Instruções para tepecê de análise de canção e de Memorial do Convento
O trabalho implica escrever um
comentário-análise a Memorial do Convento
(aliás, a um dado momento desta obra, mais do que a um aspeto genérico) a
partir de letra de uma canção. Em termos práticos, consistirá em
ficheiro que conterá o link da canção (no YouTube — o simples link, que
eu é que buscarei o código de incorporação) e o comentário-análise
escrito pelo aluno. Uma primeira versão do texto será por mim corrigida,
devendo o autor lançar as emendas e enviar de novo o ficheiro corrigido. [Para
correio eletrónico: luisprista@netcabo.pt. (Como sempre: se não tiver
agradecido, é que nada recebi.)]
Em baixo dou exemplo meu, que
tirará certamente muitas dúvidas. Também os textos do ano passado
sobre Frei Luís de Sousa podem ser
agora relanceados de novo (11.º
1.ª, 5.ª, 7.ª, 8.ª, 12.ª) ou os de há quatro anos sobre Memorial
(12.º 1.ª,
12.º 3.ª,
12.º 4.ª,
12.º 6.ª).
O comentário deve ocupar-se de
parte relativamente localizada, como se fez mais no exemplo em baixo, sem
prejuízo de se poder aproveitar para fazer uma abordagem aqui e ali mais global
sobre uma dada linha de sentido ou aspeto estrutural da narrativa. Tem de haver
citações, quer do texto da canção, quer de Memorial.
É essencial incorporar esses passos citados com certo engenho, usando bem a
pontuação, mas conseguindo uma integração elegante.
A canção poderá ser portuguesa,
brasileira ou mesmo de língua estrangeira. Neste último caso, cada citação
conterá um par com versão em inglês (ou a língua de que se trate) e tradução em
português. (Porém, se puderem, prefiram canções em português.) A
extensão do texto deve aproximar-se da do exemplo que dou (convencionemos: de
quinhentas a setecentas palavras — o meu texto tem seiscentas e quarenta
palavras). Anexo
que me for enviado deve ter nome deste género: «Convento de Heliodoro do 12.º
0.ª».
[Ainda antes da análise propriamente dita,
convém avisar que talvez devesse ter escolhido outra canção. Esta —
«Construção», de Chico Buarque — pode levá-los a pensarem que a letra da
composição a aproveitar tem de ser muito elaborada e com assunto próximo de
algum episódio de Memorial do Convento.
Com efeito, o poema da canção que uso podia até merecer um comentário só nele
focado, que desse conta de uma série de características de estilo (a rima
sempre em esdrúxulas; os versos alexandrinos; o paralelismo dos versos nas três
estrofes iniciais; etc.). Decerto aliás já foi objeto de muitas análises
dessas, não fosse esta música já um clássico. Ora queria eu deixar bem claro
que a canção que escolherem não tem de ter letra especialmente literária, nem o
seu conteúdo tem de estar tão próximo do que quiserem referir do Memorial como terá sucedido no artigo a
seguir. O que se pretende é conseguir analogias com letras comuns. Não procurem
demasiado. Escolham uma canção qualquer e verão que é fácil encontrar na sua
letra pontos de contacto com o nosso romance.]
«Construção» (Chico
Buarque / Chico Buarque), Construção,
1971 // José Saramago, Memorial do
Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 256-261
«Construção» tem o mesmo olhar — solidário, mas
desencantado — sobre a vida dos explorados que encontramos em vários momentos
de Memorial do Convento. O sujeito
poético toma partido pelo operário que se estatela do alto da obra, agoniza e
morre. Ressalta aí a voz preocupada com os humildes, notável também em tantos
pontos do romance de Saramago. No entanto, a pequena narrativa que se depreende
da letra da canção, repetida com ligeiras diferenças ao longo de três estrofes
numa circularidade que acentua a angústia do relato, lembra especialmente uma
peripécia do capítulo da «epopeia da pedra», a da morte de Francisco Marques.
Quer na composição de Chico Buarque quer no
trecho do cap. XIX de Memorial se
ilustram as consequências-limite do apagamento de alguém por integração numa
dada rotina de trabalho. O que mais nos fere nos dois dramas não é o acidente
em si mesmo (queda, esmagamento), mas o contraste estabelecido entre o
anonimato daquelas mortes e a relevância que tem para cada um dos operários uma
felicidade tão ancorada num quotidiano simples. Sensibilizam-nos aqueles dois
mortos, porque sabemos como gostavam de amar as suas mulheres, pobres como
eles.
Há uma diferença, porém. O trabalhador da canção
amou, beijou, descansou, comeu, dançou, tudo imediatamente antes de morrer. Ao
contrário, ou simetricamente, Francisco Marques vive na expectativa da noite
que contava passar com a mulher, «es[s]a noite em companhia da mulher é que
ninguém lha tiraria» (p. 256). A derrocada de um desejo — e não era um sonho à
Bartolomeu, era uma simples vontade de pobre, absolutamente exequível — parece
tornar a morte mais cruel. Se na canção a morte é corolário de uma rotina que
simboliza a vida automatizada dos trabalhadores, no texto de Saramago é o
anticlímax do projeto simples de um simples.
A simbolizar a derrota final, ficamos a saber —
numa nota nos limites do bom gosto, mas que revela um narrador que, como
acontece sempre no Memorial, pode
assumir um estilo jocoso-popular — que desse desejo programado para a noite
(com que Francisco ia enganando o trabalho duro sob o calor) nada ficou: «[d]a
tal [perna] do meio, a inquieta, aquela por amor da qual fez Francisco Marques
tantas caminhadas, dessa não há sinal, nem vestígio, nem um simples farrapito»
(p. 259). No poema cantado por Chico Buarque de Holanda, quem ainda havia pouco
amara «daquela vez como se fosse a última» também «acabou no chão feito um
pacote flácido [depois, «tímido», depois «bêbado»]».
Na canção insinuam-se os transtornos que advirão
da morte do operário («Morreu na contramão atrapalhando o tráfego»,
«atrapalhando o público», «atrapalhando o sábado»), de que resulta a última
humilhação — a desconsideração que é o mesquinho interesse de a fluidez do
trânsito, e a um sábado, se sobrepor à mágoa que deveria inspirar a morte. No
episódio de Memorial do Convento, nem
se chega a pôr do mesmo modo a desvalorização da vida de um homem, porque os
escolhos para os imperativos da viagem (o sábado aqui é o capricho do
transporte da pedra una para a caprichosa iniciativa de D. João V) quase não se
fazem sentir. A morte de Francisco Marques não teve a contrapartida justa que
seria algum prejuízo significativo nos trabalhos de deslocação da pedra: «o
carro, que bem poderia ter-se precipitado, ao cambulhões, pela encosta abaixo,
parou logo adiante, presa a roda numa cova da calçada» (p. 259).
Houve, é certo, uma paragem forçada e um
velório, assistido só pelos «mais chegados de amizade a Francisco Marques» e
pela viúva, cujo nome nem se chega a saber, «nem adiantaria nada à história ir
lá perguntar-lhe» (p. 260). Partirão todos, porém, no dia seguinte, com
Francisco por enterrar. E, à noite, os pares do operário morto já mal darão
pela sua ausência: «falta aqui um ouvinte, só eu, e tu, e tu, damos pela
ausência, outros nem sabiam quem fosse Francisco Marques» (p. 261).
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