O «Sermão de Santo António [aos peixes]» nos exames
Itens
com o «Sermão» nos exames nacionais de 12.º ano
[2014, 1.ª fase]
B
Leia o texto
seguinte. Em caso de necessidade, consulte o glossário apresentado a seguir ao
texto.
Com os Voadores tenho
também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, Voadores, não vos fez
Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós,
e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar,
pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e
para as vossas escamas, e conhecereis que não sois ave, senão peixe, e ainda
entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, Voador, que vos deu Deus maiores
barbatanas que aos outros do vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores
barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas? Mas ainda mal, porque
tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros
peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes do alto,
mata-os o anzol ou a fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa
presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o Marinheiro dormindo, e
o Voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os
a fome e engana-os a isca, ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o
vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar
por cima das entenas e cair morto.
Padre
António Vieira, Sermão de Santo António
(aos peixes) e Sermão da Sexagésima, edição de Margarida Vieira Mendes,
Lisboa, Seara Nova, 1978, pp. 102-103
glossário
entenas – antena, verga fixa a um mastro na qual se prende
uma vela triangular ou vela latina.
mofino – infeliz, desgraçado.
Apresente, de forma
bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
4. Caracterize o tipo humano que o peixe voador
simboliza, tendo por base o excerto transcrito.
5. Explicite as consequências do comportamento do
peixe voador, fundamentando a resposta com citações textuais pertinentes.
Cenários de resposta
4. O peixe voador simboliza o homem ambicioso, que
não tem consciência dos limites impostos pela sua natureza e pelas suas
capacidades. Para evidenciar esta característica, o pregador faz referência ao
comportamento dos peixes voadores que, por possuírem grandes barbatanas, agem
como se fossem aves e pudessem voar: «Dizei-me, Voadores, não vos fez Deus para
peixes? Pois porque vos meteis a ser aves?» (ll. 1-2); «Pois porque tivestes
maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?» (ll. 6-7).
5. A inconsciência e a presunção do peixe voador
fazem-no correr riscos inúteis e graves, pois, para além de poder ser vítima
dos perigos do mar, é vítima das velas e das cordas dos navios, perigos do ar —
«o Voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando» (ll. 10-11). Assim, encontra
frequentemente a morte («Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca,
ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento.», ll. 11-12).
[Prova
intermédia de 2014]
Leia o excerto
seguinte, extraído do capítulo III do Sermão
de Santo António (aos peixes), no qual o orador louva as virtudes dos
peixes. Em caso de necessidade, consulte as notas e o glossário apresentados a
seguir ao texto.
Passando dos da
Escritura aos da História natural, quem haverá que não louve e admire muito a
virtude tão celebrada da Rémora? No dia de um Santo Menor, os peixes menores
devem preferir aos outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele
peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que, não
sendo maior de um palmo, se se pega ao leme de uma Nau da Índia, apesar das
velas e dos ventos, e de seu próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais
que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante? Oh se houvera uma
Rémora na terra, que tivesse tanta força como a do mar, que menos perigos
haveria na vida, e que menos naufrágios no mundo! Se alguma Rémora houve na
terra, foi a língua de S. António, na qual, como na Rémora, se verifica o verso
de São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem
parva est, sed viribus omnia vincit. O Apóstolo Santiago, naquela sua
eloquentíssima Epístola, compara a língua ao leme da Nau e ao freio do cavalo.
Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a virtude da Rémora, a
qual, pegada ao leme da Nau, é freio da Nau e leme do leme. E tal foi a virtude
e força da língua de S. António. O leme da natureza humana é o alvedrio, o
Piloto é a razão; mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos
precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde,
mostrou a língua de António quanta força tinha, como Rémora, para domar e parar
a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo Fortuna na Nau Soberba, com as
velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é vento), se iam
desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de António, como
Rémora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a
razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados na
Nau Vingança, com a artilharia abocada e os bota-fogos acesos, corriam
enfunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique, se a
Rémora da língua de António lhe não detivesse a fúria, até que composta a ira e
ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? [...] Esta é a língua,
peixes, do vosso grande pregador, que também foi Rémora vossa, enquanto o
ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se
veem e choram na terra tantos naufrágios.
Padre
António Vieira, Sermão de Santo António
(aos peixes) e Sermão da Sexagésima, edição de Margarida Vieira Mendes,
Lisboa, Seara Nova, 1978, pp. 78-80
glossário e notas
abocada (linha 21) –
apontada.
alvedrio (linha 14) –
livre arbítrio, liberdade para tomar decisões.
baixos (linha 19) –
zona de mar ou rio onde a água tem pouca profundidade.
bota-fogos (linha 22)
– varetas com que o artilheiro ateava fogo à pólvora das bocas de fogo.
enfunados (linha 22)
– inchados, envaidecidos.
Epístola (linha 11) –
Epístola de São Tiago, um dos livros do Novo Testamento.
Escritura (linha 1) –
Bíblia.
Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit
(linha 10) – expressão latina que significa «A língua, na verdade, é pequena,
mas vence tudo pela sua força».
posto que ainda se
conserva inteira (linha 26) – referência à língua de Santo António, guardada
como relíquia na basílica com o nome do santo, em Pádua.
Santo Menor (linha 2)
– referência ao facto de Santo António pertencer à ordem de São Francisco.
São Gregório
Nazianzeno (linha 10) – teólogo e bispo cristão do séc. IV d.C.
Apresente, de forma
clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
1. Releia o excerto desde o início até «por diante?»
(linha 7). Apresente os traços caracterizadores da Rémora, fundamentando a sua
resposta com citações do texto.
2. «Se alguma Rémora houve na terra, foi a língua de
S. António» (linhas 8 e 9). Explique a analogia entre a língua de Santo António
e a Rémora.
3. Vieira recorre à representação alegórica de
determinados pecados humanos. Explique de que modo os elementos presentes na
descrição das naus (linhas 17 a 24) permitem representar alguns desses pecados,
bem como as suas consequências.
Cenários de resposta
1. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir
se enunciam, ou outros considerados relevantes.
De acordo com o
conteúdo das linhas 1 a 7, a Rémora é um peixe:
– de pequeno porte –
«tão pequeno no corpo» (l. 4); «não sendo maior de um palmo» (l. 4);
– detentor de muita
força e muito poder, sendo capaz de imobilizar uma nau – «tão grande na força e
no poder» (l. 4); «se se pega ao leme de uma Nau da Índia [...] a prende e
amarra mais que as mesmas âncoras» (ll. 5-6).
2. A analogia entre a língua de Santo António e a Rémora constrói-se com
base num elemento comum – a ideia de força e de poder, associada à humildade e
pequenez do corpo. Assim:
– a Rémora, apesar de
pequena, é capaz de imobilizar uma nau, sendo «freio da Nau» (l. 13), e de
reorientar o seu trajeto, sendo «leme do leme» (l. 13);
– a língua de Santo
António, com o seu poder persuasivo, é capaz de travar as paixões humanas,
orientando, segundo a razão, as ações dos homens.
3. Através da alegoria das naus, Vieira representa os pecados da soberba e
da vingança:
– a Nau Soberba,
manifestação de vaidade, arrogância e altivez, é representada pelas «velas
inchadas
do vento» (l. 18); a
nau desfeita nos baixos representa a inevitabilidade do desastre a que este
pecado conduz;
– a Nau Vingança,
associada à guerra e à violência, é representada pela exibição bélica («a
artilharia abocada e os bota-fogos acesos» – ll. 21-22); a destruição provocada
pela batalha é a consequência a que este pecado conduz.
[2016,
exame especial]
B
Leia o texto.
Nestas palavras, pelo que vos toca, importa,
peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas
palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente
a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos
podem e os que menos avultam na República, estes são os comidos. E não só diz
que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes
que têm o mando das Cidades e das Províncias, não se contenta a sua fome de
comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os
povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut
cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão. A
diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias
de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no
ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se
come; e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e
assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os
miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo ofício em que os não carreguem, em
que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e
devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento
das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros,
vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e
maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e
os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto
continuadamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite,
às claras e às escuras, como também fazem os homens.
Padre António Vieira, Sermão
de Santo António (aos Peixes) e Sermão da Sexagésima,
edição de Margarida Vieira Mendes, Lisboa, Seara Nova, 1978, pp. 88-90
4. Explique o sentido
da metáfora «São o pão quotidiano dos grandes» (linhas 12 e 13), tendo em conta
o conteúdo do excerto.
5. Relacione o recurso
à interrogação retórica presente na linha 16 com a intenção crítica do pregador
presente nas linhas que se lhe seguem.
Cenários de resposta
4. A metáfora «São o pão quotidiano dos grandes»
(linhas 12 e 13) associa os «pequenos», os socialmente frágeis, ao pão. Assim,
tal como o pão acompanha sempre os outros alimentos, também o povo é alimento constante
para os poderosos. Através da metáfora, o orador sublinha, por um lado, a
insaciável ganância dos poderosos e, por outro, a vulnerabilidade dos pequenos,
submetidos a uma exploração sem tréguas.
5. Com o recurso à interrogação retórica, o orador conduz o auditório à
tomada de consciência de que a exploração dos «pequenos» por parte dos
poderosos é um comportamento condenável. Assumida esta condenação por parte do
auditório, Vieira acusa-o de ter, também ele, um comportamento em tudo
semelhante ao anteriormente apontado.
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