fundado numa conjunção à tua escolha.

Enquanto
Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volte o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhasminhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que não se diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.
António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D'Água, [2004], p. 198.
Quando

Quando te vejo debruçada na janela,
com os cabelos ao vento,
sinto-me feliz.
Quando me falas nessa tua voz doce,
sinto uma melodia no ar,
sinto uma intensa primavera dentro de mim.
Quando vejo os teus olhos castanhos e cintilantes,
bonitos e distantes,
a olharem para mim,
sei que serão meus os teus olhos até ao fim.
Quando caminhamos na praia em direcção ao vazio,
o horizonte longínquo fica perto,
como perto fica o teu olhar frio,
que se fixa no meu
e se perde no rebentar das ondas, na areia, no céu.
Quando sinto o teu sorriso,
que desabrocha da alma
e que te pousa no rosto,
cheio de medo, cheio de sempre e de calma…
Quando existires em mim,
quando o sempre é nunca e será sempre assim:
amo-te hoje, ontem, até ao fim.

[Inês]
Calçada de Carriche

Escreve uma 'versão masculina' do poema «Calçada de Carriche». Como verás, este longo poema retrata uma mulher de vida condicionada pelos outros («explorada» pela sua condição de mulher e de operária). Escreverás um texto simétrico, que, em ritmo aproximado, nos mostre o quotidiano de um homem e burguês; ou, segunda hipótese, do homem a que corresponderia o marido desta Luísa.

Calçada de Carriche

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D'Água, [2004], p. 140.

Calçada dos Mestres
Fernando Soares sobe,
sobe e descobre
que uma herança lhe foi roubada,
sobe Fernando Soares,
sobe que sobe,
sobe a grande escada.

Saiu da nobre propriedade,
de manhã, com a alvorada
regressa à sua casa,
é já tarde acabada.
Já tem alguma idade,
para andar naquela calçada.

Na mão repleta de anéis,
de pele bem cuidada
leva a chave de uma casa de reis.
Avança Fernando Soares,
avança depressa,
pela estreita escada.

Entra em casa,
chama a pobre criada
e logo lhe ordena
que limpe a grande escada,
mesmo que esteja cansada.
Na escada dará uma vassourada.

Anda devagar.
Com o seu pesado andar,
sobe mais um andar
e caminha até à bela sala-de-estar.
Onde anseia por descansar
e sempre mandar.

De noite há uma reunião.
Usa o seu mais bonito fato
e chegam burgueses convidados, um batalhão.
De aperitivos requintados enchem o seu prato
e depois de endinheirados assuntos vão falar,
não esqueçendo o malvado governo da região.

A vida de um burguês
resume-se a isto:
a comer um bom petisco,
falar e falar sem risco.
Porquê?

[Eliana]
Pedra filosofal

Lê o conhecido «Pedra filosofal». Talvez tenhas estado, em Novembro de 2005, na sessão do aniversário da escola em que Manuel Freire cantou a canção com esta letra. (Essa canção, que há trinta e muitos anos tornou este poema tão conhecido, podes ouvi-la aqui.) Os últimos versos da terceira estrofe («alto-forno, geradora, / cisão de átomo, radar, / ultra-som, televisão, / desembarque em foguetão / na superfície lunar» pretendem referir o que na altura seriam os expoentes da modernidade. Prossegue essa estrofe, acrescentando uma dezena de versos com nomes ou situações que hoje seriam representativas da mesma modernidade.


Pedra filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, paço de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão de átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que o homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D'Água, [2004], p. 104
Eles não sabem que o sonho
é o computador, o TGV,
a luta pelo aborto, o Euromilhões,
a procura de outras formas de vida
por todo o universo,
é falar na internet com uma câmara,
microfone, transportar informações,
bastante grandes numa coisa tão
pequena chamada «pen».

[Ricardo]
Catedral de Burgos
Ilustra um poema de António Gedeão.
Catedral de Burgos

A Catedral de Burgos tem trinta metros de altura
e as pupilas dos meus olhos dois milímetros de abertura.

Olha a Catedral de Burgos com trinta metros de altura!
António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D’Água, p. 200.
[ilustração escolhida por Eliana]




Poema da auto-estrada


Escrever poema «antónimo» do seguinte poema de António Gedeão: «Poema da auto-estrada».

Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.

Leva calções de pirata,
Vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno,
blusinha de terileno.
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D'Água, [2004], p. 177
Lentamente, vai para o museu,
A pé, pelo estreito caminho.
Leva umas calças justas,
Negras, como as noites de Inverno
Estilizando as pernas curtas.
Por cima, um velho casaco bege
Bem largo e fora de moda.
Vai, vai, Leonoreta,
Por entre a noite preta

No longo caminho

Leva consigo a sua sacola,
Carregada de medo
Mas confiante.
Segue, segue, segue,
Com o tempo escuro
Percorre ruas e ruas,
E, lá no fundo,
A imponente igreja guia-lhe o caminho.
Tudo à sua volta
A parece ignorar
Pelo seu estranho silêncio
Já não sabe se será medo,
Medo da solidão
Ou medo da escura noite.
Vai, vai Leonoreta,
Por entre a noite preta.

[Sara C.]
Anacleta
O poema que se segue é um acróstico (o início dos versos, lido na vertical, constitui um nome) escrito por Rómulo de Carvalho aos 11 anos. Escreve um acróstico, e também dedicado a uma pessoa ou a coisa de que muito gostes. Usa o mesmo esquema rimático (A-B-A-B-C-D-C-D).


Anacleta
A mei-te ao ver-te formosa
N aquela bela manhã
A mei-te ao ver-te viçosa
C omo uma rosa louçã.
L endo num livro ela estava
E ncostada ao seu balcão
T endo gesto que mostrava
A mar-me do coração.

António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D'Água, [2004], p. 639.
Ambrósio
A mei-te desesperadamente,
M aravilhei-me de olhos fechados
B risa que me arrefeceu a mente.
R ecuperar a confiança só abraçados
O h, sentirei de novo aquela frescura?
S ó tu és o meu rei,
I negável sentimento,
O mais sincero que nunca esquecerei.

[Elizângela]

Bárbara
B ondosa e divertida,
A miga de toda a gente,
R isonha e cheia de vida,
B onita e inteligente.
A ndando numa folia,
R i-se, vive sempre num mundo colorido,
A nda feliz e diz para toda a gente: «sorria».

[Joana A.]


Poema do poste com flores amarelas
O poema que se segue, ao contrário do que é costume na poesia de António Gedeão, não é rimado. Os seus versos são aliás extensos, quase como se se tratasse de prosa. Escreve uma continuação do poema.

Poema do poste com flores amarelas

Vieram os operários, puseram o poste de ferro na berma do passeio
e foram-se para voltar noutro dia.
O poste tinha sido pintado há pouco de verde
e quando lhe batia o sol rutilava como as escamas dos dragões.
Mesmo junto do poste, no passeio, havia uma árvore que dava flores amarelas,
e o vento fez cair algumas flores amarelas sobre o poste verde.
As pessoas que por ali passavam diziam «que chatice de poste»,
mas o poeta sorria para as flores amarelas.
António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D'Água, [2004], p. 220
As flores amarelas davam vida ao poste.
Um dia, passou perto do poste um pequeno rapazinho,
que era tão pequenino que, ao olhar para cima, pensava que o poste não tinha fim.
Pensou que era uma árvore florida que tinha sido plantada ali, no meio do nada.
E o rapazinho ficou com pena dela, ali sozinha.
No dia seguinte, à mesma hora, sentou-se lá, tirou um livro da mochila
e começou a lê-lo à “árvore”, só para lhe fazer companhia.
[Inês]
Flores belas que passam a vida a desfilar
para aqueles que as sabem apreciar,
as coisas belas da vida,
em vez de se organizarem em grupos
para vencer outros;
apesar de ninguém mudar o mundo,
nem a felicidade de todos,
apenas leis, regras e políticos desesperados para mostrar o seu valor
a um mundo de pessoas que não aproveitam a vida,
porque em vida não repararam naquela bela árvore perdida
com flores de manteiga quase derretida,
não repararam no ar revolucionário de um poste verde,
que só dá esperanças já perdidas.
[Carlos André]
Alegremente, no autocarro

As quatro quintilhas de «Alegremente, no autocarro» têm estrutura idêntica (todos os seus cinco versos são paralelos). Escreve mais uma quintilha que siga a mesma estrutura e se enquadre no sentido do poema.

Alegremente, no autocarro

As crianças tristes passam alegres no autocarro,
cantando em altos berros e intrometendo-se com quem passa.
Vão todas ao Posto vacinar-se de graça.
A vacina é triste, as crianças são tristes,
mas passam todas, alegremente, no autocarro.

Os soldados tristes passam alegres no autocarro,
entoando as canções que cantavam nas romarias da sua terra.
Vão para o cais do embarque tomar o paquete que os levará para guerra.
A guerra é triste, os soldados são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Os operários tristes passam alegremente no autocarro,
cantando e gesticulando com a garrafa de vinho na mão.
Vão todos para a fábrica vigiar as máquinas e carregar num botão.
A fábrica é triste, os operários são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Os camponeses tristes passam alegres no autocarro,
cantando e dando vivas ao longo do percurso.
Vão todos à cidade, de fato novo, aplaudir o discurso.
O discurso é triste, os camponeses são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Alegremente, no autocarro.


António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D’Água, [2004], p. 230
Os homens do lixo tristes passam alegremente no autocarro,
seguindo o camião do lixo e tapando o nariz por causa do fedor do contentor.
Vão todos para o camião do lixo, chorando o desamor.
O contentor é triste, os homens do lixo são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

[Inês]

Os mineiros tristes passam alegremente no autocarro,
cantando altivamente ao erguer as suas piruetas no ar.
Vão todos em fila indiana, carregados, sempre a marchar.
O caminho é triste, os mimeiros são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

[Sara C.]
Os professores tristes passam alegres no autocarro,
cantando e ensinando canções a quem lá estava.
Vão todos à escola ter aulas de Português.
Ter aulas é triste, os alunos são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

[Elizângela]

Poema do alegre desespero


Repara nos seis primeiros versos do «Poema do alegre desespero». Escreve mais algumas estrofes com o mesmo esquema rimático e que tenham (ou tenham subentendida) a frase «compreende-se que ninguém se lembre de».

Poema do alegre desespero
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão Barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.
Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerxes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Epiro, e conquistavam o Epiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D'Água, [2004], p. 220
Compreende-se que, quando esta aldeia terminar,
todo o mundo se esquecerá da Dona Maria
que mantinha toda a gente unida e a cantar,

ou do meu tio Hugo, muito importante,
que deu uma volta ao mundo com a minha tia
e que apareceu nas notícias com um comandante.

Compreende-se que amanhã, em Belém,
já ninguém se lembre de mim
que nunca me esqueci de ninguém,

ou do meu exclusivo gato branco
que morreu às chamas junto a mim,
a olhar para elas sentado num banco.

[Joana G.]



Poema para Galileo

Escreve um «Poema para [outra figura histórica (da ciência, da cultura)]».

Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria...

Eu sei... Eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu a quem tu esclareceste,
ia jurar — que disparate, Galileo!
— e jurava a pés juntos e apostava a cabeça sem a menor hesitação — que os corpos caem tanto mais depressa quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios, e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas — parece-me que estou a vê-las —
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.
António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D’Água, [2004], p. 205
Poema para Newton
Hoje, na aula de Física, estive a dar as forças:
Primeira, Segunda e Terceira leis,
Que nos deixaste há tempos nos teus papéis
E que para mim são novas.
Num dia soalheiro, sentado num jardim,
Estavas a pensar na queda nos corpos
E a estudar alguns livros,
Caiu-te a maçã na cabeça, enfim.
E assim nos explicaste a Gravidade.

Passados alguns anos,
Não paraste de nos surpreender:
Ultrapassaste o conhecimento humano
E dividiste a luz em sete.
Mas o teu maior dilema
Tornou-se num problema,
Nunca conseguiste responder a uma pergunta:
“Onde está Deus?”.

[Brigitta]


Poema do fecho éclair


No «Poema do fecho éclair», apresenta-se uma série de vantagens que tinha um rei do século XVI, contrastada no fim com uma desvantagem (não ter um fecho éclair). Escreve um texto (que pode ser em poesia não rimada), em que relates a situação contrária: dirás as vantagens que tens por viveres no século XXI e, no final, indicarás qualquer coisa que não tens (por não viveres no XVI).

Eu tenho …
[muitas linhas]
O que eu não tenho é …

Poema do fecho éclair

Filipe II tinha um colar de oiro,
tinha um colar de oiro com pedras rubis.
Cingia a cintura com cinto de coiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz.

Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.

Andava nas salas
forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.

Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.
Na mesa do canto
vermelho damasco,
e a tíbia de um santo
guardada num frasco.

Foi dono da Terra,
foi senhor do Mundo,
nada lhe faltava,
Filipe Segundo.

Tinha oiro e prata,
pedras nunca vistas,
safiras, topázios,
rubis, ametistas.
Tinha tudo, tudo,
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.

O que ele não tinha
era um fecho éclair.
António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D’Água, [2004], p. 202
Poema dos reis
Eu tenho direito à Educação,
Posso tomar as minhas decisões,
Posso dar a minha opinião,
Sem quaisquer repreensões.

Eu posso conhecer qualquer cultura,
Posso até não ter religião,
Já não vivo numa ditadura,
Vivo num mundo de dedicação.

Eu posso apoiar quem me apetecer,
Posso correr, saltar, gritar
Sem que ninguém me venha prender,
Posso falar sem recear.

Eu posso lutar pelo que acredito,
Posso defender terras e mares,
Posso acreditar no infinito
Sem ter medo de o alcançar.

Eu posso olhar em meu redor,
E pensar: “Este mundo já foi pior!”,
E acreditar que a cada hora
Este mundo melhora.

Eu posso olhar para as estrelas,
Sabendo o que elas são,
Posso sonhar em tê-las
À distância de uma mão.

Eu tenho orgulho neste mundo
De pessoas de longa caminhada,
O que eu não tenho no fundo
São reis da palhaçada.

[Sara P.]
Poema do meu castelo
No século vinte e um,
tenho tudo o que quero,
água, vinho e rum
tiram-me o desespero.

Tenho uma grande casa
e também um carro,
e uma garagem
(pena o fumo, que fico com catarro).

Para isso curar,
não vou ao médico:
já há medicamentos para tomar,
a tecnologia é algo inédito.

Já uso máquina
para cortar o cabelo,
mas o que eu queria
era ter o meu próprio castelo.

[Daniel]
Poema do meu palácio

Eu tenho três televisões,
dois computadores e sofás de cabedal.
Tenho dois carros,
duas casas de férias.

O dever de ir à escola,
poder dizer o que penso, literalmente.
Almoço com os meus amigos; três vezes por semana
encontro-me com eles.
Tenho um guarda-ropua cheio
resultante de tardes infinitas nas compras com as minhas amigas.

Com a nova tecnologia
posso comunicar com todo o mundo.
Tenho um telemóvel,
telefone em casa.
Posso falar com quem quiser,
quando quiser.

Posso deslocar-me sozinha dentro da cidade,
vir com os meus amigos da escola para casa,
ir ter com alguém,
graças aos transportes públicos.

O que eu não tenho
é a possibilidade de viver num palácio.

[Joana A.]
Ballet
Escrever poema com o mesmo número de versos e estrofes de «Ballet» mas sobre outra arte, espectáculo, desporto (exemplos: «Futebol», «Natação», «Surf»). Não é obrigatória a rima.

Ballet

Como jogos de água, ascendes vitoriosa e ufana.
Soberana,
à superfície do tablado estendes
as linhas com que nos prendes,
filigrana.

Língua de fumo da taça do turíbulo,
endoideceste em beleza.
Vermelha e quente como o sangue do patíbulo
é tua natureza.

Volátil,
rodopias em torno do teu eixo
centrifugando círculos de espuma.
Estacas. E em sonolento desleixo,
esboçando incompletos gestos lentos,
fragmentos de movimentos,
semeias flores, na bruma.

Ascendes e rodopias.
Rodopias e ascendes.
Fazes-te noites e dias
nas sombras que denuncias,
nos relâmpagos que acendes.

Célere, corres,
mimosa
e assustada.
Gaivota medrosa
na areia dourada.
O sol entontece e morde.
Num repente, libertada,
deslizas, pura escultura,
na macia curvatura
de um acorde.

Nos pontos da trajectória
que descreves, transparece
o clamor da longa história.
Tua beleza é vitória,
dura vitória da espécie.

O escopro de milhões de anos arrancou-te à pedra bruta,
modelou-te em pormenor.
O sangue de milhões de homens, em ti, a ferver, se escuta.
A harmonia dos teus gestos foi revolta, treva e luta.
O perfume do teu corpo foi temperado em suor.

António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D’Água, [2004], p. 112

Benfica
Saltamos como jovens, a delirar com a equipa,
que, destemida,
ergue-se, novamente,
contra leões e dragões,
no relvado.

Sobem ao relvado destemidos,
como soldados,
prontos para a guerra,
para saírem vitoriosos.

Imparáveis,
trocam a bola entre eles,
trocando as voltas ao adversário;
caídos no chão, rematam,
e o público delira,
com leões e dragões a serem derrotados.

[Ricardo]
Joaneida

Aos 16 anos, Rómulo de Carvalho escreveu estas estâncias, que consituem a Proposição de um poema épica a D. João I (ou à Ínclita Geração). Observa que o modelo de Os Lusíadas foi seguido de perto. Escreve a Proposição de um poema épico que pudesses fazer (podes usar os tópicos que prepararas na aula passada ou engendrar outra epopeia).

Joaneida

I
Aquele rei ilustre lusitano
Que a Fernando o Formoso sucedeu,
Que no bárbaro campo Tingitano
Os miserandos árabes venceu,
E que em Aljubarrota, o Castelhano,
Com pouquíssima gente combateu,
Em estilo humilde e fraco vou cantar,
Se a filha da Memória me ajudar.

II
E aquele Nuno, heróico Condestável,
Que só a Deus mostrava ter temor,
Que p’la sua coragem indomável,
Em Valverde e Trancoso fez furor,
Levado por uma fé inquebrantável,
Querendo servir ao Santo Criador,
Tornou-se em monge o ínclito guerreiro,
Terminando os seus dias num mosteiro.

III
Canto também aqueles quatro infantes,
Dum nobre rei, ilustre geração:
O sábio Henrique, pai dos navegantes,
Que faz calar a fama do Strabão
E que mandou por esses mares distantes,
Levados pela trombeta de Tritão,
Heróis, aventureiros destemidos,
Procurando lugares desconhecidos.
António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D’Água, [2004], p. 649.
Leoníada

Aquelas garras enormes,
Aquele tamanho perfeito,
Aqueles dentes fusiformes
E aquele rosnar desfeito
Em gotas de saliva. Dorme
Como uma criança. Desfeito
Em cansaço e dor,
Mas sempre com amor.

Não teme nada nem ninguém,
Não olha a meios para atingir os fins,
Caça sem desdém.
Come desde o cérebro aos rins,
As presas que mata sem
Qualquer ajuda. Sim!
É dos melhores animais no Mundo.
É grande, forte e não é imundo.

[João G.]



Asheríada

Aquele bravíssimo cão, senhor
Que tanto gosta de me azucrinar,
Tem porte altivo e sedutor,
Mas muito gosta de brincar.
Todos ficam ao seu dispor
Para não o ouvirem ladrar;
Com os seus puns desagradáveis,
Lança cheiros execráveis.

As beiças compridas e enrugadas
Põem todos num alvoroço,
Pois de baba estão recheadas
Que o tornam tão asqueroso.
E não há zonas asseadas
Com bicho tão pavoroso.
Mas tudo isto não interessa,
Já dizia o meu amigo Eça.

[Pedro]

Anti-Anne Frank
Ainda de lembrarás de, no sétimo ano, termos lido textos do Diário de Anne Frank. O poema «Anti-Anne Frank» contrasta um drama que tem as «vantagens» de ter sido protagonizado por quem o conseguia relatar, analisar (e acabou por se tornar, postumamente, famosa) e a infelicidade de quem nem pode sequer dar testemunho do seu drama. Os versos 3-7, sempre iniciados por «nunca», dão conta de episódios ocorridos com Anne Frank. Se ainda te lembrares de outros, tendo em conta os textos e o filme que então vimos, acrescenta ao poema mais versos iniciados por «nunca», idealmente com algumas rimas.

Anti-Anne Frank
Esta criança esquálida,
de riso obsceno e olhares alucinados,
nunca apertou nas mãos a fria face pálida,
nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados,
nunca enxugou as lágrimas que aniquilam e esgotam,
nunca empalideceu com o metralhar de um tanque,
nem rastejou num sótão,
nem se chama Anne Frank.

Nunca escreveu diário nem nunca foi à escola,
nem despertou o amor dos editores piedosos.
Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos
a não ser nos primores da técnica da esmola.

Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe.
E ela, raivosa e pálida,
morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.

Pobre criança esquálida!
Até no sofrimento é preciso ter sorte.

António Gedeão, Obra Completa, Lisboa, Relógio D'Água, [2004], p. 172



Anti-Anne Frank

Nunca se apaixonou de verdade,
Nunca brincou no parque,
Nunca conheceu outras culturas,
Nunca ouviu de fora a sinceridade,
Nunca sentiu o sabor da liberdade.

[Elizângela]