Monday, August 29, 2016

O «Sermão de Santo António [aos peixes]» nos exames



Itens com o «Sermão» nos exames nacionais de 12.º ano

[2014, 1.ª fase]
B
Leia o texto seguinte. Em caso de necessidade, consulte o glossário apresentado a seguir ao texto.

Com os Voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, Voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois ave, senão peixe, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, Voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros do vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas? Mas ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes do alto, mata-os o anzol ou a fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o Marinheiro dormindo, e o Voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca, ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das entenas e cair morto.
Padre António Vieira, Sermão de Santo António (aos peixes) e Sermão da Sexagésima, edição de Margarida Vieira Mendes, Lisboa, Seara Nova, 1978, pp. 102-103

glossário
entenas – antena, verga fixa a um mastro na qual se prende uma vela triangular ou vela latina.
mofino – infeliz, desgraçado.

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
4. Caracterize o tipo humano que o peixe voador simboliza, tendo por base o excerto transcrito.
5. Explicite as consequências do comportamento do peixe voador, fundamentando a resposta com citações textuais pertinentes.

Cenários de resposta
4. O peixe voador simboliza o homem ambicioso, que não tem consciência dos limites impostos pela sua natureza e pelas suas capacidades. Para evidenciar esta característica, o pregador faz referência ao comportamento dos peixes voadores que, por possuírem grandes barbatanas, agem como se fossem aves e pudessem voar: «Dizei-me, Voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves?» (ll. 1-2); «Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?» (ll. 6-7).

5. A inconsciência e a presunção do peixe voador fazem-no correr riscos inúteis e graves, pois, para além de poder ser vítima dos perigos do mar, é vítima das velas e das cordas dos navios, perigos do ar — «o Voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando» (ll. 10-11). Assim, encontra frequentemente a morte («Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca, ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento.», ll. 11-12).


[Prova intermédia de 2014]

Leia o excerto seguinte, extraído do capítulo III do Sermão de Santo António (aos peixes), no qual o orador louva as virtudes dos peixes. Em caso de necessidade, consulte as notas e o glossário apresentados a seguir ao texto.

Passando dos da Escritura aos da História natural, quem haverá que não louve e admire muito a virtude tão celebrada da Rémora? No dia de um Santo Menor, os peixes menores devem preferir aos outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que, não sendo maior de um palmo, se se pega ao leme de uma Nau da Índia, apesar das velas e dos ventos, e de seu próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante? Oh se houvera uma Rémora na terra, que tivesse tanta força como a do mar, que menos perigos haveria na vida, e que menos naufrágios no mundo! Se alguma Rémora houve na terra, foi a língua de S. António, na qual, como na Rémora, se verifica o verso de São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit. O Apóstolo Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola, compara a língua ao leme da Nau e ao freio do cavalo. Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a virtude da Rémora, a qual, pegada ao leme da Nau, é freio da Nau e leme do leme. E tal foi a virtude e força da língua de S. António. O leme da natureza humana é o alvedrio, o Piloto é a razão; mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de António quanta força tinha, como Rémora, para domar e parar a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo Fortuna na Nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de António, como Rémora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados na Nau Vingança, com a artilharia abocada e os bota-fogos acesos, corriam enfunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique, se a Rémora da língua de António lhe não detivesse a fúria, até que composta a ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? [...] Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi Rémora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se veem e choram na terra tantos naufrágios.
Padre António Vieira, Sermão de Santo António (aos peixes) e Sermão da Sexagésima, edição de Margarida Vieira Mendes, Lisboa, Seara Nova, 1978, pp. 78-80

glossário e notas
abocada (linha 21) – apontada.
alvedrio (linha 14) – livre arbítrio, liberdade para tomar decisões.
baixos (linha 19) – zona de mar ou rio onde a água tem pouca profundidade.
bota-fogos (linha 22) – varetas com que o artilheiro ateava fogo à pólvora das bocas de fogo.
enfunados (linha 22) – inchados, envaidecidos.
Epístola (linha 11) – Epístola de São Tiago, um dos livros do Novo Testamento.
Escritura (linha 1) – Bíblia.
Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit (linha 10) – expressão latina que significa «A língua, na verdade, é pequena, mas vence tudo pela sua força».
posto que ainda se conserva inteira (linha 26) – referência à língua de Santo António, guardada como relíquia na basílica com o nome do santo, em Pádua.
Santo Menor (linha 2) – referência ao facto de Santo António pertencer à ordem de São Francisco.
São Gregório Nazianzeno (linha 10) – teólogo e bispo cristão do séc. IV d.C.

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
1. Releia o excerto desde o início até «por diante?» (linha 7). Apresente os traços caracterizadores da Rémora, fundamentando a sua resposta com citações do texto.
2. «Se alguma Rémora houve na terra, foi a língua de S. António» (linhas 8 e 9). Explique a analogia entre a língua de Santo António e a Rémora.
3. Vieira recorre à representação alegórica de determinados pecados humanos. Explique de que modo os elementos presentes na descrição das naus (linhas 17 a 24) permitem representar alguns desses pecados, bem como as suas consequências.

Cenários de resposta
1. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.
De acordo com o conteúdo das linhas 1 a 7, a Rémora é um peixe:
– de pequeno porte – «tão pequeno no corpo» (l. 4); «não sendo maior de um palmo» (l. 4);
– detentor de muita força e muito poder, sendo capaz de imobilizar uma nau – «tão grande na força e no poder» (l. 4); «se se pega ao leme de uma Nau da Índia [...] a prende e amarra mais que as mesmas âncoras» (ll. 5-6).

2. A analogia entre a língua de Santo António e a Rémora constrói-se com base num elemento comum – a ideia de força e de poder, associada à humildade e pequenez do corpo. Assim:
– a Rémora, apesar de pequena, é capaz de imobilizar uma nau, sendo «freio da Nau» (l. 13), e de reorientar o seu trajeto, sendo «leme do leme» (l. 13);
– a língua de Santo António, com o seu poder persuasivo, é capaz de travar as paixões humanas, orientando, segundo a razão, as ações dos homens.

3. Através da alegoria das naus, Vieira representa os pecados da soberba e da vingança:
– a Nau Soberba, manifestação de vaidade, arrogância e altivez, é representada pelas «velas inchadas
do vento» (l. 18); a nau desfeita nos baixos representa a inevitabilidade do desastre a que este pecado conduz;
– a Nau Vingança, associada à guerra e à violência, é representada pela exibição bélica («a artilharia abocada e os bota-fogos acesos» – ll. 21-22); a destruição provocada pela batalha é a consequência a que este pecado conduz.


[2016, exame especial]
B
Leia o texto.

Nestas palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na República, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das Cidades e das Províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come; e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuadamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens.
Padre António Vieira, Sermão de Santo António (aos Peixes) e Sermão da Sexagésima, edição de Margarida Vieira Mendes, Lisboa, Seara Nova, 1978, pp. 88-90

4. Explique o sentido da metáfora «São o pão quotidiano dos grandes» (linhas 12 e 13), tendo em conta o conteúdo do excerto.
5. Relacione o recurso à interrogação retórica presente na linha 16 com a intenção crítica do pregador presente nas linhas que se lhe seguem.

Cenários de resposta
4. A metáfora «São o pão quotidiano dos grandes» (linhas 12 e 13) associa os «pequenos», os socialmente frágeis, ao pão. Assim, tal como o pão acompanha sempre os outros alimentos, também o povo é alimento constante para os poderosos. Através da metáfora, o orador sublinha, por um lado, a insaciável ganância dos poderosos e, por outro, a vulnerabilidade dos pequenos, submetidos a uma exploração sem tréguas.

5. Com o recurso à interrogação retórica, o orador conduz o auditório à tomada de consciência de que a exploração dos «pequenos» por parte dos poderosos é um comportamento condenável. Assumida esta condenação por parte do auditório, Vieira acusa-o de ter, também ele, um comportamento em tudo semelhante ao anteriormente apontado.