Sunday, August 20, 2017

Luís Soares



De Luís Soares tenho estado a ler Os Adultos (interrompera a leitura o ano passado, mas não porque não estivesse a gostar). Embora isso não esteja explicitado no romance — e o próprio autor considere com mais alusões autobiográficas o seu primeiro romance, Aquariofilia, de 2003 —, parece-me óbvio que o texto teve bastante inspiração nos tempos de estudante do escritor e que um dos espaços é identificável com a Secundária de Benfica, aliás, já então Secundária José Gomes Ferreira. Além da experiência sobre a escola, Os Adultos mostra um conhecimento especializado das tecnologias de informação, um interesse continuado de Luís Soares — salvo erro, mesmo em termos profissionais. No livro, acompanhamos o que podemos considerar o advento das redes sociais, mas com a intuição de quem antecipa o que só tem chegado à ficção mais recentemente.


Excerto da capítulo 1 de Os Adultos («Hoje»), pp. 17-19:
Há três dias.
Salvador pára junto ao portão, os sons do metal a ranger quando o abre de par em par, das cigarras nos arbustos, das suas solas no alcatrão, nítidos como a noite alastrando no céu. Estou de volta ao local, onde lhe toquei no ombro, o local do... não, crime não é a palavra. Está sozinho. Ainda não começaram a chegar. Por um momento sozinho. Helena não virá, Eva prometeu substituí-la, a noite toda, Eva, a noite toda. Tanto melhor. Pára e olha a escola, os contornos das coi­sas vibram com a temperatura, cortados com violência, assim nas esquinas dos edifícios como nos segredos dos corações. Vai recebê-los ali, enquanto César e os outros dão os últimos retoques na decoração, lá dentro. Vai receber os que conhece de todos os dias e os de outras turmas. Vai receber aqueles três, limites do seu mundo possível. Estende a mão como se o tocasse, como se fosse um ombro de novo, um princípio.
Não fecha o casaco, nem o devia ter vestido, sente-se preso, abafado. Vira-se, olha a rua. A escola fica encravada no cotovelo de uma praça delimitada por edifícios de habitação de seis, sete andares, uma rotunda alongada, quase um pátio de aldeia. Ele próprio não mora a mais de duzentos metros. Olha os olhos dos prédios. A maior parte das janelas estão abertas, convidando o eventual fresco da noite, mas nem uma brisa faz estremecer as copas das árvores. Ele sim, estremece. É noite de baile. Sente-se agitado, irrequieto. Será por Eva? Tiago, Jorge? Será por todos eles? As aulas acabaram. Para ele, para eles. Há os que vão para a faculdade, claro e naquela escola são a maioria, mas há uma sensação de desfecho em tudo aquilo, que o ritual acentua. É um fim. É o meu fim. Sacode a cabeça, tem de se manter atento hoje, a pressa do seu sangue o exige.
Um Baile de Finalistas. Soa evidente, como se o normal fosse professores e alunos levantarem-se dos seus lugares e dançarem escola fora, deixando-a vazia para os meses de insuportável calor. O calor que os afoga já, apesar de ser ainda Junho. Salvador não gosta de pensar que o baile é uma americanização dos hábitos da escola, prefere imaginá-lo como uma intervenção surrealista colectiva. De um momento para o outro todos se levantam e começam a dançar, sobem a colina até ao alto, valsam até ao ginásio, atraídos pela música como ratos em Hamelim. Depois de três dias de reuniões, a primeira quinta-feira de férias é a data escolhida, para não cair em cima dos exames. As regras combinadas são simples: vestimenta a rigor (fato e gravata para eles, vestido de noite para elas); nada de bebidas alcoólicas; hora de fim, máximo dos máximos, às três da manhã. E eis os primeiros, virando aquela esquina do café. Aquele café, onde tudo começou na realidade. Aclara a garganta, tenta encontrar um «boa noite» audível na sua voz.
A temperatura, contudo, desacelera o entusiasmo. Passa um pouco das dez da noite e estão ainda uns opressores 32°C. O declive natural, onde se aninha a escadaria da entrada, não escapa ao ar quente almorávida, subindo de sul para norte, do interior para o litoral, arrasando florestas, bosques e simples mato à mínima faísca. Os jardins mal cuidados definham ressequidos, o metal da vedação queima. Ali mesmo em frente ao portão, mais adiante, na sombra dos desfiladeiros separando os blocos, a última luz pinta o céu de um azul excessivo antes da escuridão. Entre os alunos vibra, contagiante, a vontade da festa no espaço cavernoso do pavilhão gimnodesportivo. Imaginam-no um reduto de frescura e liberdade, uma catedral na sombra clemente da noite, onde poderão libertar a electricidade acumulada, mas também ali a atmosfera adquiriu a consistência pastosa e picante que, por todo o lado, tolhe a acção.
Olha-os. Olho-os. Que compenetrados no seu papel. As turmas de outros anos não foram convidadas, continuam em aulas, e aqueles miúdos, de 17 e 18 anos na sua maior parte (Eva, por exemplo, tem já 19), sentem-se especiais, por uma noite mais próximos da idade adulta, mais longe da infância e das coisas infantis. Passam o portão de braço dado, eles e elas, caminham solenes até ao ginásio, nas traseiras. Cobre-os já um véu, a nostalgia da inocência perdida, mas não receberam ainda mais do que leves arranhões da dureza da realidade.
Olho para o relógio. Já passou quase uma hora. Há uma hora que estou aqui a vê-los entrar? Avançam em câmara lenta, embalados no enlevo do momento, actores de uma última encenação. Se calhar é apenas a roupa a mascará-los. Sei tanto de máscaras, pensa Salvador enquanto se encaminha também ele para o ginásio.
Badana de Os Adultos:

Fica aqui um microfilme feito por uma colega vossa mas de há uma década— no ano letivo de 2007-2008 — sobre outro livro de Luís Soares, Em Silêncio, Amor, que saíra poucos meses antes (Cruz Quebrada, Oficina do Livro, 2007). Lembro-me que a Carolina (do 7.º 6.ª ao 12.º 1.ª — 2004 a 2009-2010) tinha uma leitura em voz alta perfeitíssima, costumava vencer as nossas LC de então:

O blogue de Luís Soares é dos melhores de todos os que conheço sobre literatura, cinema, etc., mas usa cada vez mais o inglês. Nele encontrei indicação deste site sobre capas de livros (na quarta fila, livro de Clarice Lispector que lhes recomendara — aqui —, aliás ao mesmo tempo desaconselhando-o por ser grande).
Vi também este texto do autor sobre escola e media:
 

E também foi no blogue de Luís Soares que vi este «Para que serve a literatura?»:




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