Sunday, August 28, 2016

Análise de canção e Memorial do Convento pelo 12.º 8.ª



Classificação que atribuo é a da primeira versão (a não ser que a reformulação tivesse sido demasiado trapalhona e achasse dever baixar essa primeira nota). Em alguns casos, o texto foi entretanto bastante melhorado, mas classificação não se afastará da do que me foi apresentado na primeira versão.
Algumas das referências podem ser ainda aperfeiçoadas (letristas e compositores devem ser confirmados, nomes e datas de álbuns, etc.). A pouco e pouco irei acrescentando esses dados (para o que peço, é claro, a colaboração dos autores das análises ou de outros colegas).

Jonnes
Jonnes (Bom (+)) || «Me Espera» (Sandy Leah, Lucas Lima e Tiago Iorc/ Sandy Leah e Tiago Iorc), Meu Canto, 2016 // José Saramago, Memorial do Convento, 56.ª edição, Porto, Porto Editora, 2015, pp. 58-59, 395-398
A música “Me Espera”, de Sandy Leah, com participação de Tiago Iorc, pode ser facilmente relacionada com a parte final da obra Memorial do Convento, de José Saramago, principalmente com o último capítulo (XXV), em que Blimunda procura por Baltasar, durante nove anos.
A canção começa com uma descrição do estado de espírito do sujeito poético (“Eu ainda estou aqui / Perdido em mil versões / Irreais de mim”). Este sentimento de perda e fragmentação pode também ser encontrado em Blimunda, enquanto procura insistentemente reencontrar Baltasar, enfrentando inúmeras dificuldades. Como diz o narrador, Blimunda “Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer.” (p. 395). Ainda na canção, o sujeito lírico diz “Estou aqui por trás de todo o caos / Em que a vida se fez”. Se atendermos à melodia triste da canção, este «caos» traz consigo muita melancolia. Esta tristeza é motivada pelos acontecimentos ruins entre o casal de que fala o sujeito assumido por Sandy Leah. Também no romance de Saramago se interpõe um certo “caos” entre Blimunda e Baltasar — com origem no acidente na passarola.
No refrão da canção, ouvimos “Tenta me reconhecer no temporal / Me espera / Tenta não se acostumar / Eu volto já / Me espera”. O “eu” lírico deixa de falar dos seus estados de espírito e passa a incentivar o seu destinatário a que não desista da relação, apesar da fase difícil por que ambos estão passando. Enquanto se dá o “temporal” entre Baltasar e Blimunda, não é possível haver comunicação entre ambos, já que nenhum deles sabe onde o outro se encontra. No entanto, percebemos que Blimunda confia plenamente em Baltasar. Sete-Luas tinha total convicção de que Sete-Sóis não iria se acostumar a viver sem ela: “Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça duma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria e em lugar de dinheiro ou de pão lhe estenderia um gancho de ferro (...)” (p. 398). Há, portanto, aqui uma grande diferença entre a postura de Blimunda e a do “eu” lírico. Este parece não confiar inteiramente no seu amado, uma vez que lhe pede que espere.
Depois do refrão, seguem-se os versos “Eu que tanto me perdi / Em sãs desilusões ideais de mim”. O sujeito poético torna a focar-se em si próprio. Desta vez, reconhece provavelmente que não vive bem consigo mesmo e retira a culpa ou a responsabilidade do amante em todo o “temporal” vivido por eles. Esta desresponsabilização do outro perante aos problemas do casal também é vivida por Blimunda. Também ela não considera, em momento algum, Baltasar responsável pela desgraça que ambos viveram. Nesta estrofe, o sujeito poético acrescenta ainda que reconhece a sua dívida pessoal para com o amante (“Não me esqueci / De quem eu sou / E o quanto devo a você”. Blimunda, por sua vez, escolheu Baltasar, desde o primeiro momento juntos, para partilhar sua vida. “ (…) esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele (…)”, p. 58).Praticamente toda a vida de ambos é de grande cumplicidade, o que revela o grande débito de um para com outro.
No final da canção, há um regresso duma certa sensação de perda. Neste momento, porém, não é a desorientação de quem vagueia sem direção. É o ato de quem se perde por se sentir desolado (“Perco o foco / Perco o chão”). Aqui encontramos também uma grande diferença em relação à atitude de Blimunda. Ela é apedrejada, mas nunca perde a serenidade e o altruísmo: “(…) aconteceu-lhe ser apedrejada, ser escarnecida, e numa aldeia onde assim a maltrataram fez depois um prodígio tal que pouco faltou para a tomarem por santa (…)” (p. 397).

Zé (Bom+/Muito Bom-) || “Pus-me a pensar” (Sam the Kid / Sam the Kid), Pratica(mente), 2006 // José Saramago, Memorial do Convento, Lisboa, Editores Reunidos Lda, 1994, p. 251
“Pus-me a pensar” é uma canção de amor escrita pelo rapper português Sam the Kid que é relacionável com a grande história de amor de Baltasar e Blimunda, de Memorial do Convento.
No início da obra, quando nos é dado a conhecer o protagonista, um ex-soldado combatente na Guerra da Sucessão chamado Baltasar Sete-sóis, não seria de adivinhar que, mais tarde, este se apaixonaria e viveria com Blimunda, uma mulher que conhece num auto de fé (em que a sua mãe é uma das julgadas).
A união entre os dois é repentina, gerando-se rapidamente uma grande cumplicidade, que seria abençoada por um padre amigo – Bartolomeu Lourenço – e nunca mais seria abalada nem quebrada.
Assim, o sentimento que o cantor expressa – “ Pus-me a pensar / No meu azar/ Se não ficar / Contigo aqui” – é o mesmo que sentem os protagonistas, que, envoltos numa grande paixão inabalável, se desejam mutuamente, sendo incapazes de se imaginar sozinhos.
Baltasar, inicialmente, não desejava comprometer-se, fazendo uma alusão a uma mulher que supostamente o aguardaria em Mafra (sua terra natal), mas mudou o seu pensamento como nunca imaginara. Depois de se desenvolver a sua relação amorosa, já não se imaginava sem a sua amada, tal como Sam: “Já sei o que quero / ‘Tou certo, seguro / (…) Então percebe o que eu sinto / Eu não minto, eu juro / Que vi-te no meu futuro”.
De facto, este casal teve um grande futuro. Tem uma história ainda mais valiosa pelo grande apoio que davam um ao outro, pois ambos tinham características incomuns – Baltasar não tinha a mão esquerda e esforçava-se, com um gancho ou um espigão no seu lugar, para trabalhar arduamente, tendo em vista ganhar algum dinheiro, e Blimunda tinha o dom sobrenatural da “ecovisão”, que era obrigada a esconder, caso contrário seria julgada pelo Tribunal do Santo Ofício e executada ou deportada (como fora sua mãe). As palavras de Sam também neste caso poderiam ser ditas tanto por Baltasar como por Blimunda: “És adição / És o meu sedativo / Definição de amor definitivo / Amor infinitivo / Verdadeiro até à cova”.
“Verdadeiro até à cova” é uma boa definição para o amor deste casal, que manteve uma forte união até ao último momento. Nem mesmo a sua efetiva pobreza afetou a “riqueza” do seu amor. A paixão era tal que, até a nível sexual o casal se manteve sempre ativo, algo apenas possível entre duas pessoas que se amassem verdadeiramente. “O meu estado de espírito / É querer estar-te a despir / E tirar-te tudo para fora” (“Pus-me a pensar” – Sam the Kid) são versos que ilustram bem a relação dos dois, que faziam amor frequentemente, fosse onde fosse. Notem-se as descrições de cenas de amor do casal, que têm lugar em vários locais, sendo exemplos a casa de Blimunda, a casa dos pais de Baltasar ou, até mesmo, um celeiro onde dormiram uma noite.
A nível físico, Baltasar sentiu sempre uma grande atração pelos olhos de Blimunda, que não tinham uma cor definitiva e eram, por isso, intrigantes. Desde o início, foi essa a característica de Blimunda que mais captou a atenção do seu amado (“porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra”, p. 51), havendo aqui uma pequena diferença em relação à canção  ̶ “Adoro os teus caracóis / Desde o primeiro dia foram como anzóis”. Se bem que, nos seguintes versos, a semelhança volte – “Fiquei vidrado/ No teu olhar encantado”.
O encanto que havia entre os dois nunca foi quebrado. Nem mesmo aquando da trágica separação, que aconteceu por acidente quando Baltasar levantou voo na passarola que, junto com Blimunda, ajudara Bartolomeu a construir. Também na canção se nota que há uma separação, com o verso “cortar a distância que nos deixa distantes”. Restou a Blimunda apenas uma hipótese – iniciar uma viagem em busca de Baltasar, guiada apenas pelo verdadeiro, inabalável e imutável amor que tinha por ele.
Após nove anos de buscas, Blimunda encontra, finalmente, Baltasar. Porém, não há felicidade neste reencontro, que será o último. Baltasar havia sido condenado pela Inquisição e morreria na fogueira.
Mas o amor, tão verdadeiro entre os dois, nunca se perdeu, nem após a morte. Vendo o amado a arder, Blimunda recolheu a sua vontade (algo que conseguia fazer graças ao seu dom) e guardou-a para sempre consigo, havendo um final semelhante ao da canção – “Tu e eu / Sem fim”.

Kiki
Kiki (Bom (-)) || «Thinking of You» (Katy Perry/Katy Perry), One of the Boys, 2008 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 56-60
A ação do Memorial do Convento decorre no começo do século XVIII, a longo do reinado de D. João V e, igualmente, da Inquisição. É possível observar-se um casal com uma fisionomia e com características bastante peculiares: Baltasar Mateus, conhecido como o Sete-Sóis, que ficou maneta (ficou sem a mão esquerda) após a Guerra da Sucessão Espanhola, entre 9 de julho de 1701 e 7 de março de 1714; e Blimunda de Jesus, apelidada de Sete-Luas pelo padre Bartolomeu de Gusmão, que conseguia ver por dentro das coisas e, simultaneamente, observar o interior das pessoas (dos seres humanos), mas apenas tinha este “poder” quando estava em jejum durante a manhã, logo após ter acordado.
A canção da famosa cantora, artista e atriz californiana Katy Perry, “Thinking of You [Pensando em Ti]”, do álbum One of the Boys, lançada em 2008, pode ser utilizada ao longo do Memorial do Convento, nomeadamente em dois momentos: no momento em que Baltasar e Blimunda se conhecem, no auto de fé a que a mãe de Blimunda (Sebastiana Maria de Jesus) fora condenada; e no momento da morte do Sete-Sóis, na fogueira, num auto de fé.
No auto de fé a que Sebastiana Maria de Jesus fora condenada (no capítulo V), Blimunda estava a ser acompanhada pelo padre Bartolomeu de Gusmão e foi aí, apenas com um simples e inocente olhar, que reparou em Baltasar: foi, automaticamente, amor à primeira vista. Aqui, neste momento, podemos lembrar a citação da canção «I was that I / Was looking into your eyes [Eu desejo estar a olhar nos teus olhos]», através da pergunta de Blimunda “Que nome é o seu” e da resposta, natural, de Baltasar, “Baltasar Mateus, também me chama Sete-Sóis”. Com esta resposta, de Baltasar a Blimunda, inicia-se o puro e intenso amor entre os dois. O amor deste casal é o símbolo da aceitação e da renúncia, visto que Blimunda prometeu a Baltasar que nunca o olharia por dentro (“Nunca te olharei por dentro”).
Este profundo amor dos dois, contrariamente ao amor de um outro casal do romance literário (o par constituído pelo rei D. João V e pela rainha D. Maria Ana Josefa), supera todos os obstáculos que o confrontam, constantemente, e alcança o seu auge, o seu máximo, no preciso momento da morte de Baltasar, ou do Sete-Sóis, na fogueira, num auto de fé (semelhante àquele em que a mãe de Blimunda fora condenada). No momento em que Baltasar foi atirado à fogueira e o seu corpo começou a arder, aí, a Blimunda, a sua grande e única amada, enclausurou a “vontade” do seu amante, não permitindo, desta forma, que a sua alma se elevasse ao céu, aprisionando-o, para todo o sempre, dentro de si mesma, e sofrendo esta sua perda calada, em silêncio, sem poder derramar uma única lágrima. Aqui, para contextualizar o final trágico e dramático que este casal teve, é possível citarmos estas expressões da canção “Thinking of You [Pensando em Ti]: «You said “move on” / Where do I go? [Tu disseste “segue em frente”/Para onde vou?».

Ana Filipa

Ana Filipa (Bom) || «Voar» (Tim e Rui Veloso / Tim e Rui Veloso), Tim e companheiros de aventura, 2010 // José Saramago, Memorial do Convento, 56.ª edição, Porto, Porto Editora, 2015, pp. 63-67
Se analisarmos a letra da canção «Voar», de Tim e Rui Veloso, é possível relacioná-la com a personagem Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, mais concretamente com o capítulo VI de Memorial do Convento, onde o padre, em conversa com Baltasar, confessa o seu desejo de voar e as tentativas já realizadas para tal. «Voar» tem a mesma linha de pensamento do Padre Bartolomeu: sujeito poético e Bartolomeu, ambos demonstram dificuldade em realizar os seus sonhos e sentem haver um entrave por parte dos outros às suas ideias.
Numa breve conversa com João Elvas, Baltasar descobre que Bartolomeu tem a alcunha de “Voador” e, pensativo, confronta o padre com a afirmação proferida por João Elvas («Agora me disse aquele meu amigo João Elvas que tendes apelido de Voador, padre, porque foi que vos deram tal nome, perguntou Baltasar», p. 65). Incomodado com a questão, o Padre Bartolomeu afasta-se, fazendo assim um compasso de espera até se sentir mais à vontade para responder. Conta então a Baltasar que já voou, que já criou três projetos com esse intuito, embora todos tenham acabo mal e sem uma resposta definitiva ao seu desejo («primeiro fiz um balão que ardeu, depois construí outro que subiu até ao teto duma sala do paço, enfim outro que saiu  por uma janela  da Casa da Índia e ninguém tornou a ver», p. 66). Tal como na obra Memorial do Convento é explícito o desejo do Padre Bartolomeu de voar e, consequentemente, a desconfiança de quem ouve as suas ideias («só os pássaros voam, e os anjos, e os homens quando sonham, mas em sonhos não há firmeza», p. 66), o mesmo acontece na canção, embora na canção esteja presente um sentimento mais derrotista do que no caráter do Padre Bartolomeu («Eu queria ser astronauta, / o meu país não deixou»).
O Padre Bartolomeu tem um caráter que é decisivo para realização do seu sonho, demonstra curiosidade pelo conhecimento e empenho nas suas crenças, acredita na capacidade criativa do ser humano e luta pelo seu sonho, construindo objetos que são capazes de voar. A esperança característica do Padre Bartolomeu está também presente nos versos da canção «Ó meu anjo da guarda, / faz-me voltar a sonhar. / Faz-me ser astronauta, / e voar!». Embora as experiências tenham corrido mal e não tenham tido o resultado esperado, Bartolomeu não deixou que isso destruísse o seu sonho («O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará», p. 66), mensagem que também está presente na canção: «Acordar, meter os pés no chão. / Levantar, pegar no que tens mais à mão».
Tanto na canção de Tim e Rui Veloso, como no trecho do capítulo VI de Memorial se transmite a ideia de que em cada desejo que tenhamos haverá sempre quem nos queira travar e desconfie das nossas ideias, principalmente, quando estes dão bons resultados. No caso do Memorial do Convento assistimos a isso sempre que é proferida a alcunha do Padre Bartolomeu («Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meu invento coisa de vento que se há de acabar cedo», pp. 66-67), no caso da canção está presente nos versos «Eu queria ser astronauta / O meu país não deixou. / Depois quis ir jogar à bola, / a minha mãe não deixou. / Tive vontade de voltar à escola, / mas o doutor não deixou». Embora muitos subestimassem as ideias do Padre Bartolomeu, o rei D. João V sempre o apoiou, cedendo-lhe assim a quinta do duque de Aveiro, em São Sebastião da Pedreira, para que executasse as experiências com a sua máquina voadora («se não fosse a proteção de el-rei não sei o que seria de mim, mas el-rei acreditou na minha máquina e tem consentido que, na quinta do duque de Aveiro, a S. Sebastião da Pedreira, eu faça os meus experimentos», p. 67).

Ana

Ana (Bom (+)/Bom +) || "The Man Who Can't Be Moved" (Danny O'Donoghue-Mark Sheehan), The Script, The Script, 2008 // José Saramago, Memorial do Convento, 54.ª edição, Porto, Porto Editora, 2014, pp. 395-400
Em Memorial do Convento é contada uma história de amor, forte e singular, entre Baltasar e Blimunda, que se conheceram em circunstâncias pouco comuns, no século XVIII — o primeiro encontro ocorreu durante um auto de fé, na Praça do Rossio, onde a mãe de Blimunda foi degredada para Angola — e desde então ficaram juntos. Em 1730, quando Baltasar desaparece, Blimunda percorre o país, durante nove anos, em busca do seu amado. Em contraste com a obra, a história da canção "The Man Who Can't Be Moved [O homem que não pode ser movido]" não relata uma busca impossível pelo amor perdido; relata a história do rompimento recente de um casal, em que o protagonista insiste em esperar que ela volte, fazendo o que pode e estiver ao seu alcance. Ainda que ambas as histórias se apresentem opostas — na canção, o protagonista está seguro de que encontrará quem procura num sítio que ambos conheçam, enquanto que, em Memorial do Convento, Blimunda procurará Baltasar por si mesma —, apresentam, igualmente, semelhanças.
Apesar de a história da canção, claramente, ocorrer em tempos mais atuais, ao ponto de o protagonista usar a tecnologia como meio de se destacar — "You'll see me on the news [vais ver-me nas notícias]" —, privilégio de que Blimunda não usufruía, tendo de procurar Baltasar por si mesma ("Onde chegava, perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e aqueles sinais" - p. 395), ambos os protagonistas da procura revelaram-se imbatíveis perante as dificuldades que se oponham aos seus objetivos: "There's someone I'm waiting for if it's a day, a month, a year / Gotta stand my ground even if it rains or snows [estou à espera de alguém, seja um dia, um mês, um ano / tenho que ficar no meu sítio, chova ou neve]; "não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter significado, tudo se media em manhã, tarde, noite, chuva, soalheira, granizo, névoa, nevoeiro [...]" — p. 398.
Ao passo que Blimunda procurava Baltasar pelo país, tomando noção de que para o encontrar teria de agir, e não apenas esperar que voltasse ("A sola dos pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça" — p. 398), chegando a ir mais longe do que esperava ("Portugal inteiro esteve debaixo destes passos, alguma vez atravessou a raia de Espanha porque não via no chão qualquer risco" — p. 398), o sujeito da canção insistia em acreditar que a amada ia voltar ao sítio em que se encontraram pela primeira vez ("Thinking maybe you'd come back here to the place that we'd meet, And you'll see me waiting for you, on the corner of the street [pensando que talvez voltasses aqui ao lugar onde nos conhecemos, e ver-me-ias a esperar por ti na esquina da rua]"), acreditando assim que não se devia retirar daquele sítio. 
Ambos mostraram persistência em cumprir o seu objetivo, revelando, simultaneamente, a sua lealdade. No final da canção, é possível deduzir que o sujeito não encontrou quem pretendia, e termina a canção como a começou — "Going back to the corner where I first saw you, Gonna camp in my sleeping bag no I'm not gonna move [Vou voltar à esquina onde te vi pela primeira vez, vou acampar no meu saco-cama, não, não me vou mexer]" —, enquanto que Blimunda, depois de quase uma década, viu o seu homem. Reencontraram-se, no mesmo sítio, no mesmo evento, só que, desta vez, não estavam ambos a assistir a um auto de fé, Baltasar estava a ser queimado no auto de fé — "Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. [...] E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda" (pp. 399-400).

Catarina S.
Catarina (Bom -/Suf +) ||«Pedra Filosofal» (António Gedeão / Manuel Freire), Pedra Filosofal, 1969 // José Saramago, Memorial do Convento, 19.ª edição, Lisboa, Caminho, 1989, pp. 59-68
«Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer» (vv. 1-4) — o poema de António Gedeão fala-nos da Pedra Filosofal, aquela que supostamente seria fruto da alquimia e possuiria a força e a determinação de cada ser humano para alcançar os seus sonhos. Em Memorial do Convento, também o sonho comanda a vida do Padre Bartolomeu de Gusmão, levando consigo Baltasar e Blimunda.
Manuel Freire pegou neste poema e fez dele uma canção de esperança, de luta por melhores dias, uma canção que simboliza a vontade do homem. A mesma vontade que em Memorial do Convento ajuda a passarola a voar ("destas esferas não te falarei, que são segredo meu, bastará que te diga que sem o que elas levarão dentro não voará a barca», p. 67).
A letra da canção fala-nos da história de Portugal («rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim», vv. 28-32), fala na evolução que nos chega por força dos sonhos dos homens e das suas vontades («passarola voadora, para-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar», vv. 35-42). É através dos sonhos que avançamos, que evoluímos: se não existissem sonhos e quem os perseguisse, independentemente das contrariedades, não havia evolução. É essa a ideia que o Padre Bartolomeu tenta transmitir a Baltasar. Quando este duvida («não creio que alguém possa voar sem lhe terem nascido asas», p. 64), o Padre responde que alguém teve de "sonhar" com o gancho que ele tem no lugar da mão para que esse existisse («assim como o homem, bicho da terra, se fez marinheiro por necessidade, por necessidade se fará voar», p. 64). Como se diz na canção: «sempre que um homem sonha o mundo pula e avança», vv. 45-46.
Bartolomeu, homem visionário, perseverante e de alguma forma contestatário das ideias dominantes, ambiciona ir mais além, alcançar o céu e libertar-se da hipocrisia reinante na Igreja e a passarola era a liberdade. Para Baltasar, homem simples do povo, era difícil acreditar que algo construído pelo homem pudesse voar, mas ele era o símbolo da fé de um povo que acredita sem ver, que através do desejo, constrói. Para Baltasar bastou a visão dos materiais e o desenho feito pelo Padre para acreditar («isso era Baltasar capaz de reconhecer, e porque à vista era o desenho um pássaro, acreditou», p. 67). E, assim, Baltasar entra no sonho do Padre Bartolomeu, que o convida para ajudar na construção da barca, ao que Baltasar responde que só sabe matar e que lhe falta uma mão, mas Bartolomeu explica-lhe que Deus também é maneta e construiu o universo. Assim, o sonho materializa-se para Baltasar na sua capacidade de pegar nos materiais e transformá-los («o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral», vv. 19-23). Mais tarde, também Blimunda fará parte deste sonho trazendo a vontade do homem e, a culminar, está o sonhador por excelência que fará o mundo pular e avançar, com a sua imaginação, criatividade e espirito arrojado. O Padre Bartolomeu irá voar para lá do alcance da Igreja.
«Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida» (vv. 43-44) diz o poeta em relação a todos os que não têm a capacidade de sonhar. E a verdade é que muitos não acreditavam que o sonho do Padre Bartolomeu de Gusmão se concretizasse, e todos se admiraram por ver a passarola sobrevoar os céus de Lisboa e Mafra.

Xana
Xana (Suficiente) || «Pobre dos Ricos» (Rick Bonadio/Floribella), Floribella,2006 // José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp.17-57
A canção que se adequa às diferenças, tanto no modo de vida como nas relações amorosas entre Blimunda e D. Maria Ana Josefa, pertence à série Floribella, com o nome “Pobre dos ricos”. É sobretudo nas diferenças entre a rainha, D. Maria Ana Josefa, e Blimunda, uma singela mulher do povo, pertencente à classe pobre, que reside a comparação e através delas é que se faz alusão à canção escolhida.
Maria Ana, apesar de pertencer à realeza, é apresentada no decorrer da história como uma mulher triste e insatisfeita, que se vê a viver um casamento de pura aparência, onde as regras e as formalidades se estendem até ao leito conjugal, com D. João V, o rei; já Blimunda, é definida como uma personagem pautada por características como a sensualidade e a inteligência, mas também representa um ser humano sensível e puro, criando a ponte entre Homem e Deus.
As semelhanças entre a relação das personagens supracitadas e a canção escolhida surgem, por exemplo, nas seguintes citações: “(…) Dona Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, que mesmo tendo aquecido debaixo do cobertor logo arrefece ao ar gélido do quarto, e el-rei, que já cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo esforço com que o cumpriu, beija-lhe como a rainha e futura mãe, se não presumiu demasiado frei António de São José. (…)” (p. 17) e “(…) Do que me importa se todo esse dinheiro / Não compra amigos, estrelas, o amor verdadeiro. (…)”; “(…) Não tenho nada e tenho tudo / Sou rico em sonhos e pobre em ouro / Eu tenho sorte porque sou pobre / Sobra-me tempo e sonhos. (...)”.
Relativamente a Blimunda, ou “Sete-Luas” (alcunha atribuída pelo relacionamento que estabelece com Baltasar “Sete-Sóis”), é uma mulher que possui poderes sobrenaturais e que, contrariamente ao modo de vida da rainha e à sua relação com o rei, apresenta uma certa simplicidade e um amor verdadeiro por Baltasar.
“Sete-Luas” representa a vida do povo, que é livre, num mundo sem regras nem formalidades que a escravizem. Apresenta-se, portanto, como o oposto de D. Maria Ana Josefa, personagem presa numa panóplia de formalidades e padrões a seguir (“(…) Para que é que serve tanto dinheiro/Falta os sonhos, falta vontade, faltam o tempo e a liberdade. (...)”).
No entanto, e apesar da vida simples que leva, a Blimunda é assegurado o direito de amar, a liberdade e a felicidade (“(…) Pobre dos ricos que não conhecem toda magia e liberdade/Minha riqueza são os meus amigos (…)”).
O amor entre a camponesa e o soldado inicia-se durante um auto de fé, “espetáculo” da Inquisição, onde a mãe da personagem iria ser condenada ao degredo em Angola: “(…) Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se com ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como Sei, não faças perguntas a que não posso responder, faz como fizeste, Vieste e não perguntaste porquê. (…)” (pp. 52-57).
A profundidade e a expressividade no olhar de Blimunda são duas das características que perturbam e encantam Baltasar, tornando a atração entre os dois inevitável; nasce, assim, um amor verdadeiro, puro e simples, contrariamente ao vivido entre a rainha e o rei. Este amor caracteriza-se pela luta constante por permanecerem juntos: “(…) Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lasca de carvão de pedra, mas agora só tem olhos para os olhos de Blimunda, ou para o corpo dela, que é alto e delgado como a inglesa que acordado sonhou no preciso dia em que desembarcou em Lisboa. (…)” (p. 55).

Stefanie

Stefanie (Muito Bom -) || «A Noite Passada» (Sérgio Godinho/Sérgio Godinho), Era uma Vez um Rapaz, 1985//José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 214-216 et passim
«A Noite Passada» trata ― à semelhança de uma das linhas diegéticas de Memorial do Convento ― um amor inocente, verdadeiro e eterno, profetizado no primeiro encontro. O sujeito poético da canção apresenta, na terceira estrofe, uma aproximação simples e casual do par amoroso, proporcionada, fundamentalmente, pelo «tricotar de janelas» da apaixonada (que se poderia associar à capacidade de ver por dentro de Blimunda Sete-Luas). Observando secretamente o amado («vias-me em segredo ao debruçar-te nelas»), a iniciativa é, no entanto, ao contrário do que sucede em Memorial, tomada pelo homem: «cheguei-me a ti disse baixinho “olá”». No auto de fé descrito no cap. V, Blimunda, atraída para Baltasar devido ao presságio de Sebastiana Maria de Jesus, avança decididamente: «voltando-se para o homem alto que lhe estava perto, perguntou, Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, assim reconhecendo o direito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis» (p. 56).
O eu da canção revela o caráter fatídico do primeiro encontro («toquei-te no ombro e a marca ficou lá»), presente igualmente na obra de Saramago. Blimunda, após chegar a casa, deixa a porta aberta, segura de que Baltasar entraria. Este, só tendo agora «olhos para os olhos de Blimunda, ou para o corpo dela» (p. 58), corresponde, com efeito, ao esperado, o que o leva a celebrar com Sete-Luas uma união de facto, simbolizada pela colher que partilham aquando da refeição.
A promessa de Blimunda ― «nunca te olharei por dentro», p. 60 – evidencia a honestidade e a confiança que irão servir de suporte à relação amorosa. Os dois lutam juntos em todos os momentos, sobretudo os que significam maior adversidade, nunca se abandonando. Este sentido de resiliência é observável sobretudo aquando da construção da passarola, que exige o esforço físico de Baltasar – maneta da mão direita – e que deixa Blimunda doente após a recolha de vontades em Lisboa, quando a cidade é assolada por uma epidemia. Também se acompanham e apoiam diariamente, o que os conduz a atitudes de respeito e intimidade. 
Entre o cap. XVI de Memorial e o fim da primeira estrofe da canção estabelece-se outro ponto de convergência. Blimunda Sete-Luas, apesar da sua condição social, representa a mulher forte e corajosa, que incita, frequentemente, Bartolomeu Lourenço a não desistir do seu sonho de voar. Formando, juntamente com Sete-Sóis, uma «Santíssima Trindade» terrena, participam todos de igual modo na construção da máquina que, certo dia, chega efetivamente a voar. Mas este acontecimento é, novamente, marcado pela força do amor, que não conhece obstáculos, e, por isso, é invencível: «Blimunda aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de Baltasar, e, num só movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a corda» (p. 214). Já na canção, verifica-se o tom provocante e de desafio do eu lírico («ri-me de ti “então porque não voas?”»), que impele a apaixonada a voar. O feito, ainda que metafórico, é concretizado com coragem e liberdade: «e então tu olhaste / depois sorriste / abriste a janela e voaste».
As semelhanças ressurgem aquando da enunciação do eu, «aqui vivemos muitos anos», uma vez que esta remete para a duração da residência, igualmente considerável, de Sete-Sóis e Sete-Luas, na abegoaria, em S. Sebastião da Pedreira («no outro extremo o canto da enxerga onde durante seis anos dormiram Baltasar e Blimunda», p. 214).
A cumplicidade que une o soldado maneta e a mulher com poderes leva-os a aceitar o seu passado e a serem felizes («abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar, parecia uma criança perdida, um soldado que andou na guerra, que nos Pegões matou um homem com o seu espigão, e agora soluça de felicidade abraçado a Blimunda», pp. 215-216). Por sua vez, a perseverança de Sete-Luas, que procura Sete-Sóis durante nove anos, é o maior símbolo do amor genuíno, concedendo-lhe o mérito de ser titular da vontade de Baltasar Sete-Sóis: «mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda» (p. 400).

Vitória

Vitória (Bom (-)) || «Trem bala» (Ana Vilela / Ana Vilela), Single, 2016// José Saramago, Memorial do Convento, 1.ª Edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1982, pp. 50-56, 357
A canção intitulada «Trem bala», de Ana Vilela, pode ser relacionada com a obra de José Saramago, mais precisamente com a história de amor entre Baltasar e Blimunda.
É dia de auto de fé em Lisboa, dia de alegria duplicada, “por ser domingo e haver auto de fé” (p. 50), inúmeras pessoas reúnem-se no Rossio para ver “justiçar a judeus e cristão-novo, a hereges e feiticeiros” (p. 50). Nenhuma pessoa demonstra piedade aos condenados, não reparam que a vida lhes está a ser retirada a meio das suas viagens (“Porque quando menos se espera / a vida já ficou para trás”), limitaram-se a acreditar que elas são merecedoras de tal atrocidade.
Sebastiana Maria, uma mulher com visões e revelações, muito poderosa, capaz de ouvir vozes do céu, é uma das condenadas a ser açoitada em público, com a justificação de que todas estas capacidades paranormais que a mesma detinha eram «efeito demoníaco» e, assim, precisavam ser contidos.
No meio da multidão, Sebastiana, procura por sua filha Blimunda, desejando vê-la pela última vez («onde estás Blimunda / aqui hás de vir saber da tua mãe, e eu te verei»), para assim se despedir da filha amada («que só para te ver quero agora olhos»). Na música «Trem bala», o sujeito poético afirma a importância de aproveitarmos todos os momentos que temos com nossos filhos e pais (“Segura seu filho no colo / Sorria e abrace seus pais / Enquanto estão aqui”), para que quando a vida estiver a chegar ao fim, não nos arrependermos de nada. No fundo, é isso que Sebastiana queria vivenciar pela última vez ao olhar para a filha, a sensação de pegá-la ao colo, mas apenas pelo poder do olhar, já que as duas eram capazes de se comunicar por via dele («olha com os seus olhos que tudo são capazes de ver»). Depois de avistar Blimunda («ai, ali está, Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu», p. 53) com o padre Bartolomeu (“E assim ter amigos contigo / Em todas as situações”), Sebastiana indaga «e aquele homem quem será, tão alto, que esta perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem, que vai ser deles» (p. 53) e reconhece que poderá existir algo entre Blimunda e o homem. Assim, por telepatia, manda Blimunda perguntar o seu nome, a quem ele responde prontamente «Baltasar Mateus, também conhecido como Sete-sóis» (p. 53).
Terminado o auto de fé, Blimunda vai para a sua casa acompanhada do padre Bartolomeu Lourenço e de Baltasar, que segue o caminho todo em extremo silêncio, limitando-se a olhar Blimunda. Ao sentir «um aperto na boca do estômago» (p. 55), chega à conclusão de que foram predestinados a ficar juntos e que ela era a mulher da sua vida. Esta conclusão de Sete-Sóis acabou por ser ainda mais estabilizada quando Blimunda come da sua colher e, assim, se dá o casamento simbólico entre a Lua e o Sol.
Nesta noite, Blimunda declara a Baltasar que perguntou o seu nome por vontade da mãe, «porque a minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse» (p. 56). Assim, Sebastiana acaba sendo o importante elo de ligação entre o casal, garantindo que Blimunda terá “sempre” alguém para partilhar os momentos da sua vida (“Não é sobre ter / Todas as pessoas do mundo para si / É sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti”). Blimunda e Baltasar selam seu amor e cumplicidade ao terem uma relação sexual, em que Blimunda perde a virgindade e desenha uma cruz no peito de Baltasar com seu sangue (“É sobre ser abrigo / E também ter morado em outros corações”).
Deste modo, a história amorosa dos dois acaba sendo uma lição de vida para muitos. Mesmo sendo alvo de injustiças e pertencendo a uma classe social inferior, eles não necessitavam de riquezas para serem felizes, apenas um do outro (“Não é sobre tudo o que seu dinheiro / É capaz de comprar / E sim sobre cada momento / Sorriso a se compartilhar.”). Aproveitavam a dádiva que era o amor, suportando todas as barreiras que se punham entre eles, demonstrando que a união dos mesmos era inquebrável (“A gente não pode ter tudo / Qual seria a graça do mundo se fosse assim? / Por isso, eu prefiro sorrisos / E os presentes que a vida trouxe para perto de mim”).
Portanto, nem quando a morte parecia ser uma ameaça para os dois, o amor esmoreceu, provando que vida é mais forte que a morte e que, mesmo morrendo, vivemos no coração de quem amamos, um amor puro, que mantém vivo além das vontades: «Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.» (p. 357). Como exemplo deste amor eloquente, devemos ter em consideração que a vida é como um trem bala, e deve ser aproveitada e vivida intensamente, porque “Quando menos se espera a vida já ficou para trás”. Assim, como meros passageiros desta viagem, um dia partiremos (“Que a vida é trem bala parceiro / E a gente é só passageiros prestes a partir”).

Sara

Sara (Bom +) || «Fire and Rain» (James Taylor/James Taylor), Sweet Baby James, 1970 // José Saramago, Memorial do Convento, 3.ª edição,
Lisboa, Caminho, 1982, pp. 190-260.

A canção «Fire and Rain» expõe a reação do cantor James Taylor ao suicídio da amiga de infância Suzanne Schnerr, podendo ser relacionada com o episódio de Memorial do Convento em que Baltasar descobre a morte de Padre Bartolomeu de Gusmão.
O grande projeto da vida de Padre Bartolomeu foi a “Passarola”, uma máquina voadora completamente revolucionária para a época e que não era bem vista pelo Santo Ofício – se não fosse protegido pelo rei D. João V, corria o risco de ser perseguido pela Inquisição. No dia em que finalmente conseguiu, em conjunto com Baltasar e Blimunda, fazer a máquina voar, sofreu um acidente e o Padre Bartolomeu despareceu («Na noite em que a máquina caiu na serra, o padre Bartolomeu fugiu de nós e nunca mais voltou», p. 224). Acordaram na manhã seguinte e ele não tinha voltado, tal como aconteceu com o sujeito poético em «Just yesterday morning they let me know you were gone [Na manhã de ontem avisaram-me que tinhas partido]», e, apesar de Blimunda afirmar que nunca mais o veriam («Foi-se embora, não o tornaremos a ver», p. 206), no fundo tinha esperança de que isso acontecesse (como vemos em «(…) recado que ficará para o padre Bartolomeu, se aqui voltar um dia verá este sinal dos seus amigos, não há confusão possível.», p. 222), da mesma forma que o sujeito poético da canção acreditava que, apesar de tudo o que se tinha passado, voltaria a ver a sua amiga («But I always thought that I’d seen you again [Mas eu sempre achei que te voltaria a ver]»).
Na canção é apresentado um sujeito desconhecido que, de alguma forma, ao exercer pressão sobre Suzanne, foi responsável pelo seu trágico fim («Suzanne, the plans they made put an end to you [Suzanne, os planos que eles fizeram acabaram contigo]»). Esta situação repete-se, de certa forma, em Memorial do Convento, onde é a descrença de todos na sua invenção que coloca pressão nos ombros já cansados do padre Bartolomeu, fazendo-o investir toda a sua pouca sanidade mental num projeto improvável, que, apesar de chegar a voar («a máquina estremeceu, oscilou como se procurasse um equilíbrio subitamente perdido (…) até que, firme, novamente equilibrada, erguendo a sua cabeça de gaivota, lançou-se em flecha, céu acima.» p. 196) acaba destruída no chão – cenário que parece estar descrito no verso da canção «Sweet dreams and flying machines in pieces on the ground [Sonhos doces e máquinas voadores em pedaços no chão]».
Com a perda da amiga de longa data, o “eu” da composição mostra-se nostálgico ao transportar-se para o passado, para um tempo melhor em que este problema não era real nem imaginável – evidenciado em «Been walkin' my mind to an easy time [Tenho andando a pensar em tempos mais fáceis]» –, como também deve ter acontecido com Baltasar que, certamente, se colocou no dia em que Bartolomeu o fez acreditar que o facto de ele não ter a mão esquerda não o incapacitava de ser alguém grande porque maneta era Deus e ainda assim tinha feito o universo – momento crucial da amizade dos dois.
Precisamente por ter sido escrita pelo autor numa situação tão semelhante à que surge em Memorial do Convento, a quadra que faz de refrão ao longo da canção («I've seen fire and I've seen rain [Tenho visto fogo e tenho visto chuva] / I've seen sunny days that I thought would never end [Tenho visto dias de sol que pensei não terem fim] / I've seen lonely times when I could not find a friend [Tenho visto momentos solitários em que não consegui encontrar um amigo]») parece narrar o pensamento de Baltasar ao assimilar a morte do seu grande amigo, ao interiorizar as palavras “o padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha, para onde tinha fugido, dizem que louco” (p. 224), lembrando os dias de trabalho na construção do Convento e os momentos difíceis na adaptação dessa nova realidade em que nunca perdeu a esperança de o reencontrar, como se estivesse à espera de que ele voltasse para lhe contar as novidades.

Matilde

Matilde (Bom/Bom (-)) || «Mar Salgado» (Amor Electro/Marisa Liz), (R)evolução, 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, 8.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 53-56
A canção que escolhi é bastante atual. No ano 2013, a banda Amor Electro lançou o single “Mar Salgado”: porque não escolher uma canção tipicamente portuguesa, fazendo o paralelismo com uma das obras mais características do nosso país? Confesso que foi uma dor de cabeça encontrar uma música que se pudesse relacionar com a obra de José Saramago. Assim que ouvi Mar Salgado, não só me veio à memória a relação calorosa e exuberante entre Baltasar e Blimunda, – mais especificamente, o momento em que se conheceram – como também o grande desejo e ambição do padre Bartolomeu: voar.
Tudo tem início num dos autos de fé, comum na história do século XVIII. É um facto que o mal e a condenação dos outros era motivo de gozo para muitos e questiono-me acerca de de tal atitude. Entre os condenados encontra-se Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda. Um quarto cristã-nova, Sebastiana afirmava ter visões e revelações; no entanto, a Inquisição condenou-a ao degredo, considerando ser mero fingimento.
Blimunda, por sua vez, acompanhada do padre Bartolomeu, acompanhava a procissão, sem qualquer tipo de acusação imposta. Perto dela está Baltasar Sete-Sóis. Numa tentativa de desvendar o mistério sobre quem seria, perguntou “Que nome é o seu”, tendo o soldado maneta respondendo “Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis”. Os olhares cruzados eram constantes, a chama acendia-se entre os dois: “(…) havia Sete-Sóis de lembrar-se da guerra, mas agora só tem olhos para os olhos de Blimunda, ou para o corpo dela (…)”. É a este contexto que podemos associar os versos da canção “Eu desperto / Já vejo o calor”.
Blimunda não hesitou em deixar Baltasar entrar em sua casa, e, mesmo, na sua vida. Blimunda serviu-lhe uma tijela de sopa e, sem falar desde a pergunta “Que nome é o seu”, a jovem fazia que Baltasar percebesse o interesse que despertara nela.  A chama era inquestionável e, após Bartolomeu ter deitado bênção, casou-os como prova do seu amor. Associo, pois, os versos da canção “É contigo afinal/Vou perder-me de vez sem pudor/Já vejo amor” à entrega dos dois jovens, ao convite de Blimunda para Baltasar ficar em sua casa até ir para Mafra e permanecer junto a ela.
Após Bartolomeu ter saído, o casal ficou sozinho. Perante o convite de Blimunda, Baltasar viu-se sem condições a rejeitar, admitindo “Não [ter] forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, (…) Se eu ficar onde durmo, Comigo”. Blimunda era virgem, até à noite que passou com Baltasar. Entregou-lhe da melhor maneira possível, demonstrando o que verdadeiramente sentia pelo soldado. Fazendo o paralelismo entre a canção “Mar Salgado” e a obra Memorial do Convento, os versos “Cai neste abraço que é só teu / Que é tão forte o meu desejo / Mar salgado no meu beijo / Vem / Faz de conta que és só meu / De um adeus que não se encontra” transmitem-me a entrega da jovem ao soldado, traduzida num casamento (“De um adeus que não se encontra”) com quem teve as suas primeiras relações sexuais (“Que é tão forte o meu desejo”).
Tal como afirmei no início, é possível, igualmente, associar esta canção à vontade de voar incontrolável do padre. Bartolomeu de Gusmão sempre tivera esse desejo imenso, o de ser como os pássaros e ter a capacidade de ver o mundo de cima. Embora criticado, gozado e mesmo julgado pela população e, sobretudo, pela Inquisição, o padre empenhar-se-á na concretização desse seu sonho – sempre com a ajuda dos seus amigos Baltasar e Blimunda – e construirá uma passarola capaz de voar, junto das aves. É assim que associo os versos “Quase perto / Quase a viajar / Mergulho incerto / Pronto a respirar” ao momento em que Bartolomeu liberta de vez a passarola, em razão da descoberta pela Inquisição da sua construção (capítulo dezasseis). Transformou, por fim, o seu desejo em realidade.
Assim, tanto numa canção de 2003 como numa obra do século XIX, encontram-se traços comuns, exaltando o amor indiscutível entre o grande casal da obra e o desejo do padre que, no fim, acabou por ser realizar. É possível sonhar.

Madalena F.

Madalena F. (Bom +) || «Rainha sem coroa» (Bezegol/Bezegol), S. A. C. A. N. A., 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, 54.ª Edição, Alfragide, Caminho, 2014, pp. 377-400
“Adeus Blimunda, Adeus Baltasar” (p. 373) – e foi assim que se despediram, pela última vez, Sete-Luas e Sete-Sóis. O Sol e a Lua complementam-se: correspondem à luz e à sombra que compõe o dia. O mesmo acontece com Baltasar e Blimunda, que são, pelo amor que os une, um só. A sua ligação única, que faz deles o verdadeiro exemplo de um amor verdadeiro, teve o seu início numa troca de olhares num auto de fé.
A ciência desmistificou o conceito de “amor à primeira vista”, alegando que não é nada mais que uma simples e comum reação química. Mas, no caso de Baltasar e Blimunda, que desde o princípio já sabiam que ficariam juntos, mesmo sem saber ao certo o porquê (“Há muitos modos de juntar um homem e uma mulher, mas, não sendo isto inventário nem vademeco de casamentar, fiquem registrados apenas dois deles, e o primeiro é estarem ele e ela perto um do outro, nem te sei nem te conheço, num auto-de-fé, da banda de fora, claro está, a ver passar os penitentes, e de repente volta-se a mulher para o homem e pergunta, Que nome é o seu, não foi inspiração divina, não perguntou por sua vontade própria, foi ordem mental que lhe veio da própria mãe, a que ia na procissão, a que tinha visões e revelações, e se, como diz o Santo Ofício, as fingia, não fingiu estas, não, que bem viu e se lhe revelou ser este soldado maneta o homem que haveria de ser de sua filha, e desta maneira os juntou”, p. 119), é inevitável ficar com algumas dúvidas. Trata-se de uma paixão avassaladora, vivida com intensidade desde o primeiro momento, como também acontece na canção «Rainha sem coroa», do artista Bezegol (“Lembro-me dos momentos, daqueles primeiros tempos / Em que fomos sobrepondo sentimentos / Foi tudo à flor da pele, a agitação do fel ao mel / Foi levantar e aterrar no teu bocel”).
Estavam sempre juntos. Sofriam juntos, lutavam juntos. Partilhavam as alegrias e as tristezas, as preocupações e as angústias. Até que, nos últimos capítulos da obra de José Saramago, Baltasar desaparece. Nos versos de Bezegol, o sujeito poético reflecte sobre a ruptura com a sua vida anterior (“Foi ver a vida em outra escala / De tanto não querer deixá-la, abandonou-me), acabando por, à medida que vai aceitando o sucedido, cair numa mágoa sem fim, no completo desespero (“Ás vezes dou por mim meio perdido / Vejo que não estás comigo / Sinto-me tão sem abrigo / Pensamento é vazio / Na espinha um arrepio / É contigo que eu agasalho o meu frio”). O mesmo aconteceu com Blimunda que, ao deparar-se com a perda do seu amor, ficou desamparada, sem rumo. Mas, ao aceitar o infortúnio de ter perdido Baltasar (“sentou-se no degrau de pedra, deixou cair: os braços, e ia abandonar-se ao desespero quando pensou que não poderia explicar como estavam na sua posse a manta e o alforge de Baltasar, se justamente teria de dizer que fora por ele e não o encontrara”— p. 389), sente-se motivada pelo amor que nutre por ele e procura-o, caminhando por Portugal inteiro. E assim, nos dois últimos capítulos de Memorial do Convento, é relatada esta persistência que leva “Durante nove anos, Blimunda [a] procur[ar] Baltasar” (p. 395), pois, tal como acontece na canção do artista português, tudo o que Blimunda quer é ficar com aquele que ama (“Gosto tanto de te ter / No meu sentido nunca eu te quis perder / Fica comigo”), continuando assim a sua longa procura pela pessoa amada, impulsionada pela esperança de o reencontrar (“Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça duma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria e em lugar de dinheiro ou pão lhe estenderia um gancho de ferro, e ela meteria a mão ao alforge e de lá tiraria um espigão da mesma forja, sinal da sua constância e guarda, Assim te encontro Blimunda, Assim te encontro Baltasar”, p. 398).
Assim, este episódio da obra literária fica marcado pelo amor. Um amor que quebra todas as barreiras do físico e concreto, fazendo-nos mergulhar numa aura de magia e do sobrenatural. Um amor que perdura ao longo de toda vida e mesmo para além desta, ampliando-se como algo desmedido e intemporal. Um amor que fez Blimunda andar descalça por nove anos à procura de Baltasar.

Madalena S.

Madalena S. (Bom (-)/Bom -)) || «We Built This House» (Martin Hansen, Mikael Nord Andersson, Klaus Meine), Return to Forever, 2015 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016
Único, espontâneo e selvagem é como o narrador cria “[…] este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja[…]” (p. 79). Estes dois seres de vanguarda com predestinação perfeita gizada pelo destino e bafejada pela sorte, cujos apelidos pronunciavam a felicidade eterna (“But we are always standing strong, a lifetime together [Mas nós permanecemos fortes, uma vida inteira juntos]”), apesar dos seus parcos recursos materiais (“Com pouco dinheiro no bolsilho, umas só moedas de cobre que soavam bem menos que os ferros do alforge […]”), possuíam o maior bem que qualquer ser humano poderia ambicionar: o desejo da paixão e o desejo de concretização de um sonho.
Nem o infortúnio da mutilação que sofrera na guerra impediu que tivesse vivido o pleno de uma paixão sem regras, sem limites, auxiliada pelo dom de “ver o interior das pessoas”, característica a salientar de Blimunda, a Sete-Luas. Na canção do grupo musical Scorpions, o verso “We didn’t crack or break or fall [Não falhámos, quebrámos ou caímos]” poderia servir para constatar o facto de que apesar de todas as adversidades ditadas pelas forças supremas, este casal também teve a possibilidade de participar na concretização de um sonho, primeiramente de um amigo — o padre Bartolomeu de Gusmão —, e que, com o entusiasmo, passou também a ser o deles, na medida em que todos juntos trabalhavam com a mesma finalidade: construir uma passarola.
Responsável e cúmplice por esta união talhada nos céus, o padre Bartolomeu de Gusmão, sonhador, letrado, inventor, íntimo de D. João V, teve, talvez por isso, a oportunidade de concretizar a sua aspiração quase impossível de conceber e executar aquele engenho idealizado a que chamavam passarola. Ao longo de Memorial, o padre permitiu a aproximação e legitimou esta união que, apesar de informal de acordo com as leis dos homens, foi reconhecida pelas leis de Deus. “Love is the glue that hold us together [O amor é o elo que nos mantém juntos]” é o verso que sublinha esta imensa paixão entre Baltasar e Blimunda.
Após o sucesso da construção da passarola, e do seu primeiro voo, o casal retorna a Mafra, região que por imposição régia se tinha tornado o maior centro de actividade do país, que num esforço de cruel exploração, era obrigado a levantar a edificação que significava a vaidade e ostentação do monarca. Aproveitara este o fundamento de uma promessa (“[…] se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila de Mafra, Deus lhe daria sucessão […]”, p. 12), e para isso depauperou e estagnou o país, gastanto desmesuradamente as remessas de ouro provenientes do Brasil.
Baltasar foi um dos operários mal remunerados desta construção utópica mas, mesmo assim, era o sustento de Blimunda, o seu único e eterno amor. Fazendo a analogia com a canção,“We built this house […] Brick by brick, we have set it up [Construímos esta casa tijolo por tijolo, nós construímos]” vem ilustrar a ação de milhares de pessoas que contribuíram para uma obra megalómana, muitas vezes sacrificando a sua própria vida nesta construção cuja desmesura ainda hoje é questionada.

Elly

Elly (Suficiente +) || «I Believe I Can Fly» (R. Kelly), Space Jam, 1996 // José Saramago, Memorial do Convento, 56.ª edição, Porto, Porto Editora, 2014
A frase «I Believe I Can Fly», que serve de título à canção do cantor americano R. Kelly, poderia constar ao longo do enredo de Memorial do Convento, sobretudo no quando capítulo VI, a o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, cognominado o padre voador, confessa o seu sonho de um dia conseguir voar.
A faixa do álbum Space Jam (1996), por ser uma música mundialmente conhecida e inspiradora para todos os que a escutam — na medida em que nos faz acreditar que tudo é possível e que vale a pena lutarmos pelos nossos sonhos —, foi, decididamente, a minha primeira e única opção para esta análise.
No decorrer do capítulo Baltasar fala com o padre Bartolomeu Lourenço, Bartolomeu diz sonhar que um dia conseguirá voar e que («O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará», p. 66). Baltasar dá a sua opinião argumentando que para um homem voar terá de nascer com asas, o que me relembra as pessoas que sempre duvidam das nossas capacidades e não acreditam que somos capazes de fazer algo, o que é citado nesta canção ("I used to think that I could not go on / And life was nothing but an awful song / But now I know the meaning of true love / I'm leaning on the everlasting arms [Eu costumava pensar que eu não conseguia prosseguir / E que a vida não era nada, além de uma terrível canção / Mas agora sei o significado do verdadeiro amor / Eu apoio-me nos braços do Eterno (Deus)]"). Se tivermos fé e acreditarmos, tudo é possível, mesmo que, para tal, tenhamos de errar muito e, dessa forma, aprender novas lições, melhorando cada vez mais as nossas capacidades e a pessoa que somos.
Bartolomeu conta a Baltasar que já voou, que vários foram os projetos com esse objetivo, embora todos tenham acabado mal e sem nenhuma resposta definitiva ao seu grande sonho («primeiro fiz um balão que ardeu, depois construí outro que subiu até ao teto duma sala do paço, enfim outro que saiu por uma janela da Casa da Índia e ninguém tornou a ver», p. 66). Mas a graça da vida está aí, em errar e repetir de novo até dar certo. A persistência é uma das qualidades mais bonitas e invejáveis que todo os seres humanos deveriam adquirir. Mesmo que os outros nos julguem e duvidem de nós («só os pássaros voam, e os anjos, e os homens quando sonham, mas em sonhos não há firmeza», p. 66), devemos sempre acreditar ("I believe I can fly / I believe I can touch the sky / I think about it every night and day / Spread my wings and fly away [Eu acredito que posso voar! / Eu acredito que posso tocar o céu/ Penso nisto dia e noite/ Abrir as minhas asas e voar]").
A chave de tudo está presente no nosso carácter, a chave para todas as realizações e sonhos concretizados está presente em nós (“See I was on the verge of breaking down / Sometimes silence can seem so loud / There are miracles in life I must achieve / But first I know it starts inside of me [Vejam, eu estive à beira da auto-destruição / Às vezes o silêncio pode parecer tão alto / Existem milagres na vida, eu preciso realizá-los/ Mas primeiro eu sei que começa dentro de mim]"), basta resiliência para a encontrar, o que é tão bem exemplificado com o caráter de padre Bartolomeu, um homem curioso, em busca de mais conhecimento, empenhado nas suas crenças e grande defensor da capacidade criativa do ser humano (“If I can see it, then I can be it / If I just believe it, there's nothing to it [Se eu posso ver isto, então eu posso acreditar nisto / E se eu acreditar, nada me poderá impedir]").
Desistir, jamais poderá ser uma opção. E esta é uma lição que devemos levar para toda a vida, pois para mim acreditar está-me no coração (“I believe I can soar / I see me running through that open door / I believe I can fly / I believe I can fly / I believe I can fly [Eu acredito que eu posso elevar-me / Eu me vejo passando por aquela porta aberta/ Eu acredito que posso voar! / Eu acredito que posso voar! / Eu acredito que posso voar!]") E que todos possamos acreditar também.

Carolina

Carolina (Bom -) || “Pedra Filosofal” (António Gedeão /Manuel Freire), Pedra Filosofal, 1969 / / José Saramago, Memorial do Convento, 56.ª edição, Porto, Porto Editora, 2015
Em “Pedra Filosofal” é retratado o sonho como a essência fundamental e ilimitada do avanço da vida humana, do mesmo modo que em Memorial do Convento um grande feito é alcançado de forma prodigiosa pelo culminar da imaginação da mente humana.
O sujeito poético começa por afirmar que “Eles não sabem que o sonho / é uma constante da vida / tão concreta e definida / como outra coisa qualquer”, pretendendo assim transmitir a presença constante do sonho, da busca incessante do concretizar realidades possíveis ao longo de toda a vida do ser humano.
Observamos, paralelamente, o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, “um padre que queria voar e morreu doido”, e a sua fantasia absurda de ter a liberdade das aves, de sonhar para além do convencional e socialmente estabelecido e de estabelecer laços de amizade com Blimunda e Sete-Sóis, igualando-se pelo sonho da máquina voadora, menosprezando diferenças sociais e culturais.
O sonho e a alegria estão intimamente ligados na celebração dos momentos mais significativos da vida de cada indivíduo, tal como o vinho e o fermento impulsionam o avanço da matéria, das experiências e da criatividade, fazendo progredir o sonho, nunca desistindo.
Ao sonhar, o Homem transfere do seu imaginário tudo o que é belo, artístico e digno de ser admirado pelo seu semelhante para conferir não só beleza à vida, como também a capacidade de fazer o outro parte do seu incessante processo criativo. Todos são assim contagiados e impelidos a irem mais além do que a alma inicialmente os inspira. Esta  ambiciosa busca está patente no padre Bartolomeu que admirava nos pássaros a beleza de ver o mundo por outra perspetiva, levando-o a viajar para desenvolver a sua aprendizagem na ambição constante de tornar desenvolver e criar a passarola. Esta excêntrica personagem distingue-se dos demais precisamente pela valorização da imaginação e do sonho na capacidade de criar e inventar: “Porque eu voei” (p. 66), diz Bartolomeu ao incrédulo Baltasar; para voar foi lhe necessário dar asas à imaginação e adquirir os conhecimentos técnicos e científicos que levaram à construção de máquinas voadoras: “Pois eu faz dois anos que voei, primeiro fiz um balão que ardeu, depois construí outro que subia até ao teto duma sala do paço, enfim outro que saiu por uma janela da Casa da Índia e ninguém tornou a ver” (p. 66).
Ao irem para além das rotas conhecidas, os portugueses rumaram ao Oriente movidos pelo sonho da conquista de novos territórios e riquezas, expandindo a fé cristã, dando destaque universal  ao Império Português, feito até à época inédito (“rosa-dos-ventos, Infante, / caravela quinhentista, / que é cabo da Boa Esperança, / ouro, canela, marfim,”). O Homem foi então capaz de inventar instrumentos e as embarcações necessárias a tamanho empreendimento.
Bartolomeu Lourenço acredita no poder do Homem para concretizar o que parece impossível — voar — e vê no seu invento um prolongamento de si mesmo, já que se trata da materialização da sua imaginação (“Voaram os balões, foi o mesmo que ter voado eu”, p. 66). Perante a desconfiança expressa por Baltasar (“Voar balão não é voar homem”, p.66), Bartolomeu esclarece que a concretização dos sonhos e do progresso da Humanidade é realizada por etapas, por isso o importante é que o Homem tente por em prática os seus projetos, embora sabendo que o percurso que o leva à concretização das suas ambições máximas é penoso e longo: “O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará, respondeu Bartolomeu Lourenço” (p. 66).
Partindo do avanço e do desenvolvimento científico, já não há limites quando o Homem sonha (“passarola voadora, / para-raios, locomotiva, (…) desembarque em foguetão na superfície lunar”). A Humanidade alcança finalmente o sonho de se elevar aos céus.
Numa sociedade incapaz de compreender que o ser humano se pode libertar da terra, se assim o desejar, Bartolomeu de Gusmão afirma-se como um inventor e por isso lamenta “a risada da Corte e de poetas” e ainda que apelidem o seu evento “coisa de vento”, tal como o sujeito poético conclui que “Eles não sabem, nem sonham, / que o sonho comanda a vida, / que sempre que um homem sonha / o mundo pula e avança / como bola colorida / entre as mãos de uma criança”.
Todos os seres humanos têm sonhos, mas nem todos os sonhos são realizados, pois nem todas as pessoas conseguem ter a necessária vontade para os erguer.
A temática do sonho é muito importante e simbólica em Memorial, assim como também é alvo da preocupação de Saramago que chegou inclusive a afirmar que: “São os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, o próprio e único céu”.

Vasco Af.

Vasco Af. (Bom -) || «Calling» (Dead by April / Pontus Hjelm), Calling, 2011 / / José Saramago, Memorial do Convento, 53.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 462-478
«Calling» apresenta caraterísticas muito semelhantes ao momento que escolhi analisar em Memorial do Convento. O «eu» da canção refere uma relação de amor passada, mas que nunca esqueceu e que deseja voltar a ter. Também no capítulo XXIII-XXIV de Memorial, temos um casal (Blimunda e Baltasar) que, à semelhança da música, está também separado, não por terem terminado, mas por um contratempo nas suas vidas. Neste trecho do capítulo XXIII, acontece algo inesperado na vida do casal, pois Baltasar, num certo dia, dirigia-se ao Monte Junto onde guardava a Passarola. Estava com muito receio de que a tivessem roubado ou que estivesse estragada, mas, quando lá chegou, reparou que estava tudo em ordem, apenas algumas tábuas estavam podres mas nada que não tivesse arranjo – mal ele sabia que era exatamente aquilo que lhe mudaria a vida –, e decidira então que iria desmontar a sua invenção peça a peça, quando, de repente, se dá a tragédia. Baltasar cai monte abaixo, perdendo o seu gancho, e não deu sinais de vida durante muito tempo.
Quer na composição de Pontus Hjelm quer neste trecho da obra de José Saramago, existe uma separação, embora que por razões distintas, ilustrando-se também os sentimentos que cabe à pessoa abandonada sentir. Não são propriamente os desastres o foco principal, mas todos os sentimentos, neste caso negativos em ambas as situações, que acabam por destroçar e levar ao desespero aqueles que se sentem injustiçados.
Já no capítulo XXIV, Blimunda estranha o desaparecimento do seu companheiro e parte à sua procura. Destemida, procura-o até de noite, pelos caminhos que ele percorrera, sempre com alguma esperança de o vir a encontrar. Na canção, o homem desespera pela amada e encontra-se várias vezes a recordá-la e aos momentos que viveram («Lembras-te dos dias que passamos juntos?», «Daria qualquer coisa para tê-los sempre», «E de todas as coisas que costumávamos rir», «Eu gostaria de poder trazê-la de volta, gostaria de poder tê-la de volta» [« Remember the days we spent together?», « I'd give anything to have 'em forever», «And all the things we used to laugh at», «I wish I could bring it back, wish I could take it back»]).
O compositor escreve uma reflexão sobre a sua amada e como faria de tudo para que ela voltasse («Agora, há coisas que eu nunca soube», «Estou parado aqui e estou a chamá-la», «Significa o mundo pra mim, acredita que é verdade», «Eu amo-te» [(«Now I know things that I never knew», «I'm standing out here and I'm calling you», «Mean the world to me and believe that it's true», «I love you»]). Semelhantemente, em Memorial do Convento, Blimunda também se encontra a refletir na beira do caminho, sentada sobre uma pedra: «Contudo, é apenas uma desgraçada mulher que perdeu o seu homem, levado por ares e ventos, que faria todos os bruxedos para que ele regressasse» (p. 473). É a partir deste momento que Blimunda começa a perder a esperança e, para piorar a situação, é violada por um frade dominicano («Blimunda torceu o corpo, aterrada, não por ter matado, mas por sentir aquele peso, duas vezes esmagador», p. 477).
Chegamos ao momento fulcral, quer da canção quer do capítulo XXIV, o refrão e o momento em que Blimunda se sente completamente destroçada, aterrorizada e desamparada. O refrão da composição musical baseia-se no momento em que o homem se sente um zé-ninguém, apenas quer a sua mulher de volta e decide chamar por ela gritando: «Consegues-me ouvir a chamar, a chamar por ti?», «Consegues-me ouvir a gritar, a gritar por ti?», «É como se eu estivesse despido à chuva», «Sozinho e a lidar com a dor», «Consegues-me ouvir a chamar, a chamar, a chamar?» («Can you hear me calling? Calling for you», «Can you hear me screaming? Screaming for you», «It is like I'm naked out in the rain», «Alone and dealing with the pain», «Can you hear me calling? Calling, calling»). No trecho do capítulo, Blimunda anda pelos montes, à noite e começa a sentir-se vulnerável («Havia um grande desamparo naqueles montes, por isso ela começou a chorar.», «A escuridão encheu-se de sons assustadores, o piar de um mocho, o ramalhar das azinheiras, e, se não era perdição dos ouvidos, para aquele lado ululara um lobo.», p. 474).
Tal como neste trecho, na canção também não se sabe ao certo o que acabou por acontecer. Fica então a incógnita. Será que o homem recuperou a sua paixão? Será que Blimunda encontrou o amor da sua vida?

Afonso

Afonso Puga (Bom -) || «Wildfire» (Borgeous), Wildfire, 2014 // José Saramago, Memorial do Convento, 58.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016, pp. 395-400
«Wildfire» n(Fogo Selvagem) é o nome da canção em que o eu refere o seu namorado e esta designação caracteriza-o indiretamente. É evidente que faz parte da sua vida, tornando-a entusiasmante e cheia de aventura e surpresas. Assemelha-se a Memorial do Convento porque a paixão mútua de Blimunda e Baltasar era fortíssima – como se tivessem sido feitos um para o outro – e não imaginavam as suas vidas separados. Pode dizer-se que eram o fogo selvagem de um do outro.
O primeiro verso da canção começa por dizer «You and I found love in the dark» (Eu e tu encontrámos amor na escuridão/nas trevas) e achei que se assemelhava à relação do romance, dado que Baltasar e Blimunda se conheceram durante um evento vil e obscuro, como era um auto de fé. Hoje em dia, a Igreja está envergonhada das atrocidades que cometeu, evitando, se possível, mencioná-las. Parece que o segredo para uma viva relação amorosa é o seu começo num ambiente negativo e infeliz.
Esta tese não desmistifica o conhecido amor à primeira vista, o que me leva ao segundo verso da canção «We made up wildfire from the start» (Houve chama/química desde o início). Tal como com Blimunda e Baltasar, o primeiro contacto entre as personagens da canção resultou também numa relação.
Entrando finalmente nas páginas em que me foco, o próximo verso da canção destaca o que sentiu Blimunda «Durante [os] nove anos, [em que] procurou Baltasar» (p. 395). «And I wish I could turn back the time just to feel you again» (E quem me dera poder voltar atrás no tempo para poder voltar a sentir-te) passou certamente na cabeça de Blimunda durante os seus extensos nove anos de sofrimento.
Uma outra grande semelhança entre as duas obras está na longa jornada que Blimunda percorreu («Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer», p. 395) e a caminhada que a personagem da canção está disposta a fazer («(Be)Cause I would burn a thousand miles to be with you my wildfire» [Porque eu queimaria/percorreria mil milhas para estar contigo, meu fogo selvagem]). O amor destes dois casais é tão real que, nestes casos, as personagens femininas passaríam por tudo e mais alguma coisa para poderem estar ao lado dos amores das suas vidas.
Contrastando as obras, sabemos que a causa da separação do casal do livro de Saramago foi o desaparecimento de Baltasar, enquanto na canção, pelo menos pelo videoclip, percebemos que é um casal simplesmente afastado por qualquer razãoque não é explicitada mas parece irrelevante.
Tanto o livro como a canção mostram o poder que o amor pode ter sobre um ser humano ora a capacidade de sentir completa qualquer um de nós quer nos bons quer nos maus momentos, porque, tal como há a felicidade, há a tristeza e sem uma não existiria a outra. Sou a favor de uma vida repleta de sentimentos e emoções. Não estamos só de passagem.

Pipa

Pipa (Bom (-)) ||«Megalomaniac» (Incubus), Live in Japan, 2004 // José Saramago, Memorial do Convento, Porto, Porto Editora, 2014
Escolhi a música “Megalomaniac", escrita em 2004, da banda de rock/indie Incubus, uma banda que me foi dada a conhecer pela minha irmã há uns meses. Uma vez transposta para o contexto de Memorial do Convento é capaz de “despir” o magnata D. João V, e, de certa forma, ridicularizá-lo.
Houve muita controvérsia aquando do lançamento desta canção, uma vez que muitos a consideraram uma condenação veemente a George W. Bush na altura da sua reeleição. Contudo, o vocalista Brandon Boyd afirmou que a música não era dirigida a ninguém em especial.
Só por si, o nome da canção (“Megalomaniac") remete-nos imediatamente para o monarca português setecentista. De acordo com o Dicionário de Língua Portuguesa Online Priberam, um “megalomaníaco” é: “Pessoa que a tem mania da grandeza, do poder e da superioridade. Tem a obsessão de realizar atos grandiosos.” Ora, nenhum outro adjetivo se enquadra melhor com o “nosso Rei-Sol”, um rei que desvia as riquezas nacionais para manter uma corte dominada pelo luxo, pelo excesso e  pela corrupção, inspirado pela Corte Francesa e financiado pelo ouro e diamantes vindos do Brasil.
Rico e poderoso, D. João V medita “no que fará a tão grandes somas de dinheiro e a tão extrema riqueza”. É então que decide deixar, como marca do seu reinado, umas obras “faraónicas” constituídas pelo Palácio, pela Basílica e pelo Convento de Mafra, não fosse a descendência, prometida e assegurada pelos franciscanos — classe que “santifica” e justifica todos os meios —, ficar comprometida…
D. Joao V, vaidoso, infantil e déspota, não hesita em sacrificar o seu povo. Homens válidos como Francisco Marques — trabalhador que morre no transporte da pedra, esmagado pelo carro que resvalou numa descida —, simbolizam todos aqueles que morreram no caminho só por causa duma pedra. De igual modo, serve-se do dinheiro do Reino e das fragilidades dos mais carenciados para satisfazer os seus caprichos.
Em “Megalomaniac" é feito um a que a autoridade ou quem se considera estar acima dos demais abra os olhos e veja que todos têm a mesma origem, que ninguém é único, mais especial ou mais importante: “Hey megalomaniac / You’re no Jesus / Yeah, you're no f*cking Elvis, Open your eyes / So you would see / That all of us are heaven sent / There was never meant to be only one [Hey megalomaníaco / Não és Jesus / Yeah, não és nenhum Elvis; Abre os olhos / Assim irias ver / Que todos nós somos viemos do céu / Nunca foi intenção ter vindo apenas um]”.
É de salientar que tanto José Saramago como Brandon Boyd defendem ferreamente as personagens que estão sujeitas às imposições feitas pela Coroa (no caso do Memorial do Convento) e pelo “megalomaníaco” (na canção), uma vez que se encontram em posições frágeis, débeis e sem saída.
E, no entanto, em “Megalomaniac" existe uma força, uma reacção, uma luta (“You’re no answer / Step down, step down / Step down, step down”) que não se verifica na obra de Saramago. Nesta, o povo, miserável, analfabeto e explorado, que vive esperançoso de dias melhores, é, na sua infinita ignorância, um povo “feliz” que acorre a ver desfilar os culpados da sua desgraça.

Marco

Marco (Suficiente) || «Amar pelos dois» (Luísa Sobral), 2017 // José Saramago, Memorial do Convento, #
"Amar pelos dois", canção escrita por Luísa Sobral e cantada por Salvador Sobral, vencedor da Eurovisão 2017, na Ucrânia, tem nos seus versos momentos que podem comparar-se a alguns acontecimentos na paixão de Blimunda e Baltasar, mais precisamente à sua pré-relação (enquanto não eram o casal e tinham vidas sem grandes objetivos), ao desaparecimento de Baltasar e, por fim, ao desfecho da obra de José Saramago, que coincide também com o desfecho da obra de Luísa e Salvador Sobral, onde um dos corações ama pelos dois, após a morte de Baltasar, quando o seu amor reside ainda em Blimunda.
O terceiro e quarto versos da canção ("Antes de ti, só existi. / Cansado e sem nada para dar.") são o sentimento presente em Blimunda e Baltasar antes de se conhecerem e se desencadear o seu amor perfeito e eterno. Baltasar é-nos apresentado como um soldado no quarto capítulo, e, nesse mesmo capítulo é-nos dito que se tinha tornado num pedinte e um marginal — ou seja, tal como na música, só existia e nada tinha para oferecer. Blimunda conhece Baltasar no mesmo dia em que a sua vida estaria a perder um pouco o sentido, o dia em que a sua mãe fora acusada de ser bruxa e condenada ao degredo em África. A falta de rumo das personagens é invertida quando se conhecem no auto de fé e, instantaneamente, se encantam pelos olhares um do outro. Vão então desenvolver uma relação amorosa que dura vinte e oito anos.
Nos primeiros dois versos da segunda estrofe de canção, o artista pede que o seu amor volte ("Meu bem, ouve as minhas preces, peço que regresses"), versos relacionáveis com o desaparecimento de Baltasar e a busca desenfreada de Blimunda para que Baltasar volte para ela.
Por fim, a canção acaba com "Se o teu coração não quiser ceder, não sentir paixão, não quiser sofrer, sem fazer planos do que virá depois, meu coração pode amar pelos dois": um dos corações deste casal vai deixar de sentir paixão, porque vai desaparecer da vida do outro, deixando-o sozinho mas com o encargo de "amar pelos dois" mantendo assim o amor eterno. Em  Memorial do Convento, não é a falta de vontade de amar de Baltasar que apaga a sua chama, a sua paixão, mas a sua morte. Baltasar foi condenado à fogueira por ter acidentalmente ativado a passarola (e à vista dos populares da época, um objeto voar só poderia ser obra de bruxaria e Baltasar foi, portanto, condenado à morte). É neste momento que Blimunda, finalmente, ao fim de nove anos, encontra Baltasar, no mesmo sítio onde o encontrara da primeira vez, encerrando assim o ciclo da história do casal, mas agora com um final trágico, ainda que belo, em que Baltasar não sobe aos céus por pertencer à terra e a Blimunda. Ainda que a sua presença física não exista, o seu amor por Blimunda continua com ela e temos assim o coração de Blimunda a amar pelos dois.

Bárbara

Bárbara (Insuficiente+/Suficiente-) || «Todo o tempo do mundo» (Carlos Tê/Rui Veloso), Avenidas, 1998 // José Saramago, Memorial do Convento, 57.ª edição, Porto, Porto Editora, 2016
Memorial do Convento aproveita a história de um dos mais emblemáticos monumentos do nosso país, o Convento de Mafra. Tudo começou no reinado de D. João V, com as várias tentativas deste rei e de D. Maria Ana para darem herdeiros à coroa portuguesa, o que até então não haviam conseguido. Já se desesperava quando, enfim, chega ao rei, da parte de frei António de S. José, uma sugestão, a de fazer uma promessa. A promessa consistiria em erguer-se um convento (em Mafra), caso a rainha desse à coroa um herdeiro. E, com efeito, com o desenrolar da história, tomamos conhecimento do nascimento de D. Maria Bárbara —iríamos, de facto, assistir à construção do convento.
Episódios e mais episódios são narrados ao longo desta obra e trazem consigo personagens que dinamizam a história. Duas destas personagens — aliás, as mais importantes — são Baltasar e Blimunda. Tiveram um primeiro encontro inesperado, num ambiente pesado e melancólico, no decorrer de um auto de fé no qual a mãe de Blimunda, Sebastiana Maria de Jesus, estava a ser condenada. A partir deste dia, Blimunda entregou-se de imediato a Baltasar e juntos ficaram ao longo de vários capítulos da história. É certo que não se conheciam nem bem nem mal desde a primeira vez em que se entregaram um ao outro e ambos guardavam segredos que ainda não haviam contado um ao outro. No caso de Baltasar, «segredos» não é a expressão mais indicada mas «vivências»; já Blimunda guardava um segredo muito único e raro: conseguia ver as pessoas por dentro antes de comer o pão ao acordar!
E é esta mesma faceta de Blimunda que decidi relacionar com «Todo o tempo do mundo», de Rui Veloso. Esta canção fala sobre alguém muito apaixonado que diz que não se importa de esperar o tempo que for preciso pelo momento em que a sua amada se sinta com a confiança de lhe contar o que entender que tem de contar («Podes vir a qualquer hora / Cá estarei para te ouvir / O que tenho para fazer posso fazer a seguir»).
Para mim, esta música encaixa-se perfeitamente na parte da obra em que Baltasar tenta perceber o que leva Blimunda a tapar os olhos até terminar de comer o pão e, mais tarde, depois de já saber que a amada consegue ver as pessoas por dentro, o momento em que ela o avisa que não o quer ver por dentro («Eu posso olhar por dentro das pessoas… Amanhã não comerei quando acordar, sairemos depois de casa e eu vou-te dizer o que vir, mas para ti nunca olharei, nem te porás na minha frente»).
«Podes vir quando quiseres, / Já fui onde tinha de ir. / Resolvi os compromissos, / Agora só te quero ouvir» representa muito bem a disponibilidade que Baltasar tem no momento em que conheceu Blimunda pois tinha vindo da guerra e, ainda por cima, sem uma das mãos. Estava livre para a ouvir. Para além do excerto representar a disponibilidade de Baltasar, ainda representa também a paciência com Blimunda e o amor que sente por ela, que o faz querer conhecê-la melhor.
Mais tarde, a canção refere que o sujeito apaixonado não acreditava na história que a amada contava, o que é relacionável com Baltasar a ouvir Blimunda dizer-lhe que conseguia ver as pessoas por dentro, e a deixar falar, como se não estivesse a ouvi-la («E tu vinhas e falavas, / falavas e eu não ouvia / E depois já nem falavas / E eu já mal te conhecia»).
Este casal, que aqui relaciono com a canção, é exemplo de um amor inesperado e que funcionou melhor do que outros muito planeados.

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