Tuesday, September 13, 2011

Português

Anamneses

Trata-se de reminiscências de incidentes sem grande relevância, gravados na memória de tal modo, que é possível descrevê-los, ou narrá-los, em mais tempo do que aparentemente mereceriam. (Seguem-se as que escolhi para um número do Voz Activa.)

Julho, praia da Torre, Oeiras — Entro na água fria do mar e atiro-me de costas para flutuar. Os ouvidos molham-se (algo de que não gosto nada) e volto à vertical num sobressalto. A curiosidade faz-me querer repetir, e regresso à posição de flutuação. A olhar para o céu de braços esticados e costas hirtas, deixo os ouvidos cercarem-se por água e escuto sons que nunca ouvira: presto atenção e fecho os olhos... [Luísa Morgado, 10.º 3]
18 de Julho, manhã, praia Manuel Lourenço — No meio do mar estávamos só nós três. As minhas irmãs tinham-me incentivado a afastarmo-nos da costa naquele barco a remos insuflável. Já era possível ver outras praias ao longo de Albufeira e o meu pai tinha diminuído terrivelmente. O sol embrenhava-se na pele depois de reflectido na água salgada e a temperatura dos nossos corpos começava a aumentar o suficiente para a conversa ter parado. Elas estavam deitadas cada uma para seu lado e, na impossibilidade de fazer o mesmo por estar a assegurar o sentido correcto do barco, decidi apenas relaxar e ouvir. E, então, apercebi-me de que o que ouvia era o silêncio. [Pedro Ramos, 10.º 3]
Agosto, algures no norte — Começa a chover. Torrencialmente. Apressamo-nos todos para as nossas casas, mas eu e um tio entramos no carro. Estava bem mais perto. Ligamos o carro, chegamos a um armazém. As casas ficaram sem luz, devido à forte trovoada. Viam-se rostos de preocupação em todos, todos temiam os seus terrenos. Era uma aldeia sem cor, cinzenta. Esperámos que tudo aliviasse e fomos ver os prejuízos. [João Guedes, 10.º 3]
Julho, à tarde, jardim — Um dia de férias, no meio de risos e conversas parvas entre amigos. Observo o ambiente à volta, ainda a rir-me sonoramente da última piada e gozando a minha juventude. Reparo em duas pessoas sentadas num banco. São idosos, estão de mãos dadas, mas nada dizem um ao outro. Apenas aproveitam o momento, desfrutam do silêncio, um silêncio saudável. Questiono-me se vão ficar parados no tempo, de mão dada, a gozar um dos últimos anos das suas vidas. A mão do senhor desloca-se subitamente e agarra na cara da senhora, virando-a para si. Dá-lhe um beijo. As suas expressões mudam visivelmente: agora, não só refletem descanso, felicidade, como mostram um sentimento que nem eles conseguem explicar. Estão incondicionalmente apaixonados. [Maria Inês Silva, 10.º 4]
Agosto, quatro da tarde, restaurante Siesta, em Algés — Estamos a tomar um «almoço alancharado». Vemos as turmas de barcos à vela parados no rio, a almoçar e a conversar de uns barcos para os outros, enquanto comemos uma musse de chocolate branco, especialidade da casa. [Miguel Dias, 10.º 4]
Vou pela rua com a Júlia, agarrando no saco de pão seco que impedi que fosse para o lixo naquela manhã. Pedi para irmos oferecê-lo às aves da Gulbenkian. A Júlia agarra-me a mão para atravessar a rua e chegamos ao jardim, contornando a barreira de ferro que proibe a entrada dos carros. Desato a correr até ao lago e começo a distribuir o pão por patos e gansos, que o devoram a grande velocidade. [Marta Moreira, 10.º 4]
5 de Julho, às duas da tarde — Na paragem de autocarro não se encontra mais ninguém. Apenas eu e uma senhora que deve ter cerca de setenta anos. Olha atentamente para a palma da mão, como se nunca a tivesse visto antes. [Inês Marques, 10.º 4]
Meados de Julho, à noite, em casa — Aquela rapariga especial para quem mando mensagens todos os dias hoje ainda não me respondeu. Fico a pensar se está sem bateria, até que acabo por adormecer, à espera de uma sua mensagem. [Paulo Machado, 10.º 9]
Meados de Agosto, seis da manhã, no Algarve — Deitada na cama, de olhos abertos, sem conseguir dormir. Levanto-me e abro os estores. O sol já nasceu. Sento-me no parapeito a janela e aprecio o silêncio e quietude da madrugada no campo. Observo as árvores, os pássaros, e apercebo-me de como a natureza é bonita. [Rita Romeiras, 10.º 9]
20 de Agosto, três da tarde, paragem de autocarro, Albufeira Centro — Estávamos eu e o meu irmão à espera da namorada dele, sentados no carro fresco por causa do ar condicionado, quando saímos para receber a visitante. Sentimos de imediato um bafo de ar quente e árido. Sobre a estrada viam-se ondas transparentes provocadas pelo calor. [Pedro Direita, 10.º 1]
24 de Setembro, nove da noite, na Venda do Pinheiro — Recebemos visitas em casa, de dois amigos de longa data da minha avó. Um deles fez-nos o jantar. Quando estava sentada à mesa, reparei que falavam num tom de voz muito alto. O tema da conversa era de tal maneira agradável que falavam todos ao mesmo tempo. [Mónica Rocha, 10.º 1]
19 de Setembro, por volta das seis da tarde — Estou à espera que o metro chegue, sentada, vendo os movimentos de cada pessoa que ali está. Finalmente, as carruagens chegam. Levanto-me num pulo e tento arranjar um lugar. Mas era tarde de mais... [Joana Oliveira, 10.º 1]
20 de Julho, oito da noite, Restaurante David, em Benfica — É o dia de anos da minha irmã Mónica e, por isso, decidimos ir jantar fora. É bom ouvirmos as histórias engraçadas que a família conta ao longo do jantar. Depois de comermos, cantamos os parabéns. É engraçado ver a minha irmã vermelha de vergonha por toda a gente no restaurante ficar a olhar para ela. [Sol Martins, 10.º 6]
Meados de Agosto, Espanha — Toda a gente está feliz, a família está reunida. Sinto no ar a realização que nos vai no coração. Como é bom sentir a força os seus sorrisos! Estou com os pés descalços, o frio do mosaico refresca-me. A brisa quente, em contraste, aquece os poros do meu corpo. [Rita Gaspar, 10.º 6]
5 de Agosto, duas da tarde, no autocarro — Entrei no autocarro há três paragens e ainda me faltam outras tantas. Estou com os fones nos ouvidos e oiço música. Está um calor infernal e, mesmo não estando o autocarro cheio, o cheiro não é agradável. À medida que a oiço, parece que aquilo que vejo se encaixa perfeitamente na música, como se fosse um videoclip. Um menino, com cerca de cinco ou seis anos, olha para o vidro e vê um mosquito. Bate no vidro de forma a matá-lo com a mão, limpa-a e olha para mim com um sorriso doce e meio tímido. [Mariana Luís, 10.º 6]
3 de Agosto, quatro da tarde, praia de Carcavelos — Estou sentada numa cadeira bem enterrada na areia, debaixo do chapéu para fugir ao sol. A maré começou a subir e a água alcançou as toalhas e os bens de quem se tinha estendido lá à frente. Como é a preia-mar, as pessoas estão a passar as coisas todas cá para trás. Quase que já não se vê gente lá à frente. Estou agora apertada na minha própria cadeira e aquele espaço que havia escolhido ao chegar é agora partilhado com dúzias de pessoas que, a cada nova onda, fazem o favor de gritar, avisando os que por algum motivo ainda não se aperceberam de nada. [Mariana Ornelas, 10.º 6]