Friday, August 30, 2019

Os melhores textos de «O Ano da Morte de Alberto Caeiro / Álvaro de Campos»


Copio, com raras emendas, todos os textos que tiveram Muito Bom (incluo Muito Bom, Muito Bom (-), Muito Bom -) na tarefa 2 da quarentena. A ordem é a alfabética do autor, segundo o nome por que costumam ser tratados em Português. As turmas estão misturadas. E são, com efeito, muito bons textos.
Ana (12.º 3.ª)
O Ano da Morte de Álvaro de Campos
A marginal, que via agora sob uma perspetiva totalmente nova enquanto mero passageiro num comboio à hora de ponta, desdobrava-se, abraçando o seu caos característico, motivo de serenidade para aquela mente frenética que gostava de se ver replicada em exóticas paisagens citadinas. Na verdade, não tinha qualquer necessidade de andar de transportes públicos, mas a vontade de sentir os carris, aço vivo e gritante, debaixo de si, ouvir o seu estremecer constante e cheirar a Lisboa apressada exsudando por aquelas janelas insuficientemente abertas, sobrepôs-se à opção bem mais óbvia de um confortável táxi, permitida, aliás, pela carteira avultada. A cabeça doía-lhe, é certo, mas esse martelar invisível que o atormentava era já rotineiro, até mesmo uma faísca essencial para despoletar os seus devaneios por vezes escrevinhados.
Seria de esperar, até porque nunca fora uma pessoa desatenta em semelhante contexto cosmopolita e agitado que lhe alegrava as vistas, que tivesse saído em Algés – era, afinal, onde iria pernoitar, num quarto escuro e bafiento em casa de um amigo de longa data – mas a estação escapou-lhe. O sol já baixo que procurava refúgio sob o rio conferindo-lhe em troca algumas das suas quentes tonalidades dava-lhe algum conforto: lá estava o agradável laranja carregando o fecho de mais um dia, só podia ser o mesmo presente no céu de Tavira que o vira nascer, arrebatando-o de melancolia agora ao ser recordado. Fosse pela invulgar inércia que sentia abater-se sobre si ou por estar intrigado pelo que se seguiria, deixou-se ficar: já tinha perdido a sua paragem e, de qualquer forma, o comboio do tempo há muito que o deixara para trás, levando consigo a possibilidade de uma vida estável, serena e deixando-lhe apenas uma aguda autoconsciência. Ignorava que horas seriam num pequeno jogo, se é que tal se lhe pode chamar, que habitualmente fazia consigo próprio: desfrutando momentaneamente de uma ignorância temporal, sentia-se, ao aperceber-se invariavelmente se de que estava atrasadíssimo para um qualquer compromisso, regressar ao seu verdadeiro eu, ao estado em que se sentia confortável: puro nervosismo e agradável frenesim. A verdade é que sabia que nesse momento o seu solilóquio não surtiria o mesmo efeito: não tinha horários a cumprir e o vazio que insistia em aparecer naqueles limbos entre dia e noite aumentava.
Tais eram os seus pensamentos ao apear-se em Cascais, misteriosa e que pouco de si revelava da estação. Riu para dentro ao reconhecer que não se sujeitaria a apanhar a maravilhosa génese da engenharia de volta e limitou-se a chamar um bendito uber. Imediatamente percebeu que o condutor era de poucas palavras enquanto olhava a cidade, agora coberta por um escuro véu cada vez mais espesso, dissipando o vazio, dando a noite cortante por vencedora. Gozava do regresso do martelar, confortável e gritante, por entre cartazes publicitários a desfazerem-se algures na João Chagas. O cheiro das escadas do prédio era quase bafiento (nova e infernal onda de melancolia) mas antes de nelas se aventurar recompôs-se: deitou um último olhar à noite e logo um frémito o tomou.

Francisco (12.º 4.ª)
O Ano da Morte de Alberto Caeiro
Ficava para trás, então, o autocarro que o trouxera do Ribatejo até Lisboa. Reconheceu a zona de fotografias que lhe mostrara a sua mãe, era Sete Rios. Alberto Caeiro começou a ficar um pouco incomodado com a paisagem que via à sua frente, amava a natureza, não o alcatrão e os carros que passavam a altas velocidades. Não estava habituado às cidades modernas, preferia as paisagens serenas do Ribatejo, onde os pássaros cantavam de manhã até à noite. Cantos de pássaros já não ouvia, mas encontrou um jardim com árvores altas e decidiu entrar. Indicaram-lhe que aquele espaço era o Jardim Zoológico, que era preciso pagar para entrar, e decidiu entrar para ver, ainda que tivesse de se ir instalar. Saiu fascinado, tinha já saudades do contacto com a natureza, e prometeu a si mesmo que lá voltaria. Começou a andar calmamente até à paragem de autocarros, mas descobriu que a sua carreira não funcionava ao domingo. Optou, então, por ir de táxi: sempre seria mais fácil, pois já sentia algum cansaço.
Pediu ao motorista que o deixasse junto ao café Califa, que Caeiro não sabia onde era, pois alugara aí perto uma casa para os próximos meses. Intrigou-se, mais uma vez, sobre o que estaria ali a fazer, o que o tinha levado a deixar a sua vida no Ribatejo. Concluiu que não conseguia responder a estas perguntas: um dia lembrou-se de vir e veio. A meio da viagem reparou numa floresta imensa, cerrada, que se precipitava sobre a cidade. O motorista respondeu-lhe que era Monsanto, uma floresta enorme no coração da cidade de Lisboa, e que até tinha um miradouro que permitia ver a cidade inteira.
Conferiu se estava no sítio certo e foi andando na direção da casa que alugara, conforme as instruções que lhe tinham dado.  Aquela zona era muito diferente da zona da estação de autocarros, era mais calma, mais familiar. Lembrou-se que estava na cidade onde nascera, e ficou a pensar nesse momento da sua vida, perguntou-se se seria como as crianças que agora via a descerem a rua levados pelas mãos dos pais. De um lado e do outro da rua, pequenos cafés serviam casais já com alguma idade, que descansavam à sombra dos guarda-sóis enquanto se regalavam com croquetes e pastéis de nata. Era uma paisagem perfeita, que emanava tranquilidade, só a estragavam as ocasionais motas de entrega de pizza que passavam a alta velocidade. Imaginou a sua vida se nunca tivesse ido para o campo, mas percebeu que ainda assim não conseguia viver ali, afastado dos pássaros e das flores do seu jardim. Reconheceu a rua da casa que ia alugar, tinha combinado encontrar-se com o seu dono à frente do parque infantil. Agradecido por ter escolhido uma casa numa zona que tanto lhe agradava, encontrou-se com o senhorio, que lhe deu as boas-vindas a Benfica.

Gonçalo (12.º 4.ª)
O Ano da Morte de Alberto Caeiro
Grande Lisboa”, suspirava o rapaz ao passar a Ponte 25 de Abril de comboio naquele dia de sol tímido que se escondia entre as nuvens. Olhando a quantidade de prédios, estradas e carros que o esperavam, ficou triste. Não lhe agradava a falta de animais em Lisboa, muito menos a falta de espaço, mas tinha sido obrigado a regressar à cidade onde nascera depois da morte da dona da quinta (morte que ainda pesava nos seus mortiços olhos azuis). Cada vez que a tia-avó lhe falava da capital, referia a variedade de gentes que por ela passava para visitar a Baixa, local para onde se dirigia o pastor – nome pelo qual gostava de ser chamado, não se tratando exatamente da verdade. Acabado de chegar à estação do Rossio, o sol ganhara coragem para o apresentar à cidade. “Largo de Camões”, pensou enquanto procurava um táxi que o pudesse levar até ao hotel onde ficaria hospedado. “Obrigado, muito boa tarde”, disse ao entrar no velho Mercedes amarelo que cheirava a tabaco, referiu que pretendia ir para o Largo de Camões, recostou-se e pôs-se a olhar a janela.
Crianças corriam na Praça dos Restauradores assustando os pombos que tentavam alimentar-se de migalhas deixadas cair. Alberto sentia-se deslocado, a sua boina e cajado pareciam não se encaixar no vestuário escolhido pelos “alfacinhas”, mas descansou-o pensar que teria oportunidade de comprar novas roupas nas lojas da cidade. Rapidamente, para surpresa do “pastor”, chegaram ao local onde ele ficaria alojado nos próximos tempos, e gostou principalmente da proximidade às igrejas. “Muito obrigado, uma boa tarde para si”, disse, entregando o que devia ao calado taxista lisboeta que esboçou um sorriso antes de pedir que a porta do táxi fosse fechada. Olfato apurado tinha o “pastor”, logo sentiu o característico odor dos pastéis de nata de um café próximo em que decidiu entrar e experimentar um, acompanhado de um “pingado”.
Guardado no seu bolso tinha o relógio que o pai lhe deixara. Uma vez, a tia-avó contara-lhe que o pai lutara na guerra e aquela tinha sido uma prenda do Coronel. Era nisso que pensava ao subir as escadas do discreto hotel numa das ruas perpendiculares ao Largo, rua estreita e aparentemente vazia, pensou. Reavaliava agora se teria tomado a decisão certa quando uma senhora baixinha e com ar simpático o recebeu e se disponibilizou para tratar do seu check-in.Rápido, vá”, disse brincalhona a dona do hotel abrindo a porta do escuro e simples quarto que serviria de dormitório a Alberto. Estava cansado e, ao deitar-se na cama, sentiu-se a adormecer, deixando-se ir depois de uma manhã de viagem. Imaginando, no sonho, o regresso ao seu Ribatejo, os vizinhos esperando-o e convidando-o a entrar para beber um copo. Reabrindo os olhos sentiu um aperto no peito que reconheceu como arrependimento, mas não tinha escolha, era aquela a única hipótese. Ocupando a cadeira da pequena mesa de escritório, escreveu noite dentro.

Inês S. (3.ª)
O Ano da Morte de Alberto Caeiro
Inicia esta sua aventura com grande entusiasmo e curiosidade pelo desconhecido. Nunca antes saíra da quinta da sua tia-avó, situada no Ribatejo, uma zona completamente diferente deste seu novo rumo, visitado por milhares - a capital de Portugal, bastando pronunciar o seu nome para se perceber a grandeza e o prestígio desta cidade. Enquanto aguarda por outro comboio, da linha de Sintra, observa os lisboetas, tentando enquadrar-se naquele mundo, que lhe parece tão estranho e incomum. Senta-se num lugar dos poucos disponíveis e, ao longo do percurso, olha a cidade, a correria de toda aquela multidão, os prédios, as torres, as estradas e autoestradas, denotando a timidez do seu ser na expressão pálida de um sorriso.
Sai na estação de Benfica e decide que não vai chamar um táxi, nem mesmo um uber, vai a pé, recordando Cesário e desejando a sensação da realidade. Os seus olhos estranham tanto movimento, tanta agitação… pergunta-se como é possível, sem árvores nem plantas, que estas pessoas consigam respirar, sentir o ar e as coisas que as rodeiam. Fica desmotivado por uns momentos, mas logo decide não desistir da nova experiência para conhecer, de ver... não precisa questionar mais, não quer pensar. Iludido pela distância que a sua vista consegue alcançar, resolve descer a Avenida Gomes Pereira, mas rapidamente se arrepende quando toma consciência da sujidade da rua, da falta de luminosidade entre os prédios, dos odores a cigarro e a gases dos carros. Avança para a estrada de Benfica, rumo à emblemática Igreja de Nossa Senhora do Amparo e ao famosíssimo Palácio Baldaya que, para além de ser um recente espaço cultural e inovador, é um local dinâmico que tem um jardim… este pormenor agrada particularmente a Caeiro.
Sente um aroma familiar quando as portas transparentes e automáticas do Palácio se abrem… os seus olhos expandem-se perante aquela visão encantadora. Imaginara um simples jardim, não muito trabalhado e quase abandonado, mas o que os seus olhos agora contemplam é a junção de duas realidades, cidade e campo, ali, naquele espaço, num resultado perfeito. Lentamente vai captando tudo o que os seus sentidos lhe permitem: o cheiro a pão caseiro, o som das crianças a brincar e a correr pelo largo parque, as cores do céu que parecem encaixar no verde dos arbustos, os batimentos do coração que ecoam como um tambor por todo o corpo. Volta à rua e apressa-se a encontrar um hotel ali perto, quer ficar próximo daquele jardim que o acolhe novamente, como dantes sentira. Apresentam-lhe um hotel pequeno, vazio e com condições modestas... e é ali que fica.

Ivânia (12.º 9.ª)
O Ano da Morte de Álvaro de Campos
Ia ainda o dia a meio quando os seus sapatos gastos pisavam pela primeira vez, uma nova primeira vez, o chão da cidade que o seu coração tinha preferido a Londres. Vencido pelo cansaço, e assustado com os tempos que só há pouco tinham ficado para trás, decide não se aventurar pelos transportes públicos da capital. A Uber parece a escolha certa: um clique apenas e resta-nos esperar pelo nosso motorista. Nenhum minuto havia passado tão rápido, estava ainda a admirar a arquitetura do, a seus olhos, renovado aeroporto Humberto Delgado, quando uma notificação o alerta de que o seu motorista já o aguardava. Impressionado com o serviço, pegou rapidamente na mala, de cor vermelha já a desbotar, que o acompanhava, e entrou no carro. À sua frente, no lugar do motorista, estava sentado um homem de expressão serena e pele clara — os cabelos grisalhos apontavam a sua idade, entre os 50 e os 60, e os olhos azuis olhavam, sorrindo, pelo espelho retrovisor para o nosso passageiro com ar inglesado: Álvaro de Campos.
Muito atrapalhado, o passageiro, de vestes pretas e cabelo apanhado no cimo da cabeça, quase que formando uma bola disforme de cabelo, apressa-se a começar um diálogo com o seu motorista. O que estas tecnologias traziam de negativo era a falta de comunicação verbal: o destino estava na aplicação, o nome de ambos também, a curiosidade era morta com um rápido olhar sobre o telemóvel, e as perguntas ‘‘Para onde?’’, ‘’Vai cá ficar cá durante muito tempo?’’, ‘‘Já conhece a cidade?’’, deixam de ser feitas. Nada incomodava mais Álvaro do que o silêncio num sítio com mais do que uma pessoa: se era possível conversar, qual seria o sentido de não o fazer? ‘‘Tem filhos?’’, perguntou o passageiro. Entre a visão dos carros que, tal como eles, andavam pela 2ª Circular, viam-se os prédios dos subúrbios que serviam a cidade: Olivais, Teresinhas, São João de Brito. ‘’Ia ligar-lhes quando vi o seu pedido, tenho dois, sim, uma menina e um menino’’, a resposta tinha chegado. Recostou-se no banco de pele enquanto observava a cidade pelo vidro meio sujo do carro. O  destino aproximava-se ― o Bairro de Alvalade ― e o caminho deixava claro que nada se comparava a Lisboa: o tempo convidava a passear e conhecer a cidade, as pessoas eram sorridentes, e as casas acolhedoras, tudo parecia chamá-lo.
Varrido de gentes, o silêncio de Alvalade era apenas quebrado pela tentativa de regresso à normalidade pelos vendedores do mercado de Alvalade. Inconsoláveis com a pandemia que os tinha atingido, dispunham nas bancas os produtos frescos. Os caixotes amontoavam-se nos cantos. Lentamente, dirigiu-se para a porta de um prédio pintado de amarelo e branco, o número 51. As varandas, verdes, deixavam ver um pouco das casas que não se cobriam com cortinados. Na campainha, os números quase já não se viam, mas Álvaro sabia-os de cor e, sem hesitar, pressionou o primeiro botão à esquerda. ‘‘Tinha saudades tuas, entra’’, disse a voz na campainha. Escadas intermináveis separavam Álvaro da voz calorosa que o recebia, ‘‘Olá, tia’’, disse, e entrou.

Júlia (12.º 4.ª)
O Ano da Morte de Alberto Caeiro
Já marcavam três da manhã todos os relógios do aeroporto quando o último voo aterrou. Um dos passageiros, já com idade mais avançada, seguia na frente enquanto segurava fortemente o seu chapéu acastanhado encostado ao peito. «Lisboa, como é bom poder estar de volta», disse ele baixinho, como se se vangloriasse por ter conseguido voltar a pôr os pés na cidade que tanto amava depois de tantos anos longe. Inicialmente, o plano traçado era sair do avião e ainda procurar alguém que o ajudasse a encontrar um local para ficar, considerando que a sua família já havia se desvinculado da cidade muito tempo antes. «Acho que vou precisar de ajuda, meu menino», pediu assim que chegou no local onde se busca a bagagem, abrindo levemente um sorriso na esperança de persuadi-lo.  
Logicamente, toda a ajuda necessária e suporte requerido foram fornecidos de modo a deixá-lo mais à vontade, afinal ele viajava sozinho, sem acompanhante, e chamava a atenção de todos ao passar com a sua delicadeza, gentileza e felicidade genuína. «Mas diga-me, senhor Caeiro» falava o modesto António, um dos companheiros do voo, enquanto carregava a mala do passageiro – que se apresentara como Alberto Caeiro, mas pedindo para ser tratado apenas como Caeiro, nome que ele dizia admirar – para o estacionamento do campo de aviação «Porque voltar à Lisboa?». O vento batia contra o seu rosto enrugado, o que fez Caeiro abrir uma gargalhada e suspirar intensamente antes de responder à pergunta que, para ele, era retórica. «Só com o tempo aprendemos a valorizar as pequenas coisas dessa cidade espetacular, António; o ar, a pureza, o ambiente que nos rodeia... Até mesmo as pessoas boas, tal como estás a ser para mim... Essa é a Lisboa de que me lembro e de que sentia falta», concluiu, voltando a sorrir enquanto analisava a passagem do tempo, tic tac, agora em silêncio até a chegada do seu táxi previamente pedido. 
Mesmo que o passageiro não fosse de falar muito, o motorista fazia perguntas de modo a quebrar o silêncio constrangedor que, para ele, era inquietante. Ao contrário, para Caeiro, a quietude era uma das formas mais fáceis de se admirar o mundo à nossa volta, tendo ele memorizado cada pedaço de estrada que fora percorrido até à fachada principal do singelo hotel em que pedira para ficar: hotelaria Royal, próximo ao parque Eduardo VII. Ruas escuras, apenas com a iluminação dos postes, clareavam a sua mente, fazendo-o sentir paz e liberdade mais uma vez. Como estivera anos na China, país extremamente regrado, já sentia falta do ambiente acolhedor e simpático que era Portugal. Em poucos minutos – ou, pelo menos, foi o que pareceu a Caeiro –, o motorista olhava para ele à espera de que lhe dissesse o que pretendia fazer (se sairia ou não do carro, portanto). «Logo» disse finalmente Caeiro «Logo saio. Preciso de admirar o local. Sabe como é...». Os tempos seriam outros, pensou ele antes de abrir a porta do carro finalmente preparado para se despedir. 

Laura C. (12.º 4.ª)
O Ano da Morte de Álvaro de Campos
Londres havia sido, em tempos, o destino do jovem alto e elegante, de cabelo preto e liso, com risca ao lado, ou, como diria Pessoa ele próprio, o destino daquele com um «tipo vagamente de judeu português». Agora, a situação no Reino Unido está complicada e Álvaro de Campos, já com os pés assentes no aeroporto de Lisboa, cuja coroa assenta aos deuses e a um decerto alinhamento dos astros por os voos Londres-Lisboa não terem sido cancelados com a declaração do estado de emergência em Portugal, despede-se das engrenagens frenéticas e das luzes da fábrica, que tanta febre lhe causavam (oxalá não tivesse coronavírus na altura, sabendo nós da sua viagem ao Oriente). Unívoca é, contudo, a decisão entre a sua vontade e a evolução do vírus de, desta vez, assentar definitivamente em Lisboa.Rancoroso por quase não existirem táxis no aeroporto, dizimados pela concorrência, o criador de versos avança para o Uber mais próximo. «Aonde o devo levar?» foram as primeiras palavras do condutor, às quais o homem do monóculo respondeu educadamente, «Ao hotel Príncipe, por favor, se este ainda aceitar hóspedes em tão má altura.»
Sabia o caminho na palma da sua mão, de todas as vezes que voltava esporadicamente a Lisboa, sempre para o mesmo hotel (principalmente pelo preço que, agora desempregado, importava mais que nunca), mas, o que se apresentava do outro lado do vidro da janela em nada se assemelhava às suas memórias. Avançavam por entre a Avenida da República, mais especificamente, passavam o Externato Infante D. Pedro, de onde, certamente, se ouviriam as gargalhadas despreocupadas da infância, se outros tempos fossem, e, sem conseguir conter a nostalgia, o poeta recordava os seus tempos do liceu, que fizera em Lisboa. Na rua, não se avistava vivalma. Teriam, de momento, já passado a Farmácia das Avenidas, que montava um cenário tenebroso, com os clientes no exterior, protegidos com máscaras e afastados uns dos outros, por segurança. O percurso havia continuado e o olhar abatido do poeta tentava agora escrutinar o que julgava ser, até então, impossível: a pastelaria Versailles encerrada, o que, bem pensando, seria um infortúnio que o privaria de umas gulodices durante a sua estadia. Sentia já saudades da típica exaltação da vida moderna, que sabia tão bem cantar.
Centrado no banco corrido de trás, Álvaro de Campos sabia que estavam quase. As tecnologias na parte da frente do automóvel marcavam “Avenida Duque de Ávila”, a rua onde ficava o destino. Devia ser por dele se aproximarem que o chauffeur fez baixar os valores do velocímetro; quereria de tão fiel passageiro arrancar mais uns troquinhos? «E, meu senhor, chegámos ao hotel Príncipe.» foi a indireta que obrigou o poeta a despegar-se de seis euros. Ter sido modernizado o hotel desde a sua última estadia era evidente aos olhos de Campos, já fora do veículo. Esperava apenas, ao entrar na receção, que estivesse vago um dos quartos com vista para a ponte 25 de abril.

Leonor (12.º 5.ª)
O Ano da Morte de Álvaro de Campos
Lisboa apareceu-lhe, de repente, ao longe, por detrás da ponte. Estava já a ficar cansado da viagem, ou melhor, mais cansado do que habitualmente se sentia, pois nessa fase da vida andava sempre cansado com “um supremíssimo cansaço/ íssimo, íssimo, íssimo/Cansaço (…)”. Oh! Que bela visão, a desta cidade, cada vez mais bela e cosmopolita! Na verdade, não tinha grande esperança de, em Lisboa, se sentir melhor, de recuperar do pessimismo, que, ultimamente o atormentava e que o levara a deixar Tavira, a sua cidade natal, mas, mesmo assim, tinha tomado a resolução de mudar de ares e regressar à agitação da capital.  Ora bem, senhor engenheiro, estamos quase a chegar!” disse-lhe, de repente, o motorista do táxi, que, poucas palavras pronunciara, ao longo da viagem. Raramente tinha sentido o alívio de chegar a um lugar, como o que estava a viver, naquele momento: voltava novamente para junto do progresso e das máquinas, que tanto o fascinavam!
Vagamente, à passagem do táxi pelas ruas, foi notando que a cidade não estava como o normal, não era habitual as ruas estarem tão desertas... não se via ninguém. Aquela não era a sua Lisboa, a que ele conhecia e que esperava encontrar. Lentamente, apercebeu-se do que se estava a passar e recordou-se de que tinha sido declarado estado de emergência, por conta do surto do novo vírus, o Coronavírus. Estranho não deixava de ser aquele ambiente que se vivia naquele momento: apenas passara por duas ou três pessoas em duas ou três ruas e, é claro, que sentia aquela ansiedade que, pressentia, todos sentiam também.
Olhar para esta cidade vazia de movimento, pessoas, alegria, descobertas, conflitos era-lhe muito doloroso, pois via-a sempre como símbolo do futuro, onde as fábricas e as suas máquinas existiriam para sempre. Longe, e para trás, ficava já o rio, onde, apercebia-se disso naquele momento, não tinha visto o constante vaivém habitual dos barcos. Inimaginável aquela situação e aquele isolamento. “Valeria a pena viver só, sem o apoio da família e dos amigos?” eram as dúvidas de Álvaro de Campos. Em sofrimento, pensou nos seus amigos, em especial Alberto Caeiro, que tanta falta lhe faria nos próximos tempos de medo e revolta. Ir rapidamente para o seu quarto de hotel pareceu-lhe a melhor solução. Repor a movimentação, a vida que Lisboa tinha anteriormente pareceu-lhe impossível! “A fúria minuciosa e dos átomos/ A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos/ A espuma furiosa de todos os rios que se precipitam”, eram os versos que melhor mostravam como se sentia, quando o táxi parou em frente do Hotel Bragança.

Mafalda (12.º 3.ª)
O Ano da Morte de Álvaro de Campos
«Mais rápido, por favor», pensou ele, quando o Uber seguia em frente à estação do Cais do Sodré. Sabia que, por aquele andar, perderia o sol. Antes de chegar ao destino, ficou fascinado com a maravilha que o circundava: aquele azul da água, aquela ponte tão alta, que só os pássaros conseguiam tocar — mas e aquelas ruas sem ninguém? Faltavam-lhe as razões pelas quais as ruas estariam vazias - seria do frio ou do calor? Assim que saiu do carro, viu que estava tudo fechado, não estava ninguém na rua e isso tirava um pouco o encanto daquele lugar. Lentamente, desceu até à Ribeira das Naus, onde parou durante uns longos cinco minutos, refletindo sobre toda a força, energia, movimento e, até mesmo, o ruído que caracterizava aquele rio. Destemida, a água nunca parava, independentemente do que surgisse; como os turistas, que costumavam andar por estas ruas, aqueles que fazem esta cidade brilhar ainda mais. Ao olhar para o relógio, conclui que era melhor deixar esta reflexão para depois porque ainda queria chegar a casa antes do pôr do sol.
Balançando-se ao sabor do vento, Álvaro seguiu até à Praça do Comércio, onde, finalmente, percebeu a razão pela qual Lisboa estava a ser recheada por aquele vazio. O cartaz, num dos lados do muro da estátua que centra aquela praça, explicava a situação — «Um vírus que conseguiu dominar as excentricidades de tanta gente» — leu em voz alta. Num simples pensamento entendeu tudo o que se passava: assistia ao momento em que os lisbonenses iriam dar valor às coisas que realmente merecem. «Antes deste vírus, ocupavam-se com coisas que não valiam a pena» — pensava enquanto subia a Rua Augusta — «Agora sentem falta dos amigos, das suas antigas rotinas». Contava os passos como se quisesse provar algo, como se gritasse dentro de si uma vontade de sentir tudo, de todas as maneiras possíveis. Hoje é o dia da mudança para Álvaro de Campos e ele sabia, pois chegara ao sítio que o faria escrever mais. Optou por não pensar muito nisso para não criar expectativas de como seria o resto da sua vida na cidade que tanto lhe dizia.
Assim que subiu a Rua Augusta, deparou-se com a beleza da Praça Dom Pedro IV e conseguiu imaginar como seria se estivesse cheia de pessoas, de gente de todo o tipo, forma, caráter. «Não trocava estes prédios, as ruas, os carros, toda esta dinâmica citadina por nada deste mundo!» — gritou bem alto com a esperança de que algo superior o estivesse a ouvir. Ainda pasmado com o encanto de Lisboa, obrigou-se a atravessar a praça até ao Teatro D. Maria II onde fechou os olhos. Imaginou a onda de solidariedade que iria atravessar cada um de nós depois desta pandemia, de como o mundo iria mudar. Abriu a porta do seu prédio com a certeza de que aquela cidade o iria inspirar a crescer e a escrever mais e melhor, a respirar e a verdadeiramente viver.

Mafalda (12.º 4.ª)
O Ano da Morte de Álvaro de Campos
Momentaneamente, o ambiente está silencioso, algo invulgar, mas que o horário facilmente justifica: são um quarto para as três da manhã. A atenção dos presentes está nas malas que andam sobre o tapete rolante. Felizes e entusiasmados com a chegada a um lugar novo aguardam uns enquanto noutros se consegue ver a tristeza ou a expectativa do conforto de chegar a casa. As expressões e os gestos da multidão funcionam como peças, encaixadas para construir histórias na imaginação do homem alto e elegante que parece ser o único que observa. Lisboa é a cidade que os aguarda, é a cidade da saudosa juventude deste homem e o motivo de este ser o mais difícil de decifrar, se, para além dele, alguém nisso estivesse interessado. De facto, com saudades do país natal, não sabe o que esperar do regresso: as suas emoções misturam-se como tintas numa cor indefinida. A mala castanha por que esperava é prontamente içada quando se aproxima, seguindo com ela o observador para a porta de desembarque.
«Só um segundo, por favor,» é a resposta que dá à pergunta óbvia do taxista enquanto desdobra um pequeno papel. «Avenida 5 de outubro, nº 345» lê. Não parece ao motorista que o cliente não soubesse a morada, mas agradece a confirmação que evita voltas desnecessárias. Tendo na lembrança mais imagens da cidade do que nomes, pouco dizem ao passageiro os que vê quando desvia o olhar das ruas para o GPS e só se sabe perto do destino quando vê a imponente estátua que foi construída em honra dos heróis da guerra peninsular, algo que não sabe, apesar de dela se lembrar. Observa a cidade escurecida, que o fascina com as mudanças que poderá esconder nas sombras. Sente a vida dentro das janelas iluminadas, são pessoas ainda ou já acordadas, por trabalharem por turnos talvez, ou por serem escritores com hábitos noturnos, quem sabe.
«Chegámos» informa o motorista, hábito que certamente ganhara nas viagens noturnas, não fosse o passageiro sonolento não dar conta de que o carro estacionara. O caso não é esse, o passageiro já observa com interesse o prédio cor-de-rosa. Retira o dinheiro da carteira e paga ao taxista que se permite sorrir quando a porta do carro é fechada: simpática a quantia paga. Toca à campainha do terceiro direito com um certo nervosismo devido à hora, mas a porta abre-se após alguns segundos. «Entre, entre, Sr. Campos, que já é tarde» diz a voz simpática e preocupada que imediatamente o acolhe. Resolvera-se por este apartamento essencialmente pela proprietária, que lhe fizera sentir que iria encontrar o mais próximo possível de um lar. «Eu peço-lhe imensa desculpa, o voo atrasou» é a primeira coisa que diz à sorridente senhora de idade que o espera de porta aberta. «Assim, ainda dei uns últimos retoques, espero que a escrivaninha, em especial, esteja do seu agrado» (descobrira que o hóspede é poeta e está encantada). Lembra-lhe a infância o conforto que sente quando entra.

Margarida P. (12.º 9.ª)
O Ano da Morte de Alberto Caeiro
Muito tempo passou Alberto Caeiro enfiado num comboio, estava cansado. A única alegria que tinha era ter já um quarto preparado à sua espera. Rapidamente se deslocou até ao metro de Santa Apolónia para seguir até à Baixa-Chiado. Genuíno e tão simples, o viajante acabado de chegar vai observando as pessoas que passam por ele. Acha estranho o elevado número de indivíduos com uma máscara médica a cobrir a boca, nariz e olhos, mas não se questiona muito mais sobre o assunto. Rapazes e raparigas deixam um espaço de cerca de dois metros entre uns e outros enquanto esperam pela chegada do metro, que, pelo placar pendurado no teto, não demorará muito. Imagina como estará o quarto que a D. Fernanda lhe guardou, carinhosamente, para ele passar as próximas temporadas. Deu por si a lembrar-se dos raros fins de semana em que vinha visitar a capital e o quanto se divertia com aquela velhinha simpática que cozinhava bolos de canela que cheiravam a céu. Após três minutos, parou uma carruagem mesmo à sua frente, entrou e sentou-se (ninguém mostrou interesse em aproximar-se daquele estranho sem proteção higiénica).
Muito barulho preenche aquele transporte, que traz consigo um intenso cheiro a álcool e a desinfetante; muito sérias as caras que rodeiam Alberto Caeiro; muita escuridão neste túnel sem fim. Entretanto, para no Terreiro do Paço, onde entra uma multidão de trabalhadores, claramente cansados, suados e a adormecer contra as paredes de vidro do metro. Louco por poder, também ele, esticar as pernas, fica contente por chegar à sua paragem de destino. Orgulhoso por se lembrar das ruas que deve seguir, sai do metro e depara-se com uma cidade vazia, em que apenas se vê Fernando Pessoa, sentado em frente a uma Brasileira fechada, triste por já não ser alvo turístico de selfies.
Passa o Largo de Camões e segue sempre em frente até chegar à Rua da Rosa, mas pelo caminho vai olhando para as montras de inúmeras lojas vazias (só a Padaria Portuguesa está em funcionamento e o cheirinho a pão quente aquece-lhe a alma). Entra na rua do apartamento que o espera, o número da porta é o oitenta e um pelo que ainda lhe restam alguns passos. Restringido sempre ao campo, seria de esperar que Alberto Caeiro fosse homem de pouca bagagem e, fiel à sua descrição, carrega apenas uma mala grande e uma pequena mochila que consegue, facilmente, transportar sozinho. Encontra o oitenta e um e toca à porta, ao que responde uma doce voz feminina, que reconhece imediatamente. Insistente, o cheiro a álcool continua a ser foco de atenção de Caeiro e, quando lhe abrem a porta de casa, a D. Fernanda também usa uma máscara daquelas dos médicos. Repreende-o assim que o vê por não usar qualquer tipo de proteção contra a pandemia que anda a dar cabo da vida das populações. Absorve toda a informação dada pela velhinha e, com facilidade, apercebe-se de que a situação é grave e lavar as mãos torna-se na sua principal preocupação imediata.

Margarida V. (12.º 9.ª)
O Ano da Morte de Alberto Caeiro
Mergulhado no seu entusiamo, o homem de cabelo grisalho (que, pelo tom claro, deduzimos ter sido outrora loiro) salta da camioneta depois de uma viagem de cinco horas. A t-shirt branca, com um qualquer logotipo de uma qualquer marca, contribui para o ar jovem deste homem que, afinal, tem sessenta e cinco anos. Rápido e ágil, açambarca com um só braço a pesada mala azul escura. Grande sorte a sua foi ter avistado um táxi ao longe e, com um vigor singular para a sua idade, correu a tempo de o apanhar. Assim que se sentou, apercebeu-se de que não sabia para onde queria ir. Riu-se para dentro da sua situação insólita. Ir do Douro a Lisboa, sujeitando-se a uma viagem longa como aquela, sem saber o que viria fazer em concreto à capital, não era incomum para este homem, mas decerto o seria para outro qualquer. Desde sempre que não se preocupava com o dia de amanhã. Amanhã conformar-se-ia com o que acontecesse, hoje desejava, num impulso repentino, ir “Até Belém, se faz favor”.
Lentamente, uma brisa que entrava pela ínfima brecha da janela clareava os pensamentos de Alberto Caeiro. Em êxtase, saboreava a arquitetura verde do Parque Eduardo VII, que, graças ao trânsito das horas mais concorridas da cidade, podia analisar com mais calma. Marejados de uma alegria serena, os olhos claros deste homem saudoso dos imensos vales do Douro, iluminavam-se com os pequenos perímetros verdejantes que a cidade de Lisboa permitia. Onde iria dormir não o sabia, onde jantaria também não, nem da razão de se encontrar ali tinha conhecimento, mas tinha a certeza da pureza daquele momento, em que, embalado pelo balançar do carro, revia, quase como que pela primeira vez, a cidade onde nascera, e onde, por ironia da vida, viria a morrer. Suspirou preguiçosamente agora que se aproximava do seu destino, “Saio no jardim botânico, se não for incómodo”, “Não é incómodo nenhum, é já depois desta rua”, respondeu o taxista envelhecido.
Vacilaram, diante de um banco do jardim, as pernas cansadas de deambular pela natureza tropical que encontrou em plena cidade europeia: o cheiro a verde, o ar denso e inebriante, as árvores altas e corpulentas que protegem aquele lugar emocionavam o velho poeta. Imaginou-se estendido nas ervas, apenas a respirar, a ouvir o canto das aves e o correr do rio, sem nenhum pensamento obsoleto, sem nenhuma preocupação, como a questão da sua estadia. Lembrou-se, subitamente, que a sua neta o ensinara a reservar um airbnb na internet e, por sorte, como quase tudo o que lhe sucedia, encontrou um apartamento disponível em Belém. Amparado pela imagem da cama confortável que o esperava após este longo dia de viagem, navegou serenamente pela calçada de Belém, que escurecia agora que o sol se deitava. Numa questão de minutos, cumprimentou o dono do airbnb, pousou as suas coisas na cama, tomou banho, descansou um pouco no sofá, sentou-se à mesa de jantar, e escreveu.

Marta (12.º 4.ª)
O Ano da Morte de Álvaro de Campos
Monocromático, o céu que nessa manhã entristece Lisboa, torna-lhe vagarosa a saída do aeroporto, em que uma multidão exaltada se confunde com o r-r-r-r-r-r dos veículos que deixam de si apenas um relance rápido. Agonia-o os corpos deambulantes, o cheiro vivo da névoa escura que deixam os que se afastam a grande velocidade. “Rua dos Soeiros, por favor” indica o homem alto e elegante ao rapaz franzino, que,  com um desses aparelhos luminosos a entreter-lhe a visão, o encara, demorando-se com descaramento no monóculo que usa o passageiro. Tira do bolso um cigarro, e, acendendo-o, contempla uma Lisboa que passa fugaz diante de si. “Ai ai”, exaltado, o condutor pede-lhe que não fume na viatura.
Demora-se um pouco mais, o cheiro venoso entranhando-se no cabelo bem penteado, de risco ao lado, chegando-lhe os ruídos das buzinas nas vias entupidas por outros, que, como ele, se cingem a uma janela pequena que tão pouco de Lisboa os deixa observar. “Oh, que maçada”, suspira ao apagar o cigarro e olha o ecrã intermitente em que o tempo vai passando e com ele cresce o cansaço. Muda de estação, o rapaz franzino, as canções inglesas trazendo-lhe uma lembrança instantânea da frieza das ruas londrinas. Inspira profundamente na tentativa de regressar ao presente. Não sabe ainda para onde vai, espera uma rua agitada de calçada irregular, uma tabacaria do lado oposto ao quarto em que irá dormir. Grandes cartazes decoram fechadas de prédios, palavras que lhe ficam gravadas na cabeça e lhe dão vontade de mais tarde se debruçar sobre elas. Uber Eats, uma imagem de uma refeição de cores vivas que lhe faz sentir apetite, lembrando-se de que há muito que o corpo reclamava alimento. Esquecera-se que trazia no bolso um chocolate que lhe havia deixado a jovem elegante, de farda engomada e cara pintada, que o acompanhara no avião. “Senhor, estamos quase a chegar”.
Corre-lhe no sangue um frenesim intenso de voltar a sentir na face a aragem lisboeta, a tontura das lâmpadas que distorcem as noites. Ali, numa rua sempre a subir, vê beijos obscenos e demorados, não há sinal de criadas, há pessoas que passam e não dão por nada. Reduz-se a velocidade que o fazia encostar-se ao assento. Respeita o valor que surge no ecrã luminoso e deixa-lhe na palma da mão uma nota amarrotada. Imagina qual das janelas será a sua futura casa, tira do bolso o papel onde escrevera o número da porta. Lá fora, vê a estranha ousadia do vestuário, as esplanadas vazias, sem quem escreva na névoa do fumo. Hora de subir à casa em que morava a sua tia, já falecida, de lembrar como aquela e outras enchiam a mesa posta no seu dia de aniversário. “Obrigado”, leva a pouca bagagem em direção à porta principal, sentindo-se extremamente cansado, pensando que nesta Lisboa revisitada serão muitas mais as noites que passa acordado.

Pedro (12.º 4.ª)
O Ano da Morte de Álvaro de Campos
Prostrado diante da via férrea da Estação Ferroviária de Benfica, Álvaro de Campos admirava a complexidade do engenho mecânico, portento de força e aceleração, máquina de movimentos pujantes, calibrados na perfeição. Enquanto caminhava em direção ao táxi, estranhou o débil fluxo de viajantes, tão distinto da convergência desmedida que a memória ressuscitara. «Destino?», a entoação seca, impaciente, imposta em tão breve palavra, quebrou abruptamente a rede de recordações do tripulante alto e magro, transportado para os tempos de infância em que brincava com o grupo de amigos na estrada, livre de entraves. Respondeu com hesitação, não por ignorar o que dizer, mas porque o invadira uma náusea intensa, daquelas que corrompem o espírito e subtraem a vontade. O veículo avançava energicamente pela Estrada de Benfica, remédio para a indisposição do poeta, que abrira a janela e apreciava a brisa inebriante, cabelos negros espalhados no ar, tal como lhe acontecia quando corria com desvario pelas praias de Tavira, engasgando-se no próprio riso.
Prédios e montras remetiam-no para as ruas de Glasgow, que, por momentos, sobrepuseram-se à imagem da freguesia lisboeta, criando um cenário em que duas realidades se fundiam subtilmente numa variedade de perfumes, tons e movimentos. Interrompido por um solavanco, despertou do sonho para colidir com o deserto urbano, de novo a carência populacional, a tristeza e solidão reinando na decadência. «Não se vê vivalma», comentou, e o motorista afirmou que era consequência da pandemia que assolara o mundo, as pessoas escondiam-se em casa, receosas, duvidavam de que o tormento cessara em definitivo. Tateou o bolso do casaco, à procura de um lenço para limpar a lente do monóculo, e analisou a paisagem: nas pastelarias não se viam os velhos sorridentes, entretidos a conversar, de chávena ou carta de jogo na mão; nas lojas não se encontravam as mulheres curiosas, admirando os vestidos que desejariam comprar; nos parques não corriam as crianças de joelhos manchados, incansáveis, perseguindo uma bola. O carro parou, em consonância com a dinâmica citadina, e o passageiro saiu, profundamente revoltado, inconformado com a irreversibilidade do tempo, ou com a sua recusa em prosseguir.
A tentativa de se abstrair de todos os pensamentos e imergir nas sensações envolventes foi sabotada pela depressão e angústia que lhe provocavam, uma entidade devastadora havia aproveitado a sua intangibilidade para fragmentar uma nação, engoli-la no esquecimento da felicidade prática e infantil. Levantou o pulso e olhou para o relógio, dezoito horas em ponto, o tempo não estagnara, mas o sino da igreja de Benfica não soava, a engrenagem desistira. A distância até à residência do colega que o iria acolher não era grande, mas o trajeto foi penoso, Campos estava cansado. Antes de atravessar a porta, ouviu um ruído elevado, imponente, reconheceu-o, um Airbus a caminho de terras britânicas, e sorriu ironicamente. O quarto exíguo não lhe agradava, mas deitou-se na cama com alívio, furioso, refletindo no adormecimento da vida, no caos silencioso em que a humanidade caíra e na sua insignificância no meio de tudo aquilo.

Rodrigo (12.º 4.ª)
O Ano da Morte de Álvaro de Campos
Já procurava por um táxi há mais de dez minutos quando vislumbrou o pequeno veículo amarelo no centro da Rua da Prata, brilhando na noite escura e levando esperança ao coração dos viajantes. O motorista abriu-lhe as portas, um convite a um mundo de estofos escuros e macios impregnados com o cheiro bafiento da humidade, que se viu impossibilitado a recusar, à medida que o vento frio lhe castigava e roupa e lhe arrefecia os ossos cansados. Álvaro de Campos observou as suas malas a serem enfiadas abruptamente na pequena bagageira, curvando-se para conseguir entrar e sentar-se no banco, tossindo com força quase de imediato. O cheiro era mais forte do que pensara, invadindo-lhe as narinas e embaciando-lhe a mente, agredindo-o com uma ligeira tontura que o deixou desconfortável, quase arrependido da decisão de apanhar um táxi.
Respirou fundo, contemplando pela janela a rua que se estendia para o infinito nas duas direções, impressionantemente gigantesca.  O motorista perguntou-lhe para onde queria ir, e abriu a boca para falar, pensando na melhor forma de explicar o que queria. Disse-lhe, por fim, que o levasse até à Igreja de São Roque, e o táxi arrancou poucos segundos depois. Reparou no tremor do carro, sentiu o choque das engrenagens e o poder da mecânica do motor, sendo incapaz de conter um sorriso perante o engenho humano a que o mundo se habituara. Ia já percorrendo a Rua da Alfândega, vendo a multidão que enchia a Praça do Comércio, gritando e chocando entre si num alvoroço ofuscado pela escuridão do céu. Gostou de ver a mistura de pessoas e de escutar o barulho das vozes sobrepostas, sentindo-se subitamente seguro e confortável no isolamento que o táxi lhe proporcionava. O centro de Lisboa passava rápido, imparável, acelerando o coração do poeta.  
Fechou os olhos por algum tempo, não soube quanto, e, quando os abriu, reparou que já tinham feito a Rua do Arsenal e estavam a meio da Rua do Alecrim. Espantado, indagou acerca da duração do seu breve descanso, surpreendido pela aparente velocidade do tráfego rodoviário. Recordou as últimas viagens que fizera a Lisboa, uma Lisboa tão diferente daquela que se lhe desenrolava à frente, quase desconhecida. Reviu mentalmente o percurso, apercebendo-se de que já estavam na Rua da Misericórdia, seguindo-se a Rua de São Pedro de Alcântara, onde o táxi começou a abrandar. Estacionou junto à igreja, virando-se o motorista para trás de mão estendida, esperando o merecido pagamento. Inevitavelmente, após entregar ao condutor uma nota, Álvaro de Campos enfrentou uma vez mais o frio noturno. Reteve o olhar no táxi que se afastava, vendo-o dar a curva em direção ao Bairro Alto, dirigindo-se finalmente para a casa que alugara dias antes em frente ao edifício que lhe servira de sinalização ao taxista. Após três lanços íngremes de escadas, chegou ao apartamento, atirando as malas ao chão e estendendo-se na cama, esperando ser levado pelo sono.

Sofia (12.º 3.ª)
O Ano da Morte de Alberto Caeiro
Seguia com firmeza o seu instinto apesar de nunca ter pisado estas ruas, ia por onde a luz lhe era mais agradável à vista e o som mais melodioso aos ouvidos, onde os navios deixavam de se ver e os elétricos de se ouvir. Ouvidos de tísico faziam-no ouvir demasiado o ruído da cidade, para além de não estar habituado a estes sons e pretender estimar a sua audição, conseguia prever de longe quais as ruas mais agitadas. Ficara sempre pela quinta no Ribatejo, mas, agora que estava em Lisboa, pretendia desfrutar dos cheiros das ruas, das cores dos edifícios ricos do ponto de vista arquitetónico que agora inundavam a cidade e da brisa que subia do Tejo até à Ajuda. Ia em paços largos, desfrutando as novas sensações que descobria e que o invadiam agora como outrora o invadira o ar do campo. As suas poupanças permitiam-lhe apenas ficar no Lisboa Camping & Bungalows, mas não seria algo que o incomodasse muito.
Subia até ao Alto da Ajuda enchendo bem os seus frágeis pulmões que não escaparam da tuberculose no século XX e que agora também estavam em perigo pela exposição ao novo vírus do século XXI, COVID-19. O seu olhar saltitava ora para gatos, que trepavam os muros de casas abandonadas, ora para dóceis senhoras, que, empoleiradas à janela, olhavam as ruas vazias com a alma ainda mais vazia e amedrontada. Usufruía destas imagens, não para refletir sobre elas, mas para apreciar a sua verdadeira essência, a de serem e estarem ali diante dele. Soube desde logo que não seria um vírus moderno que o iria impedir de conhecer a capital e continuava a subir em direção ao Parque Florestal de Monsanto, onde ficaria hospedado. Atravessava o Jardim Botânico da Ajuda com o olhar desconcentrado de quem olha para algo tão familiar que já não lhe oferece qualquer estímulo.
As avenidas eram agora únicas e com vistas deslumbrantes para o rio. Lisboa, vista dos miradouros por onde passava, Montes Carlos e Moinho do Penedo, era ainda mais bonita do que Caeiro imaginara enquanto ouvia a sua tia-avó queixar-se dos campos do Ribatejo. Via já o parque de campismo e ficou feliz por ouvir suavemente os pássaros cantarem e saber que acordaria assim todas as manhãs nos dias seguintes. Entrou finalmente na receção e de imediato apareceu um homem equipado com luvas e máscara e um ar preocupado. “Senhor, desculpe mas não pode estar aqui, estamos fechados por medida de prevenção”.

Teresa (12.º 3.ª)
O Ano da Morte de Alberto Caeiro
Mal saiu para o exterior da estação de comboios do Oriente, o sol encandeou-lhe os olhos. Alberto Caeiro era um homem do campo, muito habituado ao ar livre, mas sempre tivera esta sensibilidade ao brilho extremo que o cegava momentaneamente. Reparou que, apesar da luz, as ruas da cidade eram ainda mais cinzentas e mais tristes do que imaginara. Ir para o Restelo seria um desafio. Andar de carro estava fora de questão (tinha uma aversão a esses veículos barulhentos, suscitadores de claustrofobia e desprovidos de alma que as pessoas teimavam em usar mesmo quando não precisavam), a pé demoraria demasiado tempo, e preferia não ter de andar mais de comboio, pelo que a única solução seria apanhar o autocarro que, apesar de tudo, sempre tinha mais pessoas, mais espaço e mais ar para respirar.
Tentou perguntar a alguém qual seria o melhor autocarro a apanhar, mas, apesar de a rua estar cheia de pessoas que passavam para todos os lados, vindas não se sabe de onde, todas pareciam estar demasiado ocupadas, ou apressadas, para poderem dispensar um momento para ajudar um pobre viajante perdido. Era a primeira vez de Caeiro numa grande cidade e a experiência, até ao momento, não estava a ser nada positiva. Riu-se com a perspetiva de ficar de pé, parado, durante dias, até chegar a altura de regressar a casa, apenas porque ninguém era capaz de lhe dar umas simples indicações. Entrou no primeiro autocarro que viu, sem sequer olhar para o número que ostentava na fronte, e confirmou com o motorista que sim, passava no Restelo e sim, podia sentar-se onde quisesse, exceto nos lugares prioritários que estavam devidamente assinalados. Sentou-se, e sentiu de imediato um forte odor a tabaco, oriundo de um velhote de bigode branco sentado à sua frente, e a senhora que se encontrava ao seu lado, de pé, emanava um agradável e familiar aroma a flores silvestres. Atrás de si, duas jovens tagarelavam sobre uma nova epidemia que parecia estar a assombrar uma cidade chinesa de que Alberto Caeiro nunca ouvira falar.
Meio a dormir, encostou a cabeça na janela e foi vendo a cidade pachorrenta a passar por si. As pessoas mudavam progressivamente de aspeto: os executivos de fato e gravata davam lugar a estrangeiros escaldados pelo sol e máquinas fotográficas ao pescoço, que depois eram substituídos por mães que levavam os filhos pelas mãos e velhinhas que carregavam sacos de compras. Rapidamente despertou do seu transe. Quando o autocarro abriu as portas numa paragem que dizia “Restelo”, Alberto Caeiro percebeu que estava na altura sair e voltar para a rua, movimentada e barulhenta. Um pouco apreensivo, com medo de se perder, foi percorrendo as ruas, seguindo as indicações que lhe tinham sido dadas. Entrou, finalmente, na grande vivenda cor de laranja de janelas verdes que já tantas vezes vira em fotografias. Saudou entusiasticamente a velha tia com um abraço, enquanto da cozinha saía um convidativo cheiro a bolachas acabadas de fazer.

Tita (12.º 3.ª)
O Ano da Morte de Alberto Caeiro
— Maldito vírus. Andaram a cortar estradas para evitar a circulação em demasia, daí eu estar a dar estas voltas maiores, perdoe-me se tiver pressa. – Resmungou o taxista entredentes, num tom quase automático e impessoal. Garantia que “toda esta história da pandemia” era um esquema do governo para destruir a economia de algumas indústrias, mantendo a população sob controlo, à semelhança de uma ditadura – perdia-se em teorias de conspiração enquanto Alberto, no assento ao lado, ouvia pouco atentamente. Admirava as ruas estreitas, os prédios pouco modernos, os pequenos negócios que preenchiam aquela zona que já parecia ser próxima do seu destino final, Benfica. Reconhecia pouco — afinal, vivera em Lisboa meia dúzia de anos durante a sua infância, antes de se ter mudado para casa da tia. Iluminados pela luz ténue dos candeeiros de rua, os becos inundados de pó acumulado pareciam-lhe familiares, embora demasiado desertos (até mesmo para o que é de esperar daquela zona fronteiriça da capital). Tal era o silêncio que invadia as ruas, que parecia entrar pela janela do carro, roubando-lhe o oxigénio e esmagando-lhe a pele contra os ossos. A conversa disparatada do motorista estava-lhe já distante e parecia incongruente com o vazio que preenchia a cidade.
Pouco depois, chegavam à Avenida Gomes Pereira. Sem proferir uma única palavra, o taxista encostou o carro à berma e saiu, tratando de tirar a pequena mala do porta-bagagens enquanto o passageiro contava, lentamente, as moedas que encontrara no bolso. Honesto como era, entregou a quantia certa, acompanhada de um atrapalhado pedido de desculpas pela falta de gorjeta. Esticou as pernas para fora do veículo, parando um pouco antes de sair para se espreguiçar – tinha sido uma viagem bastante demorada da estação de comboios de Sete Rios até ali. Não que tivesse sido entediante, muito pelo contrário. Ignorando os indícios deprimentes do surto, ocupara-se a observar os prédios por que passaram e as estradas a que não estava habituado. Caeiro saiu do carro, pegou na mala (que o taxista, entretanto, lhe estendeu, respeitando as precauções indicadas pela DGS ao manter a distância recomendada) e procurou com o olhar a porta do prédio onde ficaria hospedado. Hotéis estavam fora do seu alcance financeiro, por isso, e não tendo uma residência própria onde ficar nos meses em que estaria em Lisboa, escolhera alugar um quarto humilde em casa de uma senhora de idade, que lho disponibilizara em troca de ajuda nas compras de supermercado. Não demorou a encontrar – o número 7 era bem visível por cima da porta de entrada. A rua parecia-lhe tranquila. Instantaneamente, sentiu-se em casa. Ainda nem tinha entrado no prédio e sentia já os músculos a relaxar.
Tocou à campainha. Imponente, séria, a anfitriã abriu a porta. Tremendo ligeiramente a mão, gesticulou, para que entrasse, com a autoridade sólida de uma pessoa que já conhece o mundo. Alberto sorriu e apressou-se a entrar.