Sunday, August 28, 2016

Instruções para tepecê de análise de canção e de Memorial do Convento



O trabalho implica escrever um comentário-análise a Memorial do Convento (aliás, a um dado momento desta obra, mais do que a um aspeto genérico) a partir de letra de uma canção. Em termos práticos, consistirá em ficheiro que conterá o link da canção (no YouTube — o simples link, que eu é que buscarei o código de incorporação) e o comentário-análise escrito pelo aluno. Uma primeira versão do texto será por mim corrigida, devendo o autor lançar as emendas e enviar de novo o ficheiro corrigido. [Para correio eletrónico: luisprista@netcabo.pt. (Como sempre: se não tiver agradecido, é que nada recebi.)]
Em baixo dou exemplo meu, que tirará certamente muitas dúvidas. Também os textos do ano passado sobre Frei Luís de Sousa podem ser agora relanceados de novo (11.º 1, 5, 7, 8, 12) ou os de há quatro anos sobre Memorial (12.º 1.ª, 12.º 3.ª, 12.º 4.ª, 12.º 6.ª).
O comentário deve ocupar-se de parte relativamente localizada, como se fez mais no exemplo em baixo, sem prejuízo de se poder aproveitar para fazer uma abordagem aqui e ali mais global sobre uma dada linha de sentido ou aspeto estrutural da narrativa. Tem de haver citações, quer do texto da canção, quer de Memorial. É essencial incorporar esses passos citados com certo engenho, usando bem a pontuação, mas conseguindo uma integração elegante.
A canção poderá ser portuguesa, brasileira ou mesmo de língua estrangeira. Neste último caso, cada citação conterá um par com versão em inglês (ou a língua de que se trate) e tradução em português. (Porém, se puderem, prefiram canções em português.) A extensão do texto deve aproximar-se da do exemplo que dou (convencionemos: de quinhentas a setecentas palavras — o meu texto tem seiscentas e quarenta palavras). Anexo que me for enviado deve ter nome deste género: «Convento de Heliodoro do 12.º 0.ª».
[Ainda antes da análise propriamente dita, convém avisar que talvez devesse ter escolhido outra canção. Esta — «Construção», de Chico Buarque — pode levá-los a pensarem que a letra da composição a aproveitar tem de ser muito elaborada e com assunto próximo de algum episódio de Memorial do Convento. Com efeito, o poema da canção que uso podia até merecer um comentário só nele focado, que desse conta de uma série de características de estilo (a rima sempre em esdrúxulas; os versos alexandrinos; o paralelismo dos versos nas três estrofes iniciais; etc.). Decerto aliás já foi objeto de muitas análises dessas, não fosse esta música já um clássico. Ora queria eu deixar bem claro que a canção que escolherem não tem de ter letra especialmente literária, nem o seu conteúdo tem de estar tão próximo do que quiserem referir do Memorial como terá sucedido no artigo a seguir. O que se pretende é conseguir analogias com letras comuns. Não procurem demasiado. Escolham uma canção qualquer e verão que é fácil encontrar na sua letra pontos de contacto com o nosso romance.]

«Construção» (Chico Buarque / Chico Buarque), Construção, 1971 // José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 256-261
«Construção» tem o mesmo olhar — solidário, mas desencantado — sobre a vida dos explorados que encontramos em vários momentos de Memorial do Convento. O sujeito poético toma partido pelo operário que se estatela do alto da obra, agoniza e morre. Ressalta aí a voz preocupada com os humildes, notável também em tantos pontos do romance de Saramago. No entanto, a pequena narrativa que se depreende da letra da canção, repetida com ligeiras diferenças ao longo de três estrofes numa circularidade que acentua a angústia do relato, lembra especialmente uma peripécia do capítulo da «epopeia da pedra», a da morte de Francisco Marques.
Quer na composição de Chico Buarque quer no trecho do cap. XIX de Memorial se ilustram as consequências-limite do apagamento de alguém por integração numa dada rotina de trabalho. O que mais nos fere nos dois dramas não é o acidente em si mesmo (queda, esmagamento), mas o contraste estabelecido entre o anonimato daquelas mortes e a relevância que tem para cada um dos operários uma felicidade tão ancorada num quotidiano simples. Sensibilizam-nos aqueles dois mortos, porque sabemos como gostavam de amar as suas mulheres, pobres como eles.
Há uma diferença, porém. O trabalhador da canção amou, beijou, descansou, comeu, dançou, tudo imediatamente antes de morrer. Ao contrário, ou simetricamente, Francisco Marques vive na expectativa da noite que contava passar com a mulher, «es[s]a noite em companhia da mulher é que ninguém lha tiraria» (p. 256). A derrocada de um desejo — e não era um sonho à Bartolomeu, era uma simples vontade de pobre, absolutamente exequível — parece tornar a morte mais cruel. Se na canção a morte é corolário de uma rotina que simboliza a vida automatizada dos trabalhadores, no texto de Saramago é o anticlímax do projeto simples de um simples.
A simbolizar a derrota final, ficamos a saber — numa nota nos limites do bom gosto, mas que revela um narrador que, como acontece sempre no Memorial, pode assumir um estilo jocoso-popular — que desse desejo programado para a noite (com que Francisco ia enganando o trabalho duro sob o calor) nada ficou: «[d]a tal [perna] do meio, a inquieta, aquela por amor da qual fez Francisco Marques tantas caminhadas, dessa não há sinal, nem vestígio, nem um simples farrapito» (p. 259). No poema cantado por Chico Buarque de Holanda, quem ainda havia pouco amara «daquela vez como se fosse a última» também «acabou no chão feito um pacote flácido [depois, «tímido», depois «bêbado»]».
Na canção insinuam-se os transtornos que advirão da morte do operário («Morreu na contramão atrapalhando o tráfego», «atrapalhando o público», «atrapalhando o sábado»), de que resulta a última humilhação — a desconsideração que é o mesquinho interesse de a fluidez do trânsito, e a um sábado, se sobrepor à mágoa que deveria inspirar a morte. No episódio de Memorial do Convento, nem se chega a pôr do mesmo modo a desvalorização da vida de um homem, porque os escolhos para os imperativos da viagem (o sábado aqui é o capricho do transporte da pedra una para a caprichosa iniciativa de D. João V) quase não se fazem sentir. A morte de Francisco Marques não teve a contrapartida justa que seria algum prejuízo significativo nos trabalhos de deslocação da pedra: «o carro, que bem poderia ter-se precipitado, ao cambulhões, pela encosta abaixo, parou logo adiante, presa a roda numa cova da calçada» (p. 259).
Houve, é certo, uma paragem forçada e um velório, assistido só pelos «mais chegados de amizade a Francisco Marques» e pela viúva, cujo nome nem se chega a saber, «nem adiantaria nada à história ir lá perguntar-lhe» (p. 260). Partirão todos, porém, no dia seguinte, com Francisco por enterrar. E, à noite, os pares do operário morto já mal darão pela sua ausência: «falta aqui um ouvinte, só eu, e tu, e tu, damos pela ausência, outros nem sabiam quem fosse Francisco Marques» (p. 261).