Thursday, September 14, 2006

Sobre ensino de Português


Escola, vista de satélite. Posted by Picasa

Reproduzo a seguir carta em que, há dois anos, a pedido de encarregados de educação de turma do 7.º ano, procurei explicar duas idiossincrasias das minhas aulas: não haver «pontos»; não ditar sumários.


Lisboa, 3 de Fevereiro de 2005


Exmos. Senhores Encarregados de Educação dos Alunos do 7.º 6.ª


Tendo sido informado de que, na reunião realizada em Janeiro, alguns Encarregados de Educação exprimiram dúvidas — ou mostraram mesmo desagrado — relativamente a certas práticas das aulas de Língua Portuguesa, tentarei esclarecer os pontos que terão suscitado perplexidade ou insatisfação.
(Se assim acharem necessário, estou disponível para pormenorizar as presentes explicações, seja em sessão plenária seja em reuniões individuais com os Encarregados de Educação que o pretendam.)

Uma das idiossincrasias referidas terá sido a de não se ditarem sumários nas aulas de Língua Portuguesa. Confirmo que assim é e passarei à fundamentação deste procedimento.
Ao contrário do que sucede com a maioria das disciplinas, a disciplina de Língua Portuguesa não visa primordialmente fazer aprender conteúdos. Em Língua Portuguesa, o foco do ensino é o desenvolvimento das competências Ler, Escrever, Ouvir e Falar. O importante é o treino dessas competências e não os textos ou os assuntos a que, instrumentalmente, recorremos. Um sumário de Língua Portuguesa conterá a descrição das actividades didácticas e a referência do texto usado, elementos que são inúteis aos alunos. Quando em Português se «dá» o texto tal, pouco nos interessa o texto tal; o objectivo é treinar a leitura. Quanto à estratégia usada para desenvolver o concreto mecanismo de leitura — ou seja, o exacto estímulo escolhido para que o aluno exerça o tipo de processamento que temos em vista —, é importante que fique registada, mas será apenas legível por outros professores de Português ou investigadores.
Em Geografia, Ciências, História, etc., um elenco de assuntos estudados tem óbvia utilidade — a de permitir ao aluno relancear as matérias que foram sendo abordadas — e por isso se compreende que os professores dessas disciplinas não abdiquem de fazer passar sumários aos alunos. No caso de Língua Portuguesa, nada lucrariam os alunos em fazer esse registo. Na verdade, os dois conteúdos recorrentes seriam «Leitura» e «Escrita». De vez em quando, é certo, haveria menção de matérias gramaticais, o que ainda assim não justificaria o continuado desperdício de tempo nesse cerimonial de aula. (De resto, como os conteúdos gramaticais são sempre objecto de fichas por mim concebidas, não é complicado reunir essa parte da disciplina, a única informativa e, portanto, a única sumariável.) Admitindo que a passagem ou ditado de sumário tomaria minuto e meio de cada aula — estimativa optimista —, no final do ano lectivo o prejuízo de tempo útil perfaria quatro aulas.
O acesso aos sumários de Língua Portuguesa é fácil: como todos os alunos sabem desde o início do ano, os sumários podem ser vistos na secção respectiva do endereço
http://gavetadenuvens.blogspot.com/. Contudo — repetindo-me —, não vejo utilidade nessa consulta e nunca a incentivei. Nem poderia fazer de outro modo, já que muitos alunos não disporão de ligação à net — e seria injusto fazer depender algum aspecto essencial das aulas do seu uso. Servirá agora o referido endereço para os Encarregados de Educação, se o desejarem, aquilatarem da pouca utilidade que teriam os sumários. (Eventualmente mais funcional: junto aos sumários estão sempre os enunciados dos trabalhos de casa. Esses são escritos no quadro, procurando eu certificar-me de que os alunos os passam efectivamente. Porém, se o aluno tiver faltado, pode saber qual é o trabalho de casa pela consulta do citado blogue.)

Outra queixa que me foi reportada pela Directora de Turma foi a de que não haveria, a avaliar pelo caderno dos alunos, trabalho suficiente nas aulas de Português. Não sei se um se vários pais espantavam-se por verem poucas coisas registadas nos cadernos dos filhos.
Admito eu que este julgamento lhes tenha sido induzido por o aluno ou alunos em causa não terem nesse momento o caderno devidamente cuidado. É que, nas aulas de Língua Portuguesa, escreve-se muito, mas em geral em fichas que distribuo aos alunos. Até arriscaria que em nenhuma outra disciplina o trabalho dirigido, assente em fichas, é tão constante.
Pode ter sucedido — sei mesmo que isso acontece com um ou outro aluno menos arrumado — essas fichas terem ficado fora do caderno, deixadas em outro lado, etc. Procuro em cada período pelo menos uma vez verificar os cadernos e, ao longo do período anterior, apercebi-me de que alguns alunos acabavam por ter essas folhas no interior de plásticos, o que prejudicava a sua consulta permanente. A todos fui aconselhando que as furassem e tivessem em dossiê e fora de plásticos. É este aliás um ponto em que me atreveria a pedir ajuda aos Encarregados de Educação, no sentido de vigiarem essa arrumação dos materiais dos filhos.
Além das supramencionadas folhas, os alunos deverão ter no caderno dezenas de trabalhos corrigidos por mim (redacções, em geral), ora feitos em fotocópia que forneço ora em folhas soltas que peço aos alunos sempre tenham. Vários desses trabalhos terão classificações e comentários. Em resumo, há uma massa significativa de trabalho realizado por escrito que deve estar nos cadernos.
Para se ter noção da quantidade de trabalho em aula, consultem-se, em
http://gavetadenuvens.blogspot.com/, as secções «Tarefas» e «Gramática», onde reproduzo a maioria dessas folhas de trabalho (exceptuam-se as que implicam tabelas ou imagens difíceis de colocar no blogue). Na secção «Avaliação» há uma síntese das tarefas que foram objecto de correcção minha e posterior entrega, indicando-se aí também os critérios de correcção/avaliação de cada uma delas. São também umas dezenas.
Acrescento que as tarefas assim apresentadas em fotocópia são por mim concebidas, ainda que se reportem aos textos do manual ou a conteúdos gramaticais do programa. (À margem: mesmo que eu quisesse usar as propostas no manual, teria de contornar dois óbices: o de alguns alunos terem os manuais que as editoras fazem com as respostas para professores; o de outros terem os manuais já resolvidos em anos anteriores. De qualquer modo, ainda que usando sempre o manual, habituei-me há muito a redigir eu mesmo novas tarefas, mais adaptadas às turmas.)

O terceiro ponto sobre que me chegaram ecos de não haver acolhimento favorável unânime respeita ao facto de não haver «pontos» (entenda-se: não se fazer o teste marcado, a que os alunos tão habituados estão em tantas disciplinas).
Simplificarei muitíssimo o que haveria a dizer, e centrar-me-ei no argumento fundamental. Como disse atrás, em Português não se ensinam «conteúdos», treinam-se competências (ler, escrever, ouvir e falar). Um «ponto» de Português focar-se-á na testagem das capacidades de compreensão do escrito e de produção do escrito (eventualmente também na de compreensão oral); num teste canónico haverá lugar ainda à avaliação do funcionamento da língua, a gramática, mas residualmente. Esta parte do teste será a única para que poderia concorrer o estudo para o teste, é a única de «matéria». O resto de um teste vulgar — correspondente talvez a 75% da pontuação da prova — ocupa-se de objectivos que não são estudáveis: não se compreenderá melhor o texto que apareça no teste por nos dias anteriores os alunos exercitarem a leitura nem se escreverá mais proficientemente por haver algum tipo de investimento na redacção nas imediações do teste sumativo. Está assim já perdida uma utilidade que tem de se reconhecer a alguns testes de outras disciplinas, a de ajudarem a fazer-se uma espécie de ponto de ordem, a fixar a matéria, a mobilizar os alunos para um conjunto de informações estudáveis.
Mais decisiva para a defesa que faço é uma outra constatação, comprovada multiplamente: as competências de leitura e de escrita que o teste terá de classificar não são significativamente alteráveis no espaço de um período e nem mesmo de um ano. O bom trabalho que os alunos possam desenvolver não se reflecte, em tão pouco tempo, nas suas capacidades de ler ou de escrever. Na verdade, as capacidades de leitura e de escrita estão grosso modo definidas desde muito antes, o que, se não significa que não se façam todos os esforços para as ir melhorando paulatinamente, desaconselha contudo que se tome uma prova sumativa canónica como testemunho do trabalho havido.
Como sabem os alunos e muitos pais lembrarão, o sucesso numa prova de Português independe do investimento imediato ou durante o período. Os que «têm jeito» para o meio escrito terão boa nota, os que escreviam ou liam mal no início do ano terão sempre má classificação, por muito que tenham trabalhado. (Correndo o risco de escandalizar, ilustrarei a situação deste modo: se a avaliação em Português assentasse nos testes sumativos canónicos, seria capaz de dizer desde Outubro os níveis que teriam os alunos no final do ano.) Assim sendo, o efeito perverso dos testes-pontos em Português é o de caucionarem situações de pouco investimento na disciplina por parte de alunos hábeis na escrita e na leitura e — aspecto a que ainda sou mais sensível — desmotivarem os alunos que leiam ou escrevam mal, que veriam o seu esforço nas aulas, ou até o estudo para o teste, constantemente ludibriado.
Como compreenderão, não se trata de processo que aligeire a minha carga: a ausência de «testes-pontos» ainda mais determina que disponha de instrumentos de avaliação múltiplos, até porque a ausência de estímulos extrínsecos como o teste implica que o ensino seja activo e recorrente o retorno dado ao aluno. Com efeito, em inícios de Fevereiro, sobre cada aluno disponho de trinta trabalhos registados na caderneta (um pouco menos para os alunos que não entregam as redacções feitas em casa). Essa lista de tarefas, de que os alunos terão os originais corrigidos, é a que ponho a seguir a este parágrafo (mantive os títulos correntes das tarefas, para mim mnemónicos). E não estou a incluir a observação directa do trabalho em aula, embora até essas outras fichas as vá verificando também, mais informalmente.

Tarefas com apreciação / descrição / classificação registadas
1. Alfabeto Pessoal (TPC)
2. Notícia insólita
3. Episódio marcante contado (TPC + aula)
4. Inquérito de Verão
5. Leitura em voz alta de «Raparigas»
6. Associação de ideias
7. Texto a intercalar em Alice Vieira + Leitura
8. Autobiografia (TPC)
9. Página de diário (TPC)
10. Circuito fechado
11. Reportagem para Expresso (TPC + grupo)
12. Diário em 2014 (TPC)
13. Descrições de objectos obsoletos (TPC)
14. Lista de prendas (TPC)
15. Exercício de compreensão oral
16. Ficha sobre a gramática toda
17. Retrato de ídolo (TPC)
2.º período (até à data [Fevereiro de 2005])
18. Leituras em férias (TPC)
19. Títulos para «Quem sou eu?»
20. Frases com superlativos eruditos
21. Parágrafos acrescentados a «Manelinho Caixadóculos»
22. Compreensão oral, a partir de «Gato Fedorento»
23. Redacção com preposições por ordem (TPC)
24. Carta de Maria João a Isabel (TPC)
25. Carta a personagem de Andersen (aula + TPC)
26. Concurso de leitura em voz alta
27. Carta a colega de outra turma
28. Escrita abecedária (TPC)
29. Resposta a carta de colega de outra turma
30. Comentário a «A estrela» (TPC)


Segundo a leitura que faço, este modo de avaliar não contende com os «Critérios gerais de avaliação da escola» nem com os «Critérios para o 3.º ciclo» definidos a nível da disciplina. Todavia, se assim não fosse, porfiaria nas mesmas assunções, considerando-me então nestas matérias «objector de consciência» («de consciência investigativa»).

Quero realçar que senti desde o início do ano que os alunos tinham entendido muito bem todas estas maneiras de proceder. Nem tive grandes queixumes, mesmo quando se começou a perceber que tal tipo de estratégia não favorece vida mais distendida por parte dos alunos. Por outro lado, acho compreensível que, junto dos pais, alguns alunos se possam escudar um tanto na originalidade da metodologia, ao terem de justificar um «dois», por exemplo, ou até um «três» que achem parcimonioso. Como dizia, não tenho notado insatisfação no que se refere ao tipo de ensino/avaliação, embora também não me surpreendesse que os alunos mostrassem renitência inicial a um modelo de aulas que implica trabalharem de modo continuado (que exige «fazerem», em vez de apenas «ouvirem»).
Enfim, não estou ainda completamente satisfeito com as aulas de Língua Portuguesa do 7.º 6.ª, que desejaria fossem mais disciplinadas, em ambiente propício à concentração (sobretudo nos momentos de redacção ou de exposição oral), mas não relaciono esse aspecto melhorável com as opções que aqui procurei esclarecer.
Reafirmo ficar à disposição dos Encarregados de Educação que julguem conveniente prestar explicações mais detalhadas.