Sunday, August 28, 2016

Análise de canção e Memorial do Convento pelo 12.º 5.ª



Classificação que atribuo é a da primeira versão (a não ser que a reformulação tivesse sido demasiado trapalhona e achasse dever baixar essa primeira nota). Em alguns casos, o texto foi entretanto bastante melhorado, mas classificação não se afastará da do que me foi apresentado na primeira versão.
Algumas das referências podem ser ainda aperfeiçoadas (letristas e compositores devem ser confirmados, nomes e datas de álbuns, etc.). A pouco e pouco irei acrescentando esses dados (para o que peço, é claro, a colaboração dos autores das análises ou de outros colegas).

Patrícia
Patrícia (Bom) || "Deixa Ser" (David Fonseca/David Fonseca), Futuro Eu, 2015 // José Saramago, Memorial do Convento, 56.ª edição, Lisboa, Porto Editora, 2014, pp. 380-399
A música "Deixa Ser", de David Fonseca com Márcia, permite fazer uma analogia tanto com a perda de Baltasar e consequente busca de Blimunda por ele, como com a rapidez com que o tempo passa no livro de Saramago.
O poema recorda continuamente como o tempo passa depressa ("Tudo vai num instante / Amanhã / Sem saber / Vai parecer tão distante"), o que se verifica em Memorial do Convento. Ao longo da história o narrador vai passando à frente no tempo, o que dá a sensação de a vida das personagens passar rapidamente, desenrolando-se a narrativa num total de 28 anos, com início na promessa que o rei faz, em 1711, e final na morte de Bartolomeu no auto de fé, em 1739.
O texto da canção lembra o momento em que, depois de Baltasar não aparecer em casa, após uma ida ao Monte Junto, Blimunda decide voltar ao sítio onde a passarola tinha caído, na esperança de o encontrar. Os versos "Onde estás, faz um som / Chama o meu nome dentro ou fora de tom" explicitam bem o estado de espírito em que Blimunda se encontrava quando chegou ao local da queda da máquina voadora. Tenta gritar pelo nome do amado na esperança de ouvir o seu de volta ("[…] por causa disto gritou, Baltasar. […] Grita outra vez, Baltasar, agora a ouvirá ele, […]", p. 380). Ao dar pela falta do engenho, questiona-se para onde terá ele voado e onde terá aterrado — "Para onde foste, quem sabe onde vai / Perdido lá dentro a arrastar-se no tempo".
Na canção o sujeito poético parece ter uma atitude passiva em relação à procura do que perdeu — "Vou adormecer / E talvez vá sonhar, sonhar / só para te ver". Em oposição, Blimunda, devido à sua devoção, nunca deixa de procurar o amado ("Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar", p. 395). Os versos "Diz-me que guardas um pouco de mim / Na carteira um retrato, uma flor no jardim" mostram que o eu lírico guardava alguma esperança em o seu adorado ainda lhe guardar carinho, onde for que ele estivesse. Blimunda guarda também uma esperança, não tanto a de que Baltasar ainda a ame, visto saber que guardavam algo especial entre si, mas a de este também a procurar —"Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça duma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria e […] lhe estenderia uma gancho de ferro, […] Assim te encontro, Blimunda" (p. 398) — e, a mais importante, de que um dia o iria encontrar — "Assim te encontro, Baltasar" (p. 398) — porque, se não fosse por esta, desistiria de procurar.
Na letra de "Deixa Ser" é-nos apresentada a mudança de estações — "A estação já mudou / Levaram os móveis e o sol lá fechou". Isto também é representado no romance de Saramago, mas no sentido em que, por tantos anos procurar, Blimunda deixa de ter noção das estações — "Nove anos procurou Blimunda. Começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o sentido" (p. 397).
Todas as noites, durante nove anos, restava a Blimunda "adormecer e sonhar" sem ver Baltasar "outra vez", para na manhã seguinte recomeçar a procura. Quando chega o dia em que Blimunda encontra Baltasar no auto de fé, esta não come pão ("Trazia algum alimento no alforge, mas, de cada vez que ia levá-lo à boca, parecia que sobre a sua mão outra mão se pousava, e uma voz lhe dizia, Não comas […]", p. 399), quase como se pensasse "[d]eixa estar / [d]eixa ser", como se adivinhasse que teria de agarrar a vontade do seu amado ("[…] que o tempo é chegado.", p. 399) Este momento é uma ótima representação da grande ligação espiritual que havia entre os dois.

Joana S.
Joana S. (Bom/Bom (-)) || “Demons” (Imagine Dragons), Night Visions, 2012 // José Saramago, Memorial do Convento, 46.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, passim
Não sei ao certo se a música que escolhi é a mais adequada para a análise de Memorial do Convento, mas o refrão parece-me apropriado a Baltasar e Blimunda. A música que escolhi foi “Demons”, dos Imagine Dragons, e o título deixa-me logo a pensar, já que Demons (demónios) lembram-me os olhos de Blimunda.
Como se relata no capítulo 5, Blimunda conhece Baltasar no auto de fé, em que a sua mãe, Sebastiana Maria de Jesus, é condenada ao degredo por ter visões e por ser, em parte, cristã-nova — “tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor, pois não alcanço diferença entre mim e eles” — e quando repara que no meio da multidão se encontra um homem sem mão, a olhar fixamente para Blimunda, vê, através das suas visões, que aquele será o grande amor da sua filha. Depois do auto de fé, o homem maneta segue Blimunda até sua casa, onde está o padre Bartolomeu Lourenço, que casa os dois jovens pelo ritual da colher: ao comerem a sopa com a mesma colher, selam o seu amor. Na manhã seguinte, Blimunda promete a Baltasar que nunca o olhará por dentro. É como se fosse desumano, algo horrível, tal como se diz na canção (“Look into my eyes” / “Olha-me nos olhos”; “It's where my demons hide” / “É onde os meus demónios se escondem”; “Don't get too close” / “Não te aproximes muito”; “It's dark inside” / “Está escuro lá dentro”).
Já no capítulo 8, Baltasar pressente que Blimunda tem um segredo que pretende manter só para si, mas só depois de muita insistência, aquele lhe é revelado: “Eu posso olhar por dentro das pessoas”. Para além disto, Blimunda admite que não vê se estiver em jejum e que aquilo não é feitiçaria (“O meu dom não é heresia, nem é feitiçaria, os meus olhos são naturais”).
Apesar de tudo, Baltasar não acreditava no que estava a ouvir e por essa razão pediu a Blimunda que lhe provasse que era verdade. Assim, ambos saíram num “dia de ver, não o de olhar”, em que Baltasar pedia a Blimunda para lhe dizer o que via por dentro das pessoas.
Na canção, associo vários versos a Blimunda e compreendo a razão pela qual ela queria esconder a verdade de Baltasar (“I want to hide the truth”/ “Eu quero esconder a verdade”; “I want to shelter you” / “Quero-te abrigar / proteger”; “But with the beast inside” / “Mas com o monstro lá dentro”; “There's nowhere we can hide” / “Não há onde nos escondermos”). Mas também consigo compreender por que motivo não lhe queria esconder a verdade — o amor que os une — e que o destino dela é, de qualquer maneira, o inferno (“Don't want to let you down” / “Não te quero dececionar”; “But I am hell bound” / “Mas o meu limite é o inferno”; “Don't wanna hide the truth” / “Não te quero esconder a verdade”).
A história de Blimunda e Baltasar conta um grande amor e a canção ajuda a perceber melhor as adversidades com que eles tiveram de lidar e que só o amor conseguiu superar.

Tety
Tety (Bom/Bom(+)) ||“On My Own” (Samantha Barks/Frances Ruffelle), Les Misérables, 2012 // José Saramago, Memorial do Convento, 55.ª edição, Lisboa, Porto Editora, 2014, pp. 285-398
On My Own” (em português, “Por minha conta”) pertence à banda sonora do filme Les Misérables (Os Miseráveis) e, em parte, relaciona-se com o romance Memorial do Convento. Este musical centra-se no retrato da França em plena Revolução, no início do século XIX. Um grupo de estudantes constrói uma barricada em plena rua de Paris, de maneira a manifestar a sua revolta em relação ao golpe de estado realizado pelo Napoleão III. O cenário, quer do filme quer do romance, é de grande pobreza, como podemos observar no início do vídeo. O povo reúne-se numa praça para vivenciar um acontecimento que nos transmite um sentimento de revolta. Este momento é relacionável, em Memorial do Convento, com o encontro de Baltasar e Blimunda, quando a mãe desta é a principal atração visto estar a ser julgada no auto de fé.
D. João V, vaidoso, teve como objetivo deixar uma obra que mostrasse a sua grandeza e riqueza — o Convento de Mafra —, o que teve como consequência o sacrifício do povo que trabalhou arduamente na construção e o prejuízo da riqueza pertencente a Portugal. O verdadeiro herói em ambas as histórias é o povo que se define pelo seu trabalho, pela miséria e pelos sacrifícios realizados, como sucede com a morte de um trabalhador e amigo de Baltasar na construção do Convento (“Distraiu-se talvez Francisco Marques, (…) fugiu-lhe o calço da mão no preciso momento em que a plataforma deslizava, não se sabe como foi, apenas que o corpo está debaixo do carro, esmagado” pp. 285-286). O caso do famoso musical é semelhante, pois foi mais uma vez o povo que saiu prejudicado com as vontades e ganâncias dos líderes do Estado. Há assim uma ligação entre o sofrimento por que o povo passa nas duas realidades para realizar os “desejos” dos seus líderes.
Outro momento marcante desta narrativa, e que tem uma ligação com a música escolhida, é a história de amor de Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, personagens importantes pertencentes ao povo, os quais vivenciaram uma história de amor com total entrega, lealdade e sem obrigações. Baltasar é o exemplo de um trabalhador dedicado e obediente, tendo perdido a mão na guerra e participado em duas construções importantes — a passarola e o Convento de Mafra. Após uma inspeção à máquina voadora, o herói é apanhado de surpresa quando esta levantou voo com ele lá dentro. “On My Own” (“Por contra própria”), Blimunda enfrenta “ todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer” (p.395) “durante nove anos”. “And I know it's only in my mind, / that I'm talking to myself and not to him.”
Blimunda passou por muito, mas o seu amor nunca desaparecera e continuava a sonhar com o dia do seu reencontro (“And all I see is him and me forever and forever”, o que em português significa “E tudo o que eu vejo é ele e eu sempre e para sempre”), de tal modo que até teria imaginado “que estando sentada na praça duma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria e em lugar de dinheiro ou de pão lhe estenderia um gancho de ferro, (…) ” (p. 398). Apesar do encontro não ter sido como esperado, Blimunda reencontra Baltasar em Lisboa a ser morto num auto de fé e, mesmo não tendo ficado os dois juntos fisicamente, ela recolheu a sua vontade e juntou-a à sua.
Por fim, podemos associar as duas histórias visto que, apesar da miséria e trabalho árduo, o amor entre indivíduos pertencentes ao povo permanece. Sublinham-se também os caráteres forte e lutador desta classe social.

Mónica

Mónica (Bom+/Bom(+)) || “Para os braços da minha mãe” (Pedro Abrunhosa/Pedro Abrunhosa), Contramão, 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, 50.ª edição, Alfragide, Caminho, 2011, pp. 45-74
“Para os braços da minha mãe”, uma canção que causou impacto no país e que foi premiada com um Globo de Ouro, conta uma história que, com as vozes familiares de Pedro Abrunhosa e Camané, encantou os portugueses.
O título é o que basta para saber com o que se pode contar, uma música marcante e, para os mais sensíveis, extremamente sentimental. Também o romance de Saramago, Memorial do Convento, tem momentos que dificilmente passam despercebidos pelo sentimento que carregam, como é o caso do regresso de Baltasar da guerra e a sua viagem até Lisboa. Este episódio pode ser facilmente relacionado com o tema de Abrunhosa.
Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, lutou na guerra, onde perdeu a mão esquerda. Na altura em que se ouve falar dele no romance, está em Évora, depois de ser “mandado embora do exército por já não ter serventia nele” (p. 45), a pedir esmola para comprar um gancho que encha o vazio que a guerra lhe deu. Depois de o conseguir começa a viagem para Lisboa. Na descrição desta viagem é notória a tristeza e o cansaço de Baltasar, que passou tanto tempo a lutar longe da família (“donde partiu anos atrás”, p. 47), e que agora, completamente derrotado, tenta regressar a casa, ainda pior do que quando dela saíra. Também na canção, cuja letra é o testemunho de um indivíduo que teve de sair do seu país em busca de uma vida melhor, ansiando pelo regresso a casa (em semelhança a Baltasar), se nota a tristeza e o vazio que ele sente (“Cheguei ao fundo da estrada / Duas léguas de nada / Não sei que força me mantém”).
No entanto, os dois viajantes, apesar de partilharem o motivo pelo qual arranjam forças para continuar, estão em condições opostas. Enquanto que o emigrante da canção saiu mas com a certeza de que, quando regressasse, estariam todos à espera dele, e por isso está ansiosamente à espera da altura de voltar (“E o verão nunca mais vem”), Baltasar sabe que a sua família não o espera porque “se pai e mãe se lembram dele, julgam-no vivo porque não têm notícias de que esteja morto, ou morto porque as não têm de que seja vivo.” (p. 47). Esta condição reflete-se na maneira como encaram a viagem: um vem em “passo de bala”, com pressa de chegar, o outro “andando devagar” (p. 47).
Durante a viagem vão passando por diversos sítios, Baltasar por ir a pé e ser inevitável a travessia pelas aldeias do Alentejo (Montemor, Pegões, onde “[m]atará adiante um homem, de dois que o quiseram roubar” (p. 49) e Aldegalega) quando se quer vir de Évora a Lisboa; e o emigrante da canção, porque, mesmo embarcando “num golpe de asa”, quando se está à procura de uma vida melhor, são muitos os esforços que se fazem e muitos os países em que se passam para o conseguir (“É tão cinzenta a Alemanha”, “Na noite de Amesterdão”, “Faz tanto frio em Paris”).
As viagens foram feitas por ambos, de coração vazio. Na canção, o homem que tanto quer ir para casa deixa o “amor p’ra trás” e, consigo, traz apenas “[u]m diploma na mala”, que é a única coisa que representa o seu esforço e trabalho por terras estrangeiras. Em Memorial, Baltasar não tinha nenhuma mulher, por isso, quando chegou a Lisboa, deslumbrado com a quantidade delas que por lá passavam, chegou a rezar por uma (“fazendo a S. Bento promessa de um coração de cera se lhe pusesse adiante, […] uma inglesa loura, de olhos verdes, e que fosse alta e delgada.”, p. 57), mal sabia ele que estava prestes a encontrar, aquele que viria a ser, o amor da sua vida. A sua mão (ou a falta dela) foi a única coisa que trouxe consigo,“[n]ão há pior vida que a do soldado.” (p. 50).
Baltasar não chega a ir logo para Mafra ter com a sua família (“Para os braços da minha mãe”), porque encontra Blimunda, que lhe dá o apoio e conforto que tanto queria, não conseguindo deixá-la (“Não tenho forças que me levem daqui”, p. 74), porque, afinal, “Ninguém sai donde tem paz”.

Bea R.
Bea R. (Bom (-)/Bom -) ||«Encontrei» (Dengaz e Agir / Dengaz e Agir), Para sempre, 2014 // José Saramago, Memorial do Convento, 15.ª edição, Lisboa, Caminho, 1985, p. 89
Sem dúvida que o amor entre Baltasar e Blimunda é o acontecimento central do romance Memorial do Convento. Blimunda de Jesus é uma mulher do povo, forte e corajosa, que possui o dom de ver o interior das coisas e das pessoas quando se encontra em jejum. É batizada pelo padre Bartolomeu de Gusmão “Sete-Luas”, apelido que funciona como um reverso do de Baltasar. Baltasar Mateus, de alcunha “Sete-Sóis”, foi soldado na guerra da sucessão de Espanha e dispensado por ter perdido a sua mão esquerda em combate. É um homem simples e fiel. A tarefa mais importante desta personagem é ajudar o padre Bartolomeu na construção da passarola.
É após regressar da guerra que Baltasar e Blimunda se conhecem no auto de fé onde Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda, é condenada ao degredo. Blimunda convida Baltasar a ficar em sua casa onde são abençoados pelo padre Bartolomeu. Sempre acompanhados um pelo outro, ajudam o padre na construção da passarola, até que um dia, quando Baltasar não regressa da sua visita à “máquina”, Blimunda percorre o país para procurá-lo. Acaba por encontrá-lo a arder num auto de fé, condenado pela Inquisição. Blimunda e Baltasar vivem um amor puro.
Na música de Dengaz e Agir encontram-se momentos semelhantes à história de amor destas duas personagens. A passagem que mais me influenciou a escolher esta composição foi a da página oitenta e nove da linha trinta e um à linha trinta e seis — “Se Deus pode viver sem ela, é porque é Deus, um homem precisa das duas mãos, uma mão lava a outra, as duas lavam o rosto, quantas vezes já teve Blimunda de vir limpar o sujo que ficou agarrado às costas da mão e doutro modo não sairia,… — que posso relacionar com o verso “[o] que a vida não me deu, sim, eu vejo nela”, pois faltando a Baltasar a mão esquerda, Blimunda tem que o ajudar em algumas tarefas mais básicas.
Outro momento identificável é quando os dois se conhecem no auto de fé — “Tou feliz por naquele dia / Do nada te ter ligado / E sei lá porquê / Um mês depois te ter encontrado.” — sem terem planeado o encontro. O amor existente entre os dois foi instantâneo — “E é desde aquele dia / Na praia que te vi passar. / Eu senti que eras diferente e, / Valia a pena esperar.” —, é natural (“Aquele amor que ninguém mente / Tão simples que ninguém entente / Tão puro…”), incondicional (“Que corra bem ou mal / É de quem tá a minha espera / Com o mesmo amor no final.”) e instintivo —“Deitaram-se, Blimunda era virgem. […] Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus.” (“Passeio contigo na rua, passeio em ti na cama”).

Susana

Susana (Bom (-)) || ”Soul meets body” (Death Cab for Cutie), Plans, 2005 // José Saramago, Memorial do Convento, 51.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 242-250
A música «Soul meets body» (Alma conhece corpo) apresenta várias semelhanças com o momento da recolha de vontades em Lisboa, por Blimunda e Baltasar, descrito na obra Memorial do Convento. O tom melancólico, mas esperançoso, permite que se faça uma analogia entre o estado de espirito de Blimunda nessa altura e os efeitos que esta experiência tem nela mais tarde.
A chegada de Bartolomeu à quinta de S. Sebastião da Pedreira, onde Baltasar e Blimunda trabalhavam na passarola, traz consigo a notícia de que «está Lisboa atormentada de uma grande doença» (p. 242),oportunidade perfeita para a construção da máquina voadora, pois Blimunda não teria «melhor ocasião para recolher as vontades dos moribundos» (p. 242).
Blimunda aceita o desafio e «em jejum natural» (p. 243), sujeita-se, então, às condições perigosas do «vomito negro ou febre amarela» (p. 242), e parte para Lisboa, receosa, acompanhada de Baltasar «And I cannot guess what we'll discover/ When we turn the dirt with our palms cupped like shovels» (em português, «Eu não consigo adivinhar o que nós descobriremos / Quando pegamos a sujeira com nossas palmas cortadas como escavadeiras») que a protege e lhe dá apoio, por saber dos horrores por que Sete-Luas ia presenciar («But I know our filthy hands can wash one another's / And not one speck will remain», «Mas eu sei que nossas mãos podem lavar uma à outra / E não sobrará nenhuma mancha»).
Nas ruas de Lisboa, onde «se queimava alecrim para afastar a epidemia» (p. 244), Baltasar seguia Blimunda, que passeava, cuidadosa e desmotivada, o seu frasco de vidro, por os seus corpos não se poderem cruzar («nem um quer ver, nem o outro quer ser visto», p. 243).
Assim passaram a tarde, longe do olhar um do outro, e no final do dia, após muitas casas e corpos doentes visitarem, o casal, cansado, volta para casa. Blimunda encontra-se com uma «insuportável náusea» (p. 246) e o seu corpo nessa noite, deita-se solitário, em dor, devido «à consciência excessiva dos órgãos internos» (p. 247) que ganhou nesse dia. Em «Soul meets body» (Alma Encontra o Corpo), ao invés do que sucede na obra, o eu do texto deseja «viver onde a alma encontra o corpo» («I want to live where soul meets body»), enquanto que, Blimunda, que tem o dom de o experienciar, deseja livrar-se dessas imagens que a atormentam («I send my thoughts to far-off destinations / So they may have a chance of finding a place where they're / far more suited than here», «eu mando meus pensamentos para destinos distantes / Assim, eles talvez tenham a chance de encontrar um lugar onde / fiquem melhor do que aqui»). Porém, em ambas as músicas, há um desejo comum de «feel what it's like to be new» («sentir como é estar novo»), que, no caso de Sete Luas, é o desejo de viver sem o seu ‘’dom’’, ou ‘’maldição’’, dependendo da perspetiva.
Após o sucesso do primeiro dia (a recolha de vinte e quatro vontades), Baltasar e Blimunda voltaram à recolha das nuvens fechadas, «And I do believe it's true / That there are roads left in both of our shoes», «E eu acredito que seja verdade, / Que ainda há estrada para nossos sapatos» apesar dos efeitos negativos desta busca exaustiva em Sete-Luas.
Andaram na recolha de vontades, por Lisboa, durante um mês até que «Blimunda caiu doente» (p. 248). Apesar de não apresentar outros sintomas físicos, tinha uma «extrema magreza, e uma palidez profunda» (p. 248). Baltasar, ‘’marido’’ dedicado e apaixonado, como se presencia ao longo deste romance histórico, não a abandonava, e o Padre Bartolomeu Lourenço, sentindo a culpa pela saúde frágil da sua amiga («mordia as unhas, arrependia-se de a ter mandado às instancias vizinhas da morte», p. 249), rezava, ou pelo menos pensava-se que o fazia, ocasionalmente.
Apesar de somente mais tarde ser a música do cravo de Scarlatti que salva Blimunda, Sete-Sóis, durante este período de tempo crítico, «cobria Sete-Luas com o braço são e murmurava, Blimunda» (p. 250), esperando sempre que ela adormecesse primeiro, para dormir, por fim, descansado («So brown eyes I hold you near / Cause you’re the only song I want to hear / A melody softly soaring through my atmosphere», «Então olhos castanhos, eu te seguro perto de mim / Porque és a unica canção que quero ouvir / Uma melodia pairando suave através da minha atmosfera».)

Bea G.
Bea G. (Bom (-)) || «Here Without You» (Three doors down), Away from the sun, 2003 // José Saramago, Memorial do Convento, 52.ª edição, Alfragide, Lisboa, Caminho, 2012, pp. 480-493
O romance de José Saramago, Memorial do Convento, pode ser relacionado com um número infinito de músicas. Músicas de amor, coragem, aventura, ação… Contudo escolhi uma música que se pode relacionar com um episódio em particular do romance. Uma música que, apesar de abordar o amor, transmite-nos também saudade.
Depois de uma noite passada na barraca, Baltasar despede-se de Blimunda e parte para Monte Junto, uma viagem que, aparentemente, seria como todas as outras que Baltasar já havia feito para ir arranjar a passarola. Acaba, no entanto, com um acidente que arrasta Baltasar pelos céus dentro da passarola, não retornando a casa.
Em “Here without you” e no romance, leitor e ouvinte são confrontados com um sentimento de saudade e de distância que se prolonga no tempo. Em Memorial, “Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar.” (p. 487) e, na música, “A hundred days have made me older / Since the last time that I saw your pretty face” ( Cem dias fizeram-me mais velho / Desde a última vez que vi o teu lindo rosto). Durante todo este tempo, as personagens continuaram a sonhar com quem está longe delas e Blimunda continuou também, incansavelmente, à procura de Baltasar (“Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer”, p. 487).
Tanto o sujeito poético como Blimunda encontram-se sozinhos, porém o seu pensamento desliza e centra-se em outra pessoa. Este foco no outro é o que lhes dá forças para continuar a ter a esperança de um dia haver o reencontro. Na canção, o sujeito poético confessa “I’m here without you, baby / But you're still on my lonely mind / I think about you, baby / And I dream about you all the time” (Estou aqui sem ti, amor / Mas tu ainda estás na minha mente solitária / Eu penso em ti, amor / E eu sonho contigo o tempo todo); por sua vez, no romance, Blimunda não dormiu durante duas noites só a pensar em Baltasar e só adormeceu “porque o corpo tem às vezes dó da alma…” (p. 481), mas, a dormir ou não, nunca deixou de sonhar com o reencontro com o seu amado (“Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça duma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria e em lugar de dinheiro ou pão lhe estenderia um gancho de ferro, e ela meteria a mão ao alforge e de lá tiraria um espigão da mesma forja, sinal da sua constância e guarda, Assim te encontro, Blimunda, Assim te encontro, Baltasar…”, p. 491).
Contudo, com o passar do tempo, o sujeito poético começa a sentir a distância a vincar o espaço e emerge o desânimo que teima em aumentar (“The miles just keep rolling / As the people leave their way to say hell” [A distância só aumenta / À medida em que as pessoas deixam o seu costume de dizer “Olá”]) e Blimunda passa a viver sem rumo nem direção, dominada pela ausência de Baltasar (“Nos primeiros tempos calculava as léguas que andava por dia… mas depois confundiram-se-lhe os números, não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter significado”, p. 490).
Todavia, no fim, o sujeito poético da música assume a força do amor que sente e que o une à sua amada e assegura que nada irá destruir este amor (“And when the last one falls, when it's all said and done / It gets hard, but it won't take away my love” [E quando o último cair, e quando tudo estiver dito e feito/ Isto tornar-se-á mais difícil, mas não vai tirar o meu amor]) e o mesmo sucede a Blimunda que, no fim de toda a sua demanda, acaba por encontrar Baltasar no auto de fé a arder na fogueira, humilhado pela assistência. Mas este amor que, é mais forte do que o tempo e as suas marcas, é também mais forte que a distância que os separa. Blimunda recolhe então a vontade de Baltasar para que possam estar juntos para sempre (“Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda”, p. 493).

Cláudia
Cláudia (Bom -/Suf +) || “Sleep On The Floor” (The Lumineers), Cleopatra, 2016 // José Saramago, Memorial do Convento, 25.ª edição, Lisboa, Caminho, 1998, pp. 63-68, pp. 206, 207, 208, 226
Para este comentário-análise de uma canção e de Memorial do Convento, não foi fácil arranjar uma canção que não falasse do estereótipo das matérias do coração, que abrange quase todo o Memorial através da relação Sete-Sóis e Sete-Luas. Decidi escolher uma música que fugisse um pouco, talvez não muito, ao banal. Como analogia literária, escolhi uma música dos The Lumineers que se apelida “Sleep On The Floor” (Dormir no chão) do mais recente álbum Cleopatra.
A composição estabelece uma relação entre um sonho real e um sonho abstrato ou imaginário, resultando disso ser associável ao Memorial através do “esperado” voo surpreendente da passarola. O sonho faz parte daquela linha espacial e imaginária que navega em toda a obra: para D. João V, o sonho de se construir os seus mais belos projetos inovadores; para a rainha D. Maria Ana, o sonho de conseguir dar um herdeiro à coroa real; e para os heróis da história, Bartolomeu, Baltasar e Blimunda, o desejo de voar – “os homens (voam) quando sonham” (p. 63). Na letra de “Sleep On The Floor”, a presença de um sonho traduz-se numa vontade repentina de se aventurar no desconhecido, deixando tudo para trás – “Pack yourself a toothbrush dear / Pack yourself a favourite blouse / Take a withdrawal sleep / Take all off your savings out [Agarra na tua pasta de dentes / Agarra na tua camisa preferida / Dorme um sono de seguida / Tira todas as tuas poupanças] ”. Ao contrário de um padre dito normal, um dos heróis da nossa história, Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, vive, exageradamente, o sonho de voar. A vontade precipitada é consistente com o amor que o Padre tem pela passarola, porque “quando tudo estiver armado e concordante entre si, voarei” (p. 68).
Este padre tão incomum era um futurista, um visionário, que, ao contrário de tudo (até mesmo do suposto Deus maneta), abraçava a ciência como uma categoria em crescimento, um complemento, que permitia ao homem evoluir e ser curioso – “Forget what Father Brennan said/ We were not born in sin” [Esquece o que o Padre Brennan (Deus) disse / Nós não nascemos em pecado]”. Em “If the sun don’t shine on me today / And if the subways floods and bridges break/ Will you lay yourself down and dig your grave / Or will you rail against your dying day [Se o sol não brilhasse / E se o metro se inundasse e as pontes fossem destruídas / Deitavas-te e cavavas e tua sepultura / Ou ias correr contra o dia da tua morte]”, é bem notória a força que a vontade tem: mesmo se tudo corresse mal iria desistir? – “dig your grave [cavar a tua sepultura]” – Ou iria até onde o meu coração me mandasse? – o mais longe possível. O facto de Bartolomeu ter uma ideia tão inovadora levava-o a ser alvo da Inquisição, a ser castigado ou até mesmo condenado à morte, mas isso não o fez desistir do seu sonho – “olhai que cárcere, degredo e fogueira costumam ser a paga desses excessos, mas disto sabe um padre mais do que um soldado, Tenho cuidado e não me faltam proteções, Lá virá o dia.” (p. 65).
Algum tempo depois, a passarola, acidentalmente, consegue voar, mas acaba por cair, levando com ele os sonhos de todos os seus seguidores. Desolado, Bartolomeu tenta pegar-lhe fogo, acabando, entretanto, por fugir – “Apertava a cabeça entre as mãos, depois fazia gestos como se conversasse com um ser invisível, (…), Se tenho de arder numa fogueira, fosse ao menos nesta, (…), viram-no baixar-se rapidamente, e, olhando outra vez, já lá não estava, (…), Sumiu-se, e Blimunda declarou, Foi-se embora, não o tornaremos a ver.” (pp. 206, 207, 208) “Jesus Christ can’t save tonight [Jesus Cristo não me pode salvar hoje]”. Este senhor das ciências acaba por morrer. Muitos poderão associar esta morte prematura a uma vingança cara do Senhor de todos, porém, de qualquer forma, este Padre morreu levando os seus sonhos com ele – “o Padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha, Para onde tinha fugido, dizem que louco.” (p. 226).

Leonor

Leonor (Bom) || “Dark necessities” (Red Hot Chili Peppers), The Getaway, 2016 // José Saramago, Memorial do Convento, 17.ª edição, Lisboa, Caminho, 1982, pp.76-81
É notória a semelhança entre o sujeito poético da canção “Dark necessities” e Blimunda de Memorial do Convento. Ambos procuram do seu parceiro a compreensão da parte obscura das suas mentes e as duas narrações têm como palco a manhã embora de modo apenas metafórico na canção.
Em Memorial do Convento, Blimunda, ao acordar, apercebe-se de que Baltasar Sete-Sóis lhe roubou o pão. Este não percebe por que razão Blimunda, ainda meio adormecida, todos os dias de manhã come um pedaço de pão. Querendo perceber o que se passa, procura respostas, olhando para a expressão dela e deseja que todos os segredos entre eles desapareçam. Blimunda acede a revelar-lhe o seu mistério mas ele não acredita no que ela lhe diz.
Paralelamente, na canção o sujeito poético refere que com o amanhecer tudo o que eles têm está em jogo. Olha também para o seu companheiro na procura de respostas, para perceber o que ele tem a dizer: “Coming on to the light of day, we got / Many moons that are deep at play, so I / Keep an eye on the shadow smile / To see what it has to say / You and I both know/ Everything must go away” (“Saindo em direção à luz do dia, nós temos / Muitas luas que estão em jogo, então eu / Fico de olho no sorriso sombra / Para ver o que tem a dizer / Tu e eu sabemos / Que deve tudo ir embora”). No entanto, com o desenrolar de ambas as ações percebemos que estas tomarão rumos distintos.
Blimunda e Baltasar, na manhã seguinte, enfrentam também a luz do dia. Ela vai então mostrar um poder que é “mais de condenação do que de prémio” (p. 78): a capacidade de “ver o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra” (p. 78). Sete-Luas só tem esses poderes quando está em jejum e, por isso, não olha para Baltasar antes de comer pão porque “um dia prometeu que nunca o veria por dentro”.  
Contrariamente a este casal, as personagens da música não veem os aspectos obscuros como algo tão negativo. O sujeito poético tem necessidades obscuras que venera, mas ela sente que o seu companheiro, apesar de possuir alguma escuridão, tem também alguma luz. É notória uma compreensão e afabilidade por parte do sujeito poético, mas uma incompreensão da parte dele à escuridão da companheira, embora seja uma faceta que ele também partilhe. Apesar desta incompatibilidade, a personagem da canção quer juntar-se na escuridão, para ambos brilharem na sua loucura, compreenderem as suas mentes e viverem o seu amor.
Por outro lado, apesar de Baltasar não acreditar inicialmente em Blimunda quando ela refere os seus poderes, procura compreendê-la. Toma como imagem o que se vê nos animais por fora comparativamente com o que se vê nos animais por dentro depois de os abrir. Percebe então a angústia de Blimunda pois, pelo que ele consegue ver, o interior pode ser algo desagradável de se olhar. Sete-Sóis, apesar de a ter forçado a não comer para ela lhe mostrar como era realmente a sua visão do mundo, não o volta a fazer, tomando depois conta dela e ajudando-a a conviver com esse aspeto sombrio.
Percebemos então que ambos os casais têm um lado obscuro. Um prefere permanecer nele, havendo alguma incompreensão de uma das partes. O casal do romance lida com esse lado, demonstrando ajuda mútua.

Bea S.

Bea S. (Suf +) || "Heart by Heart" (Diane Warren/Demi Lovato), The Mortal Instruments: City of Bones: Original Motion Picture Soundtrack, 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, Lisboa, Abril/Controljornal, 2000
Se falarmos da relação entre Baltasar e Blimunda em Memorial do Convento, a música da Demi Lovato “Heart by Heart” enquadra-se muito bem, principalmente devido ao desenrolar da narrativa no capítulo V.
Ao longo da história estabelece-se uma comparação entre a relação de D. João V e D. Maria Ana e a relação de Blimunda e Baltasar. O casal real tinha um casamento religioso mas partilhavam um amor contratual (“Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica ou impedimento fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal”, p. 7), referido no capítulo I. Eles não se conhecem, não existe nenhum momento afetivo entre eles e dormiam mesmo em quartos separados, juntando-se somente para o ato sexual. A rainha era vista simplesmente como aquela que iria dar um herdeiro a Portugal. Eram ambos infelizes e, como consequência dessa infelicidade, eram infiéis. D. Maria Ana sonhava com o cunhado, D. Francisco, e por parte do rei “abundam no reino bastardos da real semente e ainda a procissão vai na praça” (p. 7).
Ao contrário, Baltasar e Blimunda partilham uma relação de amor verdadeiro e puro e, no entanto, não precisam de estar casados à vista de Deus para sentirem o amor eterno que sentem. Entre eles não existem regras nem superioridades (“(…) sente a pele o suspiro do ar como outra pele, não se encontra diferença alguma entre Baltasar e o mundo, entre o mundo e Blimunda que diferença haveria.”, p. 192), há uma grande cumplicidade e muita confiança, conhecem-se totalmente (“And you know my heart by heart” / "E tu conheces o meu coração de cor"). Eles são felizes no contexto de pobreza em que se vivia naquela época e apesar todas as dificuldades, tornando-se um casal raro (“Blimunda foge da água rindo, ele agarra-a pela cintura, ambos caem, qual de baixo, qual de cima, me parecem pessoas deste século”, p. 192).
Conheceram-se durante um auto de fé levado a cabo pela Inquisição, onde Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda é condenada a degredo. Baltasar encontrava-se junto do padre Bartolomeu e Blimunda perguntou-lhe ”Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, assim reconhecendo o direito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis” (p. 37). Desde então parecia que eles estavam destinados um para o outro (“When your soul finds the soul it was waiting for" / "Quando a tua alma encontra a alma que estavas à procura"; "When you’re one with the one you were meant to find /Everything fall in place, all the stars align” / "Quando estás com alguém que estavas destinado a estar/Tudo ficou no lugar, todas as estrelas se alinharam") e que tudo fazia mais sentido. Ao voltar a casa, Blimunda leva consigo o padre Bartolomeu e deixa a porta aberta a Baltasar como se estivesse a dar-lhe um pouco dela (“When someone walks into your heart through an open door” / "Quando alguém entra no teu coração através de uma porta aberta"). Depois de o padre os deixar, Blimunda convida Baltasar a ficar, não explicando a Baltasar a sua razão (“Porque queres que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar”, p. 39). Baltasar acabou por ficar, passando a noite juntos. Na manhã seguinte, Baltasar acordou e viu Blimunda a comer o pão com os olhos fechado e apesar de “No there's no one else's eyes /That could see into me” / "Não existem olhos de mais ninguém / Que pudessem ver por dentro", ela promete que nunca o irá fazer.

João O.
João O. (Bom -) || “Hide In Your Shell” (Hodgson/Supertramp), Crime of Century, 1974 // José Saramago, Memorial do Convento, 25.ª edição, Lisboa, Caminho, 1982, pp.77-83
No seu terceiro disco, Crime of the Century, os Supertramp apresentam-nos a canção “Hide In Your Shell”. É uma composição de, aproximadamente, sete minutos que, pela sua letra, pode ser relacionada com a característica mágica de Blimunda (personagem de Memorial do Convento, de José Saramago), a sua capacidade de ver, ao acordar e em jejum, as vontades das pessoas.
Em “Hide In Your Shell”, o sujeito poético parece dirigir-se a alguém, com quem ele se preocupa, e que se mostra receosa e assustada de se mostrar ao mundo por ninguém a entender – “Too Frightening to listen to a stranger / Too Beautiful to put your pride in danger / You're waiting for someone to understand you / But you've got demons in your closet” (Tão assustada para dar ouvidos a um estranho / Tão bonita para colocares o teu orgulho em perigo / Estás à espera de alguém que te entenda / Mas guardas demónios no teu armário). Do mesmo modo, Blimunda mostra-se receosa e assustada para mostrar a sua capacidade de ver por dentro. Este receio resulta de, no tempo histórico do romance, século XVIII, muitas pessoas serem perseguidas pela Inquisição por realizarem práticas consideradas demoníacas. Os receios de Blimunda tinham fundamento no facto de sua mãe, Sebastiana de Jesus, que partilhava uma maldição parecida (tinha visões e fazia revelações), ter sido condenada pela Inquisição, e após ser açoitada num auto de fé, a dez anos de degredo em Angola.
A passagem “Well, let me show you the nearest signpost” / “To get your heart back and on the road” (“Bom, deixa-me mostrar o sinal mais próximo” / “Para pôr o teu coração de volta na estrada”) pode ser relacionda com o facto de Baltasar, companheiro de Blimunda, mutilado de guerra a quem falta a mão esquerda, não acreditar que Blimunda possa ter tão dolorosa maldição. Farto de tanto mistério e de tanto se questionar, Baltasar, numa manhã, decide tirar o pão de Blimunda e obriga-a a dizer que coisa era essa de ela ser capaz de ver por dentro. Blimunda, incapaz de se opor, decide responder às perguntas de Baltasar e mostra-se disposta a, no dia seguinte, comprovar o que lhe dissera, caso ele lhe devolva o pão.
Assim dito, assim feito. Depois de uma noite onde o sono não veio – “Allthrought the night as you lie awake” (“Durante toda a noite onde dormes acordada”) –, saem ambos à rua. Blimunda vai relatando tudo o que vai vendo com os seus olhos de modo a que Baltasar não duvide mais dela, já que ele não sabe como é que é ser vítima de tal maldição – “How would it bei f you could see the world throught my eyes?” (“Como seria se pudesses ver o mundo pelos meus olhos?”). Blimunda, sem nunca quebrar a promessa que lhe fizera no dia em que se conheceram, volta para casa sem nunca olhar para Baltasar para não o ver por dentro.
A partir de então a união entre os dois assenta numa relação de proteção e carinho – “Cos it's sure time you gained control” / “If I can help you, if I can help you” / “If I can help you, just let me know” (“Porque de certeza que já é tempo de teres ganho controlo” / “Se eu te puder ajudar, se eu te puder ajudar” / “Se eu te puder ajudar, deixa-me saber”), uma vez que Baltasar não podendo verdadeiramente saber aquilo por que Blimunda passa, toma a seu cargo a tarefa de a compreender e tranquilizar na sua maldição, enquanto que ela passa a ser a sua mão “suplente”, ajudando-o em tarefas braçais.

Catarina R.

Catarina R. (Bom + /Muito Bom -) || «One day like this» (Guy Garvey/Elbow), The Seldom Seen Kid, 2008 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 365-369
“One day like this” é uma canção apaixonante, quer pela voz doce e suave de Guy Garvey, pela melodia deslumbrante, enriquecida por diferentes instrumentos de orquestra e pela voz do coro, quer pela letra sentimental que tão bem caracteriza o amor. Desta forma, poderia ser a música de fundo na noite em que Baltasar e Blimunda vão passear ao pé do “círculo de estátuas”.
A canção começa por delinear uma situação: após uma noite de euforia, em que Garvey admite ter “usado palavras que nunca diz” (“Using words I never say”) e ter tido comportamentos diferentes do habitual, percebe que a raiz desta mudança só pode ser o amor que sente pela outra pessoa. Este amor parece ser tão vivo que Garvey se imagina a gozar a vida ao lado deste indivíduo, aludindo a um futuro quando ambos estarão já fracos e idosos, como é indicado com “When my face is chamois-creased / (…) Kiss me when my lips are thin” (Quando a minha cara estiver vincada, beija-me quando os meus lábios estiverem finos), que remete para os traços que a idade altera.
Tais marcas do tempo são já notáveis em Baltasar mas não afetam Blimunda – “ Baltasar não tem espelhos, a não ser estes nossos olhos (…), e são eles que lhe dizem, Tens a barba cheira de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas, Baltasar (…), nem pareces o mesmo homem, Baltasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, que aí vem justamente uma mulher [Blimunda], e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo (…)” (p. 365) –, porque a fiel mulher de Baltasar vê para além das cargas físicas que o tempo opera, e apenas vê o seu homem, o sol (ou os sete sóis) da sua vida. Se, na canção, tais sentimentos são “silly wrong but vivid right” (uma tolice errada mas vivamente correta), para o casal Sete-Sóis Sete-Luas, é o amor mais puro e verdeiro que é, no entanto, mal visto pelas pessoas de Mafra.
Já no passeio, Blimunda, por não saber ler as placas onde estão cinzelados os nomes dos protagonistas das estátuas, tenta adivinhar a identidade destes, o que origina uma conversa sobre santos, salvação, a vida e a morte, que, como comenta por várias vezes o narrador, não seria esperada vinda de pessoas tão humildes e modestas como Blimunda e Baltasar. No entanto, não são apenas este diálogo profundamente filosófico, a lua “enorme, vermelha” e os espetros de mármore que marcam a noite nívea. Contrastando com a suavidade e harmonia de um amor tão sincero como o deste casal, está a agonia e decadência da Ilha da Madeira, as instalações moribundas dos que trabalham nas obras do convento de Mafra. Os habitantes destas barracas, pobres e febris trabalhadores, que com tanto sofrimento constroem o monumento encomendado por D. João V, que muito trabalho teve a pensá-lo do conforto dos seus aposentos reais, tanto sacrificam que chegam a dar a sua vida à construção, suplício mencionado em “À distância, a Ilha da Madeira era uma massa confusa, um gigantesco dragão deitado, (…) tantos homens que ali dormem, mais os míseros das enfermarias onde não há catre vago, salvo se estão os enfermeiros retirando alguns cadáveres (…)” (p. 369).
O verso final – “One day like this a year would see me right” (Um dia assim por ano deixar-me-ia bem) – reflete esta mesma oposição entre a profunda felicidade e júbilo que vem do amor e entre o desconsolo, desastre e angústia que a vida possa trazer. Na canção, apenas um dia por ano em que o regozijo e a satisfação preencham a alma é o suficiente. No plano de Baltasar e Blimunda, “este escape” à severidade e à crueldade da vida de trabalho e pobreza é a relação de profunda compreensão e o incondicional amor que existe entre os dois, que persiste perenemente.

Afonso

Afonso (Bom (-)) || “Downer” (Kurt Cobain/Nirvana), Bleach, 1989 // José Saramago, Memorial do Convento, Lisboa, Editores Reunidos, 1994, pp. 234-259
A música “Downer”, da banda norte-americana Nirvana, assemelha-se ao capítulo XIX do Memorial do Convento, na medida em que faz referência a uma “obrigação a servir o país”. Neste capítulo do Memorial é contada a história do transporte de uma pedra de dimensões gigantes desde Pêro Pinheiro até Mafra, onde seria utilizada na construção da varanda central do convento. Seria muito tentador comparar toda a primeira estrofe, que constitui o corpo inicial da música, com os episódios retratados ao longo do capítulo pelas suas inconfundíveis semelhanças, mas existem dois versos – que pela separação no espaço temporal – se tornam forçados.
Inicialmente a letra da música diz “Portray sincerity / Act out of loyalty / Defend your free country / Wish away the pain” – traduzido: “Demonstre sinceridade / Aja com lealdade/ Defenda sua pátria / Deseje que a dor acabe”. A interpretação da letra no tempo atual levar-nos-ia a um contexto de guerra não muito diferente do transporte da pedra, onde os homens devem apresentar qualidades espetaculares não só a nível físico mas também psicológico, de forma a enfrentar os desafios como o enorme e peso, a distância, o terreno e o calor. Qualquer uma das apresentadas podia considerar-se um impedimento na realização da tarefa mas o heroísmo dos homens acaba por prevalecer face às adversidades.
A meio do capítulo é finalmente expresso o descontentamento pelo trabalho que podia ser evitado se a pedra não fosse tão grande, visto que não era necessário que o fosse e isso se devesse apenas a “orgulho”. Este desagrado serve como introdução para a verdadeira frustração do narrador, que diz em seguida “Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz”. Esta indignação é manifestada de forma perfeita pela letra de Kurt Cobain ainda nos versos finais da primeira estrofe (“Hand out lobotomies / To save little families” – traduzido – “Distribua Lobotomias / Para salvar pequenas famílias”), sendo que o compositor escreve sobre a lavagem cerebral feita ao povo de forma a que este sinta que “certas famílias” ou, no caso específico de Memorial, a sucessão da família real, sejam mais importantes do que as vidas de alguns como a de Francisco Marques.
O refrão, apesar de mais subjetivo, também podia ser alvo de comparação com o texto devido ao seu carácter antiteológico , em “Is the whole fleece shun in master? / Don't feel guilty, master writing” – traduzido – “sem tradução / Não te sintas culpado foi escrito divinamente ,apesar de os dois versos se poderem aplicar a vários episódios, talvez deva assinalar especificamente, a ilibação da Igreja pela Inquisição, visto que esta perseguição era justificada por escritura sagrada. Esta ideia crítica da religião é prolongada para o último verso do corpo da música, tal como no final do capítulo em “se Deus tivesse piedade dos homens teria feito um mundo rasinho como a palma da mão”, quando o narrador desafia a doutrina religiosa pela falta de compaixão que Deus tem para com os homens, tal como “Apocalyptic bastard – traduzido: Bastardo apocalíptico” desafia a ideia de um fim apocalíptico defendido pela Igreja. Na canção podemos ainda encontrar ironia nos versos “Thank you dear God / For putting me on this Earth / I feel very privileged / In debt for my... thirst!” – traduzido: “Obrigado, querido Deus / Por me colocar na Terra / Me sinto um privilegiado / Nem sei agradecer pela sede que sinto” que aparece na mesma forma, de necessidade de agradecimento a Deus pela oportunidade de pecar, durante o sermão dado no domingo a seguir à morte de Francisco Marques, quando o frade em cima do carro prega “(…) Santo António, por amor de quem levamos esta pedra à vila de Mafra, é certo que pesada, mas muito mais pesados são os vossos pecados, e contudo andais com eles no coração como se não vos carregassem”.

Carolina

Carolina (Bom +) || “Everything Has Changed” (Taylor Swift e Ed Sheeran / Taylor Swift e Ed Sheeran), Red, 2012 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 55-60
É impossível negar a importância que as personagens Baltasar e Blimunda têm no desenrolar de Memorial do Convento. O casal não só participa na ação, como também serve de ponte entre os diversos “episódios” que são narrados ao longo da obra.
Tal como na música “Everything Has Changed”, de Taylor Swift (ft. Ed Sheeran), cujo ritmo vai acelerando progressivamente – e cuja letra se enquadra com o nascer e crescer do amor entre estas personagens –, também o primeiro encontro entre Sete-Sóis e Sete-Luas apresenta este registo gradual que termina num culminar impetuoso – o início da relação entre os dois.
Foi no auto de fé em que Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda, seria castigada por ter “visões e reflexões” (p. 55) que o casal se conheceu. Na verdade, foi Sebastiana que auxiliou o par a encontrar-se, ao transmitir à filha que era seu desejo saber “quem é ele, donde vem, que vai ser deles, poder meu” (p. 56), ao reparar no homem “tão alto, que está perto de Blimunda” (p. 56) – que se encontrava junto do padre Bartolomeu Lourenço e que após perceber as intenções da mãe, perguntou àquele homem como se chamava. É de facto assim que “everything has changed [tudo mudou]“, pois é deste momento que nasce o amor instintivo e forte de Baltasar e Blimunda.
Com o término do auto de fé, regressa Blimunda com o padre a casa, cuja porta deixa aberta para que Baltasar, que a seguia, pudesse entrar, “não porque lhe dissessem (…) mas Blimunda perguntara-lhe que nome tinha e ele respondera, não era necessária melhor razão” (p. 58) – este gesto simboliza, analogamente, como ambos “held the door [seguraram a porta]” dos seus corações e permitiram a entrada um do outro. A relação é então abençoada pelo padre através de um ritual muito simples que oficializa a união do par – “You’ll be mine and I’ll be yours [Tu serás meu e eu serei tua]“.
Apesar de pouco saberem um sobre o outro (“All I know is a simple name [Tudo o que sei é um simples nome]”), Sete-Sóis e Sete-Luas já se encontravam enamorados (apesar de não perceberem ao certo esta emoção repentina). Os olhares que trocam um com o outro, e que decerto os fariam sentir “like coming home [como voltar para casa]“, são prova deste sentimento. Sem o confirmarem vocalmente – apenas através de gestos como o de Blimunda, que “fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração” (p. 60) com o sangue proveniente da perda da virgindade –, começam a desenvolver uma relação que simboliza o amor verdadeiro. Um amor predestinado, que não olha ao estatuto social nem às obrigações matrimoniais da época, mas apenas ao prazer, à cumplicidade e ao entendimento perfeito.
Ainda que o primeiro encontro entre Baltasar e Blimunda tenha sido breve, foi o suficiente para que os dois ganhassem a vontade de “know [each other] better [se conhecerem melhor] ” e criassem um amor sem regras e natural – e que acaba por contrastar com o “amor” que conhecemos entre outras duas personagens (D. João V e D. Maria Ana). Um amor que com o desenrolar da ação evolui e é posto à prova com o desaparecimento de Baltasar, o que obriga Blimunda a procurar o amado, que acaba por encontrar no auto de fé em que este seria queimado – voltando ao lugar em que “everything has changed [tudo mudou]”, e que acabou por, de novo, mudar.

Maria

Maria (Suficiente (+)) || «I Don’t Wanna Live Forever» (ZAYN/Taylor Swift), I Don’t Wanna Live Forever, 2017 // José Saramago, Memorial do Convento, 38.ª edição, Lisboa, Caminho, 2006, pp. 53 e passim

Em Memorial do Convento cruzam-se duas grandes histórias: a da construção do convento de Mafra, por oposição à da passarola, e o amor de Baltasar e Blimunda, contrastado com o relacionamento formal e contratual de D. João V e D. Maria Ana.
Foi o amor que me levou à procura de uma canção que permite esta análise da obra. A canção escolhida «I don’t wanna live forever», de Taylor Swifft, apresenta alguns aspetos que facilmente podem remeter para a história de Baltasar e Blimunda.
Quando estas personagens se conheceram, Blimunda, de dezanove anos, assiste sozinha ao auto de fé que a vai separar definitivamente da mãe. Irá ficar só. Mas um homem «tão alto», «que lhe estava perto», que ela «o olha a ele sente um aperto na boca do estômago»| vai ser o seu amparo (ela« deixou a porta aberta para que Baltasar entrasse»). Ele sente-se enfeitiçado pelos seus olhos («olhos como estes nunca se viram») e pensa que ela lhe deitou «um encanto», que o «olhou por dentro». Ela promete «nunca te olharei por dentro» e, depois de consumarem o seu amor, nunca mais se separaram (p. 57).
O segredo de Blimunda, que Baltasar tenta desvendar e comprovar («eu posso olhar por dentro das pessoas», «só acredito se fores capaz de dizer o que está dentro de mim agora»), poderia tê-los afastado, o que não aconteceu. Acaba por ser mais um elemento que os une e que contribuirá para que o padre Bartolomeu consiga concretizar o seu projecto/sonho.
Na canção, também o amor é perturbador, desconcertante, avassalador. No entanto, o sujeito poético revela uma atitude diferente da de Blimunda. Embora diga que «I don’t wanna live forever [não quero viver para sempre]», fica sentado à espera de que o/a amado/a volte («been sitting, eyes wide open/behind these four walls/hoping you’d call [Estou sentado com os olhos bem abertos, por detrás destas quatro paredes, à espera que me ligues]»). Também privilegia o olhar («eyes wide open [com os olhos bem abertos]») e apenas tem uma coisa em mente, o amado, tal como Blimunda («I got one thing stuck in my mind [E estou com uma coisa presa na minha mente]»), mas sente-se vazio porque deu e nada recebeu («I gave you something, but you gave me nothing [Eu te dei algo, mas tu não me deste nada]». Em «Baby, baby,I feel crazy [Amor, amor, sinto-me louco]», estamos perante uma confissão/desabafo para si mesma de se sentir maluca por não encontrar Baltasar e ainda se questiona esta situação («What is happening to me ? [O que é que está a acontecer comigo?]»). Ora Blimunda, quando se vê apartada do seu amor, após uma ida a Montejunto, não se conforma e parte numa busca incessante «Em toda essa noite, Blimunda não dormiu» , «pusera-se a esperar que Baltasar regressasse ao cair do dia» (p.351). «Deitou o alforge para o ombro, não havia ali mais que fazer, e começou a procurar».
Essa procura por Baltasar colocou-a em perigo algumas vezes, nomeadamente quando um dominicano a tentou violar. Blimunda assume uma postura de guerreira, determinada, que não hesita em matar para se salvar e poder prosseguir a sua busca («empurrado pelas duas mãos, o espigão enterra-se entre as costelas, aflora por um instante o coração»). O narrador usa-a para expor, novamente, a hipocrisia e a mentira existentes, neste caso, na Igreja.
Concluímos assim que a postura do sujeito poético da canção face ao amor/amado e a de Blimunda são opostas: o primeiro espera passivamente que o outro volte («up all night, all night and every day [acordado toda a noite, toda a noite e todo o dia]»), espera que algo lhe seja oferecido («give me something,oh,but you say nothing [dás-me alguma coisa, mas não me dizes nada]»), o que não acontece:«And I don’t wanna fit wherever [E eu não quero fazer parte de qualquer coisa]». Não quer estar sem ele porque a vida não faz sentido.
Blimunda não se dá por vencida: «nove anos procurou Blimunda»(p. 369). Na canção,apesar de se sentir enlouquecido («I feel crazy [Sinto-me louco]»), o sujeito nada faz para alterar a situação e espalha a sua tristeza por todo o lado («I’ve been looking sad in all the nicest places [Pareço triste mesmo nos lugares mais bonitos]»). Apesar de o procurar brevemente («Now I’m in a cab, I tell’em where your place is [Agora estou num táxi, e digo-lhe onde moras]»), continua a espera que uma resposta lhe seja dada. Blimunda faz da triteza e do desespero força e nunca se dá por vencida («seis vezes passara por Lisboa», «esta era a sétima», «repetia um itinerário de há vinte e oito anos»).
Blimunda, que escolhera Baltasar para cúmplice, vivendo um amor pleno, sem compromissos nem culpa, vai usar o seu poder para o salvar do seu destino de condenado, resgatando-o da fogueira, para o guardar ( à sua vontade) : no seu coração «desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sois, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda» (p. 373). Também na canção o sujeito poético se questiona sobre o seu amor («wondering if I dodged a bullet / or just lost the love of my life [pergunto-me se me livrei de uma desgraça / ou se perdi o amor da minha vida]»).

J. Cabo

J. Cabo (Suficiente +) || “Given to fly” (Pearl Jam), Yield, 1998 // José Saramago, Memorial do Convento, 56.ª edição, Porto, Porto Editora, 2015, pp.59-69
“Given to fly” (que podemos traduzir como “Capaz de voar”) é uma música da banda norte-americana Pearl Jam. “Given to fly” trata de um homem que, miraculosamente, é capaz de voar e que, na minha opinião, tem bastantes características em comum com o padre Bartolomeu de Gusmão, de Memorial do Convento.
Bartolomeu de Gusmão, também apelidado “Padre Voador”, é uma personagem associada à igreja — obviamente, por ser padre — e sempre se mostrara interessado por ciência, tendo mesmo ido à Holanda para obter mais conhecimentos científicos. Chegara a pôr em causa a integridade física de Deus, dizendo que este era maneta, visto que não havia referências na Bíblia à sua mão esquerda.
No início de “Given to fly”, mais propriamente nos primeiros sete versos, não é possível estabelecer relação entre os versos e Memorial, nem com o padre Bartolomeu. Nos versos seguintes, porém, refere-se a obtenção da faculdade de voar — “A wave came crashing like a fist to the jaw / Delivered him wings, / Hey look at me now [Veio uma onda como se fosse um murro no maxilar / Dando-lhe asas, / Hey olhem só para mim]”. Podemos associar este passo ao momento em que Bartolomeu consegue fazer o seu primeiro engenho voador, um balão de ar quente.
Depois, há uma passagem na música que refere “He floated back down ‘cause he wanted to share / His key to the locks on the chains he saw everywhere [Ele voltou cá para baixo porque queria partilhar / A chave para os cadeados nas correntes que ele via em todo o lado]”. Sendo “a chave para os cadeados nas correntes” a fórmula para o voo do ser humano, podemos associar esta parte a Bartolomeu quando vai anunciar à corte a sua descoberta, momento que é mais da biografia de Gusmão do que da narrativa (embora também nesta haja alusão às primeiras tentativas falhadas de Bartlomeu).
Na mesma estrofe, podemos ainda ler “But first he was stripped and then he was stabbed / By faceless man, well, fuckers / He still stands [Mas primeiro ele foi gozado e depois esfaqueado / Por homens anónimos, bem, filhos da puta / Mas ele não se deixou ir abaixo]”. Reporta-nos isto Bartolomeu em Memorial do Convento: “Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meu invento coisa de vento que se há de acabar cedo”. Na canção, o sujeito poético, ao apresentar a sua novidade, foi gozado, sendo o correspondente a Tomás Pinto Brandão os “homens anónimos”. Mas, mesmo assim, ele não desistiu, tal como Bartolomeu não parou de tentar inventar a máquina que teria o voo perfeito.
Na parte seguinte da canção, pode-se ler “And he still gets his love, he just gives it away/ The love he receives is the love that is saved [Ainda assim ele continua a obter o seu amor (continua a ser amado), ele simplesmente dá-o a outros / O amor que ele recebe é o amor que é guardado]”. Nesta parte, um pouco confusa, a relação com Bartolomeu é também mais forçada, mas penso que é possível comparar este “amor” com a proteção que Bartolomeu obtém por parte do rei, que acredita nas suas invenções.

Carlota

Carlota (Bom -) || ”The Hanging Tree” (James Newton Howard), The Hunger Games: Mockingjay Part  1, 2015 // José Saramago, Memorial do Convento, 51.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994
O compositor musical James Newton Howard lançou, em 2014, a canção “The hanging tree”, com o intuito de fazer parte da lista musical de um filme americano. Esta música, pelo seu tom de terror e também de coragem, relaciona-se com o livro de José Saramago, Memorial do Convento, sobretudo nos capítulos referentes aos autos de fé.
O auto de fé é um evento realizado publicamente (nesta história, dá-se no Rossio), que consiste na humilhação ou execução de cristãos novos na época da inquisição.
Os autos de fé são mencionados ao longo do livro. No início da história, a mãe de uma das personagens principais, Sebastiana, é sentenciada e morre queimada num auto de fé. Também o amor desta personagem, Baltasar, é sentenciado.
A canção começa com a tão repetida pergunta “Are you coming to the tree? [Vens ter à árvore?]” e, seguidamente, explica a história desta árvore: um homem que assassinou três pessoas foi sentenciado à morte. A sentença foi dada de forma diferente da dos autos de fé de Memorial do Convento pois, em vez de ser queimado, foi enforcado nessa árvore (“They strung up a man / They say who murdered three [Eles enforcaram um homem / Que dizem que matou três]”).
Em contraste com a música de James Howard, em Memorial do Convento esta sentença foi apresentada e dada de outra forma: os “criminosos” seriam mortos um a um, e caminhavam como se estivessem numa procissão (“Começou a sair a procissão […] e os inquisidores depois, todos em comprida fila, até aparecerem os sentenciados […]”, p. 53). O narrador apresenta uma crítica a estes autos de fé de uma maneira um tanto discreta, dizendo que acha peculiar o facto de toda a gente se aprontar e festejar, porque já não havia um auto de fé há dois anos (“Porém, hoje é dia de alegria geral, porventura a palavra será imprópria […] São centro e quarto as pessoas que hoje saem, as mais delas vindas do Brasil […] para ver justiçar a judeus e cristãos-novos […] e outras miuçalhas passíveis de degredo ou fogueira.”, p. 52).
Ambos os tons, da música e da história literária, são de terror e de coragem. Na canção é dito que, já que enforcaram um homem naquela árvore, já não é estranho encontrarem-se ali (“Strange things did happen here / No stranger would it be / If we met at midnight / In the hanging tree [Coisas estranhas aconteceram aqui / Não haverá de ser mais estranho / Se nos encontrássemos à meia noite / Na árvore do enforcamento]”. Isto é dito, uma vez que seria o ponto de encontro para serem livres e fugirem; já que aconteceu algo “estranho” naquela árvore — fugir, algo que seria mal visto por todos, já não seria tão inaceitável (“Are you, are you / Coming to the tree / Where I told you to run / So we'd both be free [Vens / Ter à árvore / Onde eu te disse para correres / Para que ambos conseguíssemos ser livres]”). Já no livro, a inquisição persegue cristãos-novos e judeus (entre outras pessoas) e leva-os para o Rossio, junta centenas de pessoas, e tira a vida aos sentenciados. A coragem é aqui identificada facilmente (enquanto que o terror é também facilmente identificado na música) pois, mesmo que os sentenciados sejam obrigados a caminhar a procissão, têm de ter coragem de enfrentrar toda a gente, sabendo que a morte os espera e que são brutalmente julgados e criticados.

J. Tavares

J. Tavares (Suficiente) // «Light Years» (Pearl Jam), Binaural, 2000 // José Saramago, Memorial do Convento, ?, ?, ?
Memorial do Convento é uma obra cheia de personagens relevantes e acontecimentos dramáticos com elas relacionados, mas o principal foco é a paixão entre Baltasar e Blimunda e como ele se desenrola. A música «Light years», de Pearl Jam, enquadra-se no romance, relacionando-se com a busca intensiva de Blimunda por Sete-Sóis .
No decorrer da obra estas personagens desenvolvem uma conexão muito forte que as torna muito próximas uma da outra. No capítulo XXIII, Baltasar desaparece com a passarola e, nessa noite, Blimunda espera pelo seu regresso — «Em toda essa noite Blimunda pusera-se a esperar que Baltasar regressasse...» (p. 465). Esta espera durou pouco mais de um dia até que Blimunda tomou o caminho pelo qual Baltasar teria de voltar, esperando assim que não houvesse desencontro: «Every inch between us becomes light years now… [cada centímetro entre nós torna-se anos de luz]» (este verso da música reflete o desespero da Sete-Luas na sua procura insana). O próprio nome da música, «Light years [anos de luz]», alude aos anos que Blimunda procurara Sete-Sóis e que não fora sucedida.
«And wherever you've gone and wherever we might go it don't seem fair... you seem to like it here [e onde tu estiveres e onde tu irás não parece ser justo… tu parecias gostar daqui]» — embora na música tenha outro significado, a pessoa a que o sujeito se dirige não tenha desaparecido mas sim perdido a vida, esta citação pode transmitir o facto de Blimunda saber que Baltasar não saíra propositadamente mas por acidente e que sabe que este talvez tenha tentado reverter a situação mas não conseguira — «Em qualquer parte do céu deveria andar Baltasar voando, lutando com as velas para fazer descer a máquina» (p.470).
«Days alone that could have been spent, together… but we were miles apart [Dias sozinha que podiam ter sido passados, juntos...]» remete para as saudades que Blimunda terá de Baltasar. Se não as tivesse, não teria percorrido quilómetros e quilómetros à procura de seu homem («Milhares de léguas andou Blimunda.», p. 491).
A música em si fala de duas almas apaixonadas que se separaram e o sujeito lírico mostra o quanto sente a falta do/a parceiro/a, não aguentando a mágoa e a tristeza que sente, transmitindo-nos o quanto importante era a pessoa que havia perdido através da letra profunda de «Light years». Em Memorial do Convento passa-se algo parecido, a paixão entre duas pessoas, uma delas desaparecendo repentinamente, deixando a outra com o coração na mão. Esta demonstra o amor que sentia pelo desaparecido, procurando-o durante anos, percorrendo quilómetros, de rua em rua, de praça em praça, de cidade em cidade, sempre com a esperança de que em alguma instância o torne ver.

Pedro

Pedro (Bom (+)) || “Encosta-te a mim” (Jorge Palma/Jorge Palma), Voo Nocturno, 2007 // José Saramago Memorial do Convento, Lisboa, Caminho, 2000, pp. 24-25
Em Memorial do Convento é contada a história amorosa de Baltasar e Blimunda. Se lhe sobrepuséssemos a canção de Jorge Palma “Encosta-te A Mim”, encontraríamos facilmente alguns pontos comuns entre Baltasar e o sujeito poético criado por Jorge Palma.
Baltasar – também conhecido como Sete Sóis – é um soldado que, tal como o sujeito poético da canção, “chegado da guerra, f[e]z tudo p’ra sobreviver / em nome da terra (…)” (vv. 5-6). No caso de Sete Sóis, regressa “mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso” (p. 24).
José Saramago introduz o primeiro contacto do leitor com Baltasar está este pedindo em Évora para comprar um gancho. A primeira ideia que fica de Baltasar é de um homem esgotado e degradado devido à guerra. Baltasar é “aquele vulto que no meio do caminho, cortando a passagem, pede auxílio para um soldado a quem cortaram a mão e só por milagre não a vida, se quem teme que a súplica possa mudar-se em assalto, a esmola sempre cai na mão que resta […]”, mas procura a paz interior, procura recomeçar a sua vida e, portanto, faz caminho a Lisboa e não a Mafra “donde partiu anos atrás” (p. 25).
Em “Encosta-te A Mim”, percebemos que o eu lírico também se encontra cansado, mas a procura por algum tipo de concretização pessoal mantém-no acordado (“[…] não desencantes os meus passos / faz de mim o teu herói, não quero adormecer”, vv. 7-8); além disso ensaia um recomeço (“Eu venho do nada porque arrasei o que não quis / em nome da estrada onde só quero ser feliz”, vv. 17-18). Sete Sóis faz-se também vindo do nada visto que nem por Mafra passou para dar notícias (“se pai e mãe se lembram dele, julgam-no vivo porque não têm notícias de que esteja morto, ou morto as não têm de que esteja vivo.”, p. 25)
Contudo, o sujeito poético, ao longo da canção, parece encontrar uma parceira que o entenda e lhe proporcione o que procura, podendo finalmente ceder ao cansaço e adormecer (“enrosca-te a mim, vai desarmar a flor queimada / vai beijar o homem-bomba, quero adormecer”, vv. 19-20). Baltasar parece também encontrar algum sentido na sua nova vida quando conhece Blimunda no auto de fé em Lisboa e imediatamente a acompanha a sua casa, onde fica a viver.
Desde o início da relação destes os dois que Baltasar se intriga com os olhos de Blimunda (“de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estomago, porque olhos como estes nunca se viram”, p. 38) e nisto está a maior semelhança entre Baltasar Sete Sóis e o sujeito poético de “Encosta-te A Mim”: nenhum deles entende o olhar da companheira, porém ambos têm um carinho simples e puro por ela (“sei que não sei, às vezes entender o teu olhar / mas quero-te bem, encosta-te a mim.”, vv. 23-24).

Tomás

Tomás (Suficiente +) || “Nothing Else Matters” (Metallica / Metallica), Metallica (também conhecido como Black Album), 1991 // José Saramago, Memorial do Convento, 43.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994
“Nothing Else Matters”, o que em português significa “Nada mais importa”, de certa forma, caracteriza a relação de Blimunda e Baltasar e, em contraste, a de D. João V com D. Maria Ana Josefa. Estes dois casais são caracterizados ao longo do romance Memorial do Convento, sendo o oposto um do outro. Ao longo da obra, Baltasar e Blimunda vivem um amor verdadeiro e diferente para aquela época, não se preocupando com um “contrato” (casamento). A relação amorosa do rei e da rainha resume-se a um único objetivo, procriar: “D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.” (p. 11); “duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal,” (p.11).
Sete-Sóis e Sete-Luas conheceram-se num auto-de-fé em que foi julgada a mãe desta, e a sua relação foi como “amor à primeira vista”. Blimunda vê, logo do início, que Baltasar é um “grande homem”. Nesta relação existe muita confiança e Blimunda promete não usar os seus “poderes” para ver “por dentro” de Baltasar: “Nunca te olharei por dentro.” (p. 57).
A relação amorosa de Blimunda e Baltasar pode ser descrita pela letra da faixa dos Metallica, “So close, no matter how far / Couldn't be much more from the heart / Forever trusting who we are / And nothing else matters / Never opened myself this way / Life is ours, we live it our way” (que significa “Tão perto, sem interessar a distancia / Não podia ser mais vindo do coração / Sempre a confiar em quem tu és / E nada mais importa / Nunca me deixei tão à vontade / A vida é nossa, vivemo-la à nossa maneira”). Esta parte da letra mostra como Blimunda e Baltasar tinham uma relação inseparável, verdadeira, em que prosperava a confiança, e viviam-na à sua maneira. Era uma relação inovadora, em que não havia casamento oficial e em que não havia a obrigação para a procriação, ao contrário da maior parte das relações na época. O verso “And nothing else matters” também pode descrever D. João V e D. Maria Ana, para quem “nada mais importava” além de tentar criar descendência.
Existe outro verso interessante na letra da faixa: “Open mind for a different view” (“Mente aberta a novos pontos de vista”). Sete-Sóis e Sete-Luas estavam abertos a novos ponto de vista e talvez seja por isso que embarcaram no projeto do Padre Bartolomeu, que achava que a evolução do homem seria voar. Mas, por outro lado, há os que estão fechados a novas ideias, como a religião no século XVIII (a religião, nesse século, tinha uma grande autoridade, e quem não estivesse de acordo com ela seria perseguido e julgado em ato de fé). Como a construção da passarola era uma ideia muito inovadora para a época, o Padre Bartolomeu foi perseguido pela Inquisição.

Gonçalo

Gonçalo (Suficiente -) || «Melhor de Mim» (AC Firmino / Tiago Machado), Mundo, 2016 // José Saramago, Memorial do Convento, 17.ª edição, Lisboa, Caminho, 1987, pp. 11-18
A música “Melhor de Mim”, cantade por Mariza, permite fazer uma analogia com Memorial do Convento no episódio da tentativa de ter um bebé por parte de rei e rainha, já que a música fala da esperança que há no nascer de uma “flor”.
Relata-se, no capítulo 1, que D. João e D. Maria Ana Josefa tentam ter um filho, mas não o conseguem — «chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje não emprenhou.». O rei, duas vezes por semana, ia ao quarto de sua esposa para cumprir o seu dever. Todo o processo desde que é tempo de o rei ir consumar o seu ato, até o rei e a rainha serem deixados sozinhos, é-nos descrito: a roupa passa de pajens para criados (“tão reverentemente como relíquias de santas”), e no final desta viagem, o rei é ajudado a vestir-se, e o mesmo acontece com a rainha em seu quarto, mas em vez de pajens são damas e donzelas, tendo tudo que estar perfeito para o ato. Porém, mesmo submetendo-se a uma imobilidade total depois de seu esposo se retirar da cama, não engravidava, por falta de estímulo e tempo, mas não por culpa de D. João, pois no reino abundavam bastardos — «a esterilidade não é mal dos homens» — Ambos tinham esperança de que algum dia iriam ter descendência, como se diz na canção («Hoje, a semente que dorme na terra / (…) / Amanhã nascerá uma flor»). No livro, está peripécia é intercalada com uma breve descrição de D. João a construir uma miniatura da Basílica de S. Pedro de Roma e pela vinda de um dia um velho franciscano vir falar com o rei, frei António de S. José, que prometeu a D. João que, se ele construir um convento em Mafra, terá a sua, tão aguardada, descendência (que, mais à frente veremos, será uma rapariga).
Na canção, associo vários versos ao casal (D. João e D. Maria Ana Josefa). Ambos querem desesperadamente ter um filho e mesmo passados dois anos ainda tentam ter descendência — «Ainda que a esperança da luz / Seja escassa / A chuva que molha e passa / Vai trazer numa gota amor»; «Também eu estou / À espera da luz / Deixo-me aqui»; «E mesmo sem ver / Acreditar!» — e que um dia vão ter aquilo por que aguardavam — «Algo me diz / Que a tormenta passará»; «Hoje, a semente que dorme na terra / E se esconde no escuro que encerra / Amanhã nascerá uma flor». D. Maria finalmente ficou grávida — «Quebro as algemas neste meu lamento / Se renasço a cada momento / Meu o destino na vida é maior»; «Sei que o melhor de mim / Está para chegar».
Esta história de D. João e D. Maria exemplifica-nos de que, se tivermos sempre esperança, conseguimos alcançar aquilo que queremos, sendo ou não a culpa nossa, de não o conseguirmos atingir. Onde houver amor tudo alcançaremos.

Joana M.

Joana M. (Suficiente (+)) || “Forever Love “ (Gary Barlow/Gary Barlow), Open Road, 1997 // José Saramago, Memorial do Convento, Lisboa, 1.ª Edição, Editores Reunidos, 1994
Apesar de Memorial do Convento retratar o papel da inquisição, o reinados de D. João V e toda a construção do Convento de Mafra, e as engenhocas construídas e toda a postura anti-dogmática do Padre Bartolomeu de Gusmão, o eixo mais fascinante da obra é o relacionamento de Baltasar “Sete-Sóis” e Blimunda “Sete-Luas”. Para descrever toda esta ação, junto citações de uma música românica, lançada em 1997, pertencente ao álbum Open Road, de Gary Barlow.
Baltasar e Blimunda são o nó principal de toda a intriga. Transmitem uma mensagem de vontade e luta. Estabelecem um contraste com o relacionamento de D. Maria Ana e D. João V, cujo casamento foi arranjado.
Desde o inicio da relação apresentam uma enorme compreensão mútua e simbolizam o verdadeiro amor, incondicional (“Guess what i need from her;is forever love [Adivinha o que eu preciso dela; Apenas amor eterno]”). Em Memorial do Convento observamos tal amor quando Blimunda afirma “Nunca te olharei por dentro”. São um casal que não esconde qualquer tipo de informação um do outro, assumindo Blimunda, apesar de tardiamente, o seu dom. Após troca de ideias com o Padre Bartolomeu de Gusmão, acabam por partilhar o mesmo sonho, voar.
São um casal inseparável, característica observável quando Baltasar é executado e Blimunda prende a sua vontade na terra (“She’s holding my heart in her hand [Ela segura o meu coração nas suas mãos]”). Ambos se completam e não conseguem viver um sem o outro (“Now my dreams are filled [Agora os meus sonhos estão preenchidos]”).
Por fim são um enorme símbolo de partilha, pois tanto partilham uma colher de sopa, que acaba por ser o símbolo da união do casal, como partilham o dia a dia (“Sharing lives and sharing days [Partiha vidas, partilha dias]”; “Love ita had somany beautiful faces [O amo tem tantas lindas vertentes]”). Em Memorial do Convento a frase de união do casal foi dita pelo Padre Bartolomeu de Gusmão (“Aceitas para tua boca a colher de que se serviu este homem (...) Então declaro-vos casados”)
Esta relação teve um início pouco comum pois começa num auto de fé, um espaço também social onde são punidos e condenados pelo Santo Ofício. Blimunda e Baltasar unem-se num momento bastante privado e único onde Blimunda benze Baltasar com o sangue da sua virgindade. Desde cedo se unem e partilham todo um conjunto de peripécias que vai tentando a coêrencia e coesão do casal até à imensa busca de Baltasar por Blimunda durante nove e à retenção da vontade de Baltasar na terra: “Now my dream are filled with times we share together, guess what i need from her is forever [Agora os meus sonhos estão preenchidos, com os momentos que passamos juntos; Adivinha o que preciso dela, apenas amor eterno]”.

Bruno

Bruno (Suficiente -) || ''Beautiful''/ (Eminem/Eminem), Relapse, 2009 // José Saramago, Memorial do Convento, 58.ª edição, Porto, Porto editora, 2016, pp. 57-60
"Beautiful" tem como objetivo mostrar que cada um de nos tem um história por trás de sorrisos, olhares, marcas de ferimentos, lágrimas e, até mesmo, o sucesso, tal como a paixão entre Blimunda e Baltasar, que começa por causa de um acontecimento trágico, tanto do lado de Blimunda como de Baltasar (tendo mais importância, no caso de Blimunda, uma marca estar presa ao seu corpo — ou melhor "olhos"—, com o poder de ver através de pessoas, o que faz com que ela seja única, sendo um dos traços importantes para a história sobre a construção da máquina que voa). A canção tem um tom mais para reflexão sobre quem somos, partilhando histórias (''In my shoes / Just to see / What it's like to be me /I'll be you [Em meus pés / Só p’ra ver / Como é ser como eu]”).
Blimunda, a única que tem um tal poder mágico, tem um peso em suas costas. Quando outras pessoas começam a se envolver em sua vida, o amor que tem por Baltasar a faz prometer ''nunca te olharei por dentro'' (p. 60), já que ela não quer saber se há alguma doença em seu amado ou o dia em que irá morrer. Isso faz com que os leitores, como na canção (''Let's trade shoes just to see what it'd be like to feel your pain'' [Vamos trocar os sapatos Apenas pra ver como será sentir sua dor]''), se coloquem em seu lugar para sentir esse fardo, que é ''ver por dentro das pessoas'', e o peso aumenta mais quando o padre Bartolomeu descobre que o combustível da passarola é o éter e que este está dentro das vontades das pessoas.
Tal como Blimunda, que não olha quando está de jejum, na canção temos o sujeito poético dizendo ''So I try to avoid any eye contact [Então eu tento evitar contato com os olhos]'', que nos mostra uma situação que é resultante de um motivo, seja a paranóia de todos estarem olhando para ele ou de um poder de ver por dentro das pessoas. O amor entre os dois ''protagonistas'' do romance se torna o amor ideal da época, com um único problema, o de eles demorarem a se casar; mas, no refrão da canção, diz-se algo relacionável com tal sentimento (''Just stay true to you''[Basta que seja verdadeira consigo]''), que exige esse comportamento de ambos os lados e que permaneça até ao fim.
Baltasar tem uma marca também, a marca da guerra. Abandonado pelo exército durante a Guerra da Sucessão Espanhola por ter perdido o braço, ele tomou uma iniciativa que a canção representa do seu modo: ''Now I could of either just sat on my ass / And pissed and moaned / Or take this situation in which I'm placed [Agora eu poderia simplesmente sentar / Falar e lastimar / Ou aceitar a situação que me encontro]''). Dado esse acontecimento, que leva Baltasar a ir para Lisboa e a um romance (e a uma personagem para a construção do convento), já no final da canção temos o «eu» conversando com quem o ouve, dizendo ''God gave you them shoes, to fit you ''[Deus lhe deu sapatos que lhe sirvam]), o que torna uma ironia o facto de Baltasar e Blimunda serem conhecidos no romance como heróis de pé descalço.

Francisco Maia

F. Maia (Bom -) ||“Tie you up (the pain of love)” (The Rolling Stones), Undercover, 1983 // José Saramago, Memorial do Convento, 58.ª Edição, Porto, Porto Editora, 2014,  pp. 29-36
“The pain of love”, que, traduzido para o português, significa “a dor do amor”, pode diretamente relacionar-se com a procissão e os autos de fé descritos no início da obra de José Saramago. Na música dos aclamados Rolling Stones, Mick Jagger, o vocalista da famosa banda, questiona-quanto ao ponto de a dor do amor ser tão divina – “why so divine, the pain of love” (porque é tão divina a dor do amor?). Respondendo diretamente à pergunta, na verdade, podemos encontrar a solução no próprio Memorial do Convento.
Por questões de contextualização, os episódios  da procissão e dos autos de fé que integram o início da obra são palco de auto-mutilações, com “disciplinas, feitas de cordões em cujas pontas estão presas bolas de cera dura, armadas de cacos de vidro”(p. 31), que são usadas para desferir chicotadas pelos próprios utilizadores nas suas costas despidas. Este cenário, produto do fervor religioso e da necessidade de impressionar as amadas que observam e instigam ao ato, é compreendido e descrito como uma relação algo sádica por parte das mulheres que o visualizam, e – até certo ponto, pois é bem possível que não fosse assim para todos – com um lado masoquista por parte dos sofredores que caminhavam com grilhões pela “imunda Lisboa” (pp. 30-31) descrita pelo narrador. Uma conclusão importante que é preciso tirar desta cena é que esta procissão acaba por ser um “dois em um” ou, na expressão popular, mata “dois coelhos com uma só cajadada”. Isto porque, para além de os sofredores mostrarem o seu lado extremamente religioso, característico da sociedade latina do tempo, conseguem também impressionar assim a sua parelha, que das janelas observa. Há uma trivialização da dor e do abnormal, há um “não questionamento”, como diz a música de Mike Jagger – “you’re blind to it, deaf to it” (és cego e surdo a isto) –, que torna aquele comportamento aceite e até “recompensado” nas ruas de Lisboa.
Na obra e na canção há traços de referência ao divino, satirizado pelo narrador de Saramago e sentido pelo eu poético que assume a voz de Mike Jagger. Contudo, há uma distinção bastante importante a fazer: na letra dos Rolling Stones, o sujeito lírico é masoquista e aprecia a dor a que é submetido, questionando-se apenas acerca do lado racional do ato todo, mas, como é cego em relação ao assunto, acaba por abandonar essa ideia e, simplesmente, perguntar retoricamente “Why so divine, the pain of love” (porque é tão divina a dor do amor?). Já em Memorial do Convento, por outro lado, dá-se a compreender que os sofredores que se automutilam não o estão a fazer por prazer próprio. O narrador mostra isso após o homem geral passar em frente à janela da sua amada e diminuir bastante o seu sofrimento, pois já não precisa de impressionar ninguém a não ser as suas plaquetas que terão que funcionar para cicatrizar as feridas nas costas: “o homem passou adiante, vai pensando, aliviadamente, que daqui para a frentenão precisará vergastar-se com tanta força, outros o façam para gáudio doutras”.
É um contraste claro, pois para os masoquistas a linha entre o prazer e a dor é muito fina. A letra conta-nos ainda de chicotadas – “hard labour, fifty lashes” (trabalho duro, cinquenta chicotadas) –, que estão também presentes como foco principal na obra de Saramago.

Catarina M.

Catarina M. (Suficiente) || «Can’t help falling in love» (Hugo Peretti, Luigi Creatore, George David Weiss), Elvis Presley, Blue Hawaii, 1961 // José Saramago, Memorial do Convento, 57ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, passim
Desde o início que o amor de Baltasar e Blimunda é caracterizado como “um tanto ou quanto” moderno para a sua época e, por vezes, poderia ser visto como pecado pois era fora do comum. Provavelmente os dois apaixonados eram um pouco apressados. Conhecem-se no auto de fé de Sebastiana, mãe de Blimunda, e, nesse mesmo dia, têm relações amorosas e ficam desde esse momento numa união amorosa, mais tarde abençoada pelo Padre Bartolomeu Lourenço, sendo considerado um casamento à margem da lei.
Como se sabe para a altura uma união assim era demasiado moderna e condenável, pois os casamentos costumavam ser contratuais e era raro aquele em que havia verdadeiramente amor. Por outro lado, o facto de Blimunda ter perdido a virgindade no dia em que conheceu Baltasar e antes do próprio casamento seria considerado pecado na altura também pois, naquele tempo, as pessoas eram muito conservadoras quanto a isso, sendo as primeiras relações físicas após o casamento, preservando-se a virgindade até aí. Por último seria considerado errado Baltasar e Blimunda trabalharem de igual maneira na passarola, não havendo distinção de sexos, pois o mais habitual era o elemento feminino ficar em casa enquanto o elemento masculino ia trabalhar para sustentar a família. Este último tinha o poder de mandar na mulher, criando-se assim uma distinção entre os dois géneros.
Porém, toda a história de Blimunda e Baltasar pode ser “ouvida” nesta música. O intérprete, Elvis Presley, começa por entoar os seguintes versos: “Wise men say, only fools rush in/ But I can’t help falling in love with you/ Shall I Stay? Would it be a sin/ If I can’t help, falling in love with you”. Poderíamos considerar estas palavras o pensamento de Baltasar, pois logo no início percebemos que, apesar de entrar em casa de Blimunda, ele pensa que se calhar é muito repentino, mas que se sente atraído por ela, acabando por ter o pensamento de que, se calhar, toda aquela situação seria pecado e que seria melhor “sair dali”. Mas, mais uma vez, sente-se atraído por Blimunda. E conclui, vocalizando os versos ”Like a river flows, surely to the sea/ Darling, so it goes some things are meant to be”, indicando que, apesar de todas a dúvidas que possa ter, o que tiver de acontecer acontecerá normalmente como o rio flui para o oceano.
Porém, esta música pode adequar-se também a Blimunda. Por exemplo, nos versos “Take my hand, take my whole life too/ For I can’t help, Falling in love with you”. Que se adequam no momento em que Blimunda revela o seu segredo a Baltasar, quando se acha capaz de confiar nele ao ponto de lhe confessar o seu maior segredo.  
Poderá pensar-se então que Baltasar morreu daquela maneira porque o escritor assim o quis mas a verdade é que a história de Baltasar e de Blimunda tinha de acabar assim pois não poderia existir um casal tão perfeito como aquele, onde ambos. Juntos formam um perfeito eclipse, em que mesmo algumas situações “tabus”/pecados para a época podiam acontecer, pois isso poderia criar alguma controvérsia. Por exemplo, se a história descreve uma época em que se matavam as mulheres consideradas bruxas, porque é que Blimunda se expõe a Baltasar? Porque assim tinha de ser.

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