Sunday, September 15, 2013

Recensão da prova de exame de Português


A prova que vou recensear é a do exame nacional de Português (código 639), de 2013-2014 (1.ª fase), realizado em 18 de junho de 2014 [prova: <http://cdn.gave.min-edu.pt/files/557/EX-Port639-F1-2014-V1.pdf>; critérios de correção: <http://cdn.gave.min-edu.pt/files/557/EX-Port639-F1-2014-CC.pdf>].

 

Verei primeiro os textos — um dos problemas frequentes destas provas é escolherem mal a fixação dos textos de que se ocupam os questionários —, detendo-me depois nos itens. Embora seja o aspeto mais problemático, serei breve nas considerações em torno da conceção do modelo de exame de Português, para que a recensão possa focar-se sobretudo na prova em causa.

 

1.         os textos

 

1.1       grupo I

 

[Devia ter-se recorrido à edição crítica do «Sermão». Referência bibliográfica e glossário estão imperfeitos.]

 

Na parte B do grupo I, que usa um trecho do «Sermão de Santo António ao Peixes», as provas socorreram-se do texto fixado num livro escolar-universitário. O volume em causa, que é o segundo da coleção ‘Textos Literários’, da Seara Nova/Comunicação (Padre António Vieira, Sermão de Sto. António (aos peixes) e Sermão da Sexagésima, apresentação crítica, notas e sugestões para análise literária de Margarida Vieira Mendes, Lisboa, Seara Nova, 1978), tem como objetivo analisar os dois sermões e introduzir a oratória de Vieira a um público de estudantes universitários, professores, estudantes do secundário. É um livro didático — escrito com a clareza, erudição e originalidade que vemos em todas as obras de Margarida Vieira Mendes — cujo escopo primeiro não era, naturalmente, a edição do texto de Vieira. Adota a edição princeps, «com actualizações em certas variantes morfológicas, na ortografia e pontuação, mantendo as maiúsculas» (p. 53). (Pode aliás contestar-se a formulação da referência bibliográfica na prova de exame, com, a seguir ao título, «edição de Margarida Vieira Mendes», sendo preferível, como fiz em cima, reproduzir o que vem no frontispício quanto à precisa intervenção da autora: «apresentação crítica, notas e sugestões para análise literária de...». É uma prática recomendada nos programas, e que as provas de exame não seguem, a de redigir a referência bibliográfica a partir da informação no rosto da obra.)

Já há quatro anos que temos um texto crítico do sermão que nos interessa, incluído no tomo II da edição crítica dos Sermões do Padre António Vieira (direção científica de Arnaldo do Espírito Santo; Lisboa, CEFi — Centro de Estudos de Filosofia/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010). Não havendo outras razões a ponderar, uma prova de exame deveria usar o texto fixado na edição crítica, advertindo as adaptações ulteriores que houvesse tido de fazer (nem era o caso, porque o texto da edição crítica não apresenta complexidade que a prova de exame precisasse de aplainar). O texto fixado na edição do CEF/IN-CM diverge do do livro da Seara Nova quase só na pontuação. Como se percebe da explicação acerca de «Critérios da edição» (pp. XXIX-XXXIII), assinada por Aníbal Pinto de Castro e Arnaldo do Espírito Santo, a edição crítica foi conservadora da pontuação de Vieira, acolhendo os sinais originais que não implicassem agramaticalidades, para contemplar o facto de se tratar de pontuação «que corresponde ao débito oral do texto, ou seja, à sua configuração oratória pela actio retórica» (XXX). Com efeito, encontramos no passo da edição crítica mais oito vírgulas do que as que ficaram na prova de exame, e todas elas são gramaticais, plausíveis mesmo num texto escrito que não pretendesse atender ao ritmo oratório. A sua omissão parece esbater o efeito oral da argumentação de Vieira, já que no texto da prova de exame se prefere interpretar como conexões de mera justaposição as ligações com «e» ou «ou» que o original recomendava fossem lidas como introdutoras de acrescentos intercalares:

 

prova de exame ] edição crítica

com o mar e com nadar, e não queirais voar, ] com o mar, e com nadar, e não queirais voar,

olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, ] olhai para as vossas espinhas, e para as vossas escamas,

mata-os o anzol ou a fisga, ] mata-os o anzol, ou a fisga,

mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. ] mata-vos a vossa presunção, e o vosso capricho.

Vai o navio navegando e o Marinheiro dormindo, ] Vai o navio navegando, e o Marinheiro dormindo,

Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca, ] Aos outros peixes mata-os a fome, e engana-os a isca,

Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, ] Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha, e viver,

que voar por cima das entenas e cair morto, ] que voar por cima das entenas, e cair morto,

 

Há um único caso em que o texto usado na prova tem mais pontuação do que o da edição crítica — «Mas ainda mal, porque tantas vezes» —, decerto acrescentado por Margarida Vieira Mendes, provavelmente porque nos anos setenta-oitenta era mais comum do que hoje ter-se como obrigatória a vírgula entre subordinante e subordinada adverbial.

Além da pontuação, uma única diferença: onde a prova atualiza «uma» — «uma palavra» —, a edição crítica mantém a grafia sem a consoante nasal mas com til. É esta a forma que uma edição mais conservadora deve escolher; mas pode aceitar-se a modernização feita na fixação do volume da Seara Nova.

A prova de exame comete um lapso no glossário. O nome «entenas», dado no plural, tem depois o seu sentido redigido no singular: «antena, verga fixa a um mastro na qual se prende uma vela triangular ou vela latina». O que é típico de uma alfabetação é até a flexão no singular. Porém, escolhendo-se como cabeça do verbete a forma do plural, a paráfrase teria de vir no plural.

Quanto ao texto da parte A, um excerto de Memorial do Convento, nada há a referir. Usou-se a 27.ª edição [aliás, impressão]. Creio que não há diferenças entre as «edições» da Caminho. O texto do meu exemplar, da impressão assumida como 13.ª edição, coincide com o que vejo na prova.

 

1.2      grupo II

 

[Sem culpa do IAVE, surgem dois períodos que não são de Lídia Jorge. E há de novo uma referência bibliográfica imperfeita.]

 

O texto do grupo II era o artigo-testemunho «Sobre Eça de Queirós», de Lídia Jorge, escrito para o número 9-10 (abril-setembro de 2000; número dedicado a Eça de Queirós) de Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas, a revista do Instituto Camões. Naturalmente, não implica decisão sobre a edição a escolher. No entanto, sem grande culpa dos autores da prova, levou a uma situação caricata. Na sequência da contestação da solução que o IAVE propunha para o item 2.3, que aproveitava o período final do texto («Como um dia veremos»), veio a perceber-se que os dois últimos períodos do artigo de Lídia Jorge são na verdade um indevido enxerto ao original da escritora, decerto o resultado de uma falha na composição tipográfica da revista. Na Camões, o artigo que precede o de Lídia Jorge, de Almeida Faria e intitulado «O Homem das Hipálages», termina com os dois mesmos períodos que encerram o testemunho de Lídia Jorge: «O que não parece vir a propósito, embora venha. Como um dia veremos.» (p. [107]). Era improvável que os dois textos, o de Almeida Faria e o de Lídia Jorge, terminassem com as mesmas palavras. Não sei quem advertiu esta identidade dos finais dos dois textos, que se adivinha decorrer de na composição da revista se ir copiando a mancha das páginas, para facilmente se controlar o layout, tendo acabado por ficar esquecida a cauda do texto que se reproduzia apenas para efeitos de manter o mesmo estilo tipográfico. Entretanto, Almeida Faria viria asseverar ter escrito aqueles dois períodos; Lídia Jorge, ao contrário, não conseguiu jurar ser sua autora e admitiu que seriam do colega escritor que delas se lembrava ainda. Nada disto é muito relevante em termos da resolução da prova, embora seja circunstância que acentua a inconsistência dos itens 2.3 e 1.7 (de que tratarei à frente).

Também aqui a referência bibliográfica devia estar mais completa. Como assinala a capa da revista, trata-se de número em torno de Eça de Queirós, informação que poderia concorrer para a boa leitura do texto (não se infere assim melhor que a posição da autora é de irreverência, contida dado o contexto de número temático consagrado a Eça?). Se os programas dão justa relevância à consideração de indícios paratextuais enquanto estratégia de compreensão, convém que a citação dos textos seja cuidadosa.

 

2.        os itens

 

2.1      grupo II

 

[As competências deveriam ser avaliadas sem serem sempre filtradas por outra.]

 

Como se sabe, o grupo II dos exames de Português procura testar duas capacidades diferentes: a leitura (ou seja, a compreensão do escrito) e a reflexão sobre o funcionamento da língua. Na verdade, conviria ter cada uma destas capacidades aferidas em itens que não as misturassem, sabendo-se que se trata de competências bastante autónomas: pode ser-se bom em compreensão de textos e ser-se péssimo em conhecimentos de gramática; ou, quase simetricamente, pode um aluno fraco em leitura atingir razoável eficiência em gramática. Ora, num grupo assim concebido, com itens que são ao mesmo tempo de gramática e de compreensão, é grande o risco de se obter uma aferição neutralizada, «contaminada». Quem é eficiente numa das duas capacidades e fraco na outra tenderá a ter resultado idêntico ao de quem é fraco em ambas. Em princípio, o prejuízo maior calhará àqueles que até sabem gramática mas vão ficar enredados nas ambiguidades criadas pela testagem da compreensão. A aferição conjunta das duas competências parece até surgir como estratégia para se evitar uma testagem suficientemente distintiva, como se o avaliador pretendesse rechear cada item de um módico de ambiguidade (ou, ao contrário, de indícios facilitadores), com o objetivo final de compactar as classificações. Os itens de gramática que se ocupam de assuntos menos tradicionais são apresentados de forma a poderem ser resolvidos por senso comum. O conhecimento desta característica do modelo de exames tem levado a que os alunos — e talvez professores e escolas — já invistam muito pouco em gramática. Vejamos os dez itens do grupo II da prova de 18 de junho, começando pelos que parecem querer focar-se no funcionamento da língua.

 

2.1.1   funcionamento da língua

 

[Conhecimento implícito em vez de gramática. Soluções discutíveis; soluções erradas.]

 

O item 1.6 ilustra o vício, assinalado há pouco, de se testar um conteúdo gramatical (um conteúdo de conhecimento explícito da língua) de forma envergonhada (como conhecimento implícito). O assunto que os autores da prova alegarão estar a testar será ‘valor das modalidades (deôntica, epistémica, apreciativa)’. E, no entanto, chega-se à solução (a alínea «obrigação») por simples leitura. O conhecimento do conteúdo gramatical é irrelevante. Por outro lado, se se pretender que este item era para ser mesmo só de compreensão, deve dizer-se então que é uma pergunta demasiado incipiente, que não parece poder aferir nenhuma estratégia de leitura suscetível de dever ser avaliada no secundário.

O item 1.7 pretende deter-se no conhecimento dos protótipos textuais, tratando-se de decidir se o último parágrafo do texto é narrativo, descritivo, argumentativo ou expositivo. De novo se faz coincidir num mesmo item a compreensão e o conteúdo, digamos assim, declarativo. Dir-se-á que, dado o assunto em causa (entre o funcionamento da língua e a análise de texto), a coincidência era quase obrigatória. Porém, o problema maior deste item é que não é de solução indubitável. O último parágrafo do texto reúne estratégias de ordem argumentativa e expositiva. Quanto a mim, pode ser visto como exposição (com alguns intervalos argumentativos, que aligeirariam o ensaio) ou como argumentação (respaldada em momentos expositivos). Não nos chocaria ver a quase totalidade deste trecho a integrar um verbete de enciclopédia sobre literatura, o que parece bom critério para o considerarmos um texto expositivo. Diria que os períodos nas linhas 15-24 são marcadamente expositivos. As linhas iniciais (12-14), um meio termo entre expositivo e argumentativo. As linhas finais (25-29), mais argumentativas. É engraçado que o troço mais argumentativo (os períodos finais, nas ll. 28-29) seja o que afinal não é de Lídia Jorge, como se explicou atrás.

O item 1.5 implica a noção de ‘metáfora’, que o aluno terá de reconhecer em «deflagração extraordinária». Pergunto-me se não haverá o risco de o aluno falhar por não saber o sentido literal de «deflagração». Admito que tenha havido alunos que arriscassem a alínea a («antítese») por não dominarem o léxico. O meu ponto é este: num item que pretende avaliar uma noção de conhecimento explícito da língua deveria evitar-se cruzar essa testagem com a do conhecimento meramente linguístico. De qualquer modo, este será dos itens menos criticáveis, embora, como quase todos os que se ocupam com a gramática, pareça pouco reflexivo, demasiado imediato, sem a densidade exigível à testagem do conhecimento explícito.

Os três itens em 2 implicavam escrita da resposta (não eram de escolha múltipla, como os que estivemos a referir). Detenhamo-nos em cada um deles.

2.3 é um item cuja solução proposta pelo IAVE está errada. O caso já foi debatido na imprensa (< http://www.publico.pt/sociedade/noticia/associacao-de-linguistica-confirma-erro-nos-criterios-de-correccao-do-exame-de-portugues-1659812 >; < http://www.publico.pt/sociedade/noticia/professores-detectaram-erro-nos-criterios-de-correccao-do-exame-de-portugues-1659701 >). Pretendiam os criadores da prova que se respondesse «ato ilocutório compromissivo», quando o enunciado é mais claramente «assertivo». O período «Como um dia veremos» seria compromissivo num contexto em que se estivesse, por exemplo, a prometer vir a tratar o assunto em aula. No texto em apreço a situação não é essa: para um leitor competente, o enunciador está a marcar um grau de certeza, está, portanto, a praticar um ato ilocutório assertivo. O IAVE já veio informar que aceitará as duas respostas, remédio que não resolve cabalmente a injustiça criada (imaginemos o tempo perdido em torno de uma pergunta ambígua; ou que alguns alunos, intrigados com a dificuldade provocada sem querer, tenham acabado por não se decidir entre uma daquelas duas opções). E, claro, é menos um item de gramática a funcionar na discriminação de classificações que se supõe seja objetivo de uma avaliação externa. Fica também evidente que quem elabora as provas de Português domina mal as áreas menos tradicionais da gramática (neste caso, a da pragmática linguística). É que este erro indicia mais a superficialidade do conhecimento do conteúdo do que parece resultar de desatenção. E esqueçamos que neste item se usa de novo o trecho que não estava no original de Lídia Jorge.

O item 2.1 pede a identificação da função sintática de um segmento do texto, a palavra «queirosiano», um predicativo do sujeito, que vem precedido de «continua». Os itens em torno de funções sintáticas são mais interessantes quando mobilizam algum teste gramatical que exija raciocínio relativamente complexo (como os que podem levar à decisão entre complementos oblíquos e modificadores do grupo verbal, entre complemento direto e complemento indireto, entre complemento direto e sujeito, entre vocativo e sujeito, entre predicativo do complemento direto e alguns complementos diretos, etc.). Já a identificação do predicativo do sujeito pode decorrer apenas do conhecimento mnemónico do rol de verbos copulativos («ser, estar, ficar, parecer, permanecer, continuar»), tornando-se supérfluo o exercício de um juízo sintático. É mais um item que não avalia o conhecimento explícito com o mínimo de sofisticação a que obrigaria a verdadeira avaliação da capacidade de refletir sobre a língua.

O item 2.2 visava a classificação da oração «onde mal cabia», uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa. É uma pergunta que pode fazer equivaler em termos de pontuação situações muito diferentes. A saber, a dos alunos que conseguem habitualmente reconhecer as orações relativas explicativas mas a quem até escapou que «onde» é um advérbio relativo, suscetível de introduzir essas orações, e a dos que nada sabem acerca de orações relativas. Este defeito não o seria se na prova houvesse mais itens de gramática, de dificuldade variada (o que não se deve confundir com dois extremos quanto a exigência, quase nada e muito significativa). Mas, como se vai vendo, os itens de gramática ou foram anulados, por erro de quem os concebeu, ou são muito discutíveis e talvez devessem ser anulados, ou não são de gramática.

 

2.1.2 leitura

 

[Três itens aceitáveis e um item muito discutível. Itens de leitura deviam ser em maior número.]

 

Um dos problemas desta estrutura das provas de exame é o recurso a relativamente poucos itens de leitura. A compreensão deve ser testada em itens fechados mas convém que sejam em maior número e com pontuações mais reduzidas. Para este grupo II, sugeriria perto de vinte itens, cada um a valer cerca de metade de cada um dos dez itens atuais (atualmente: 10 x 5 = 50 pontos). Não sendo assim, é grande o perigo de restringir a avaliação da leitura a dois ou três itens que, como se verá, podem até ser ambíguos. Os itens de compreensão devem implicar pequenos matizes — o fechamento, é claro, não deve ser confundido com resposta óbvia —, mas, para que não haja o risco de essa finura da formulação resultar em performances de puro azar ou sorte, seria avisado multiplicarem-se os itens, cada um com cotação menor (em conjunto, perfazendo pontuação idêntica à atual).

Passo agora aos quatro itens do grupo II que se centravam assumidamente na testagem da leitura.

1.3 e 1.4 não têm problemas. São bons itens.

1.1, que também considero aceitável, tem um enunciado com redação propositadamente tortuosa. O tronco da afirmação fica na negativa («a expressão ‘triunfo de um ponto de vista’ [linhas 1 e 2]) corresponde a uma síntese que exclui a»), o que funcionará como exigência posta à interpretação pouco menor do que a do trecho que se pretendia o aluno descodificasse. Considerando que essa dificuldade trazida pelo próprio enunciado é um obstáculo de características semelhantes ao que põe a compreensão de textos em geral, não escandaliza que a leitura seja aferida assim. (Mas é preciso reconhecermos que se estará a testar a compreensão do enunciado dos autores da prova e não apenas já a do texto sobre que a testagem anunciara ir deter-se.)

Quanto a 1.2, é um item incorreto, invalidável portanto. É certo que é possível adivinhar que a prova pretende que escolhamos «mantém-se inalterada» (como boa continuação de «Desde as primeiras leituras realizadas na adolescência, a admiração da autora pela obra de Eça»), mais por experiência com o estilo de perguntas das provas do que por leitura suficientemente atenta. Concordo até que seria aquela a resposta obrigatória se se remetesse para os dois primeiros parágrafos, e não estou a desdenhar o início do terceiro parágrafo («Mas se é verdade que Eça continua atual», l. 12) nem, quase no final, «do culto que a obra legitimamente merece» (l. 25). Só que, para além da interpretação bem comportada de que a cronista continua a admirar Eça, o longo terceiro parágrafo mostra que essa admiração tem de ser equilibrada com os novos dados que se retiram da história da literatura do século XX. Ora, um bom leitor pode inferir que essa nova contextualização, essa nova bitola que nos é explicada no último parágrafo, também não a tinha a autora enquanto adolescente. O segmento «é assim que o entendo sempre que lá regresso» (l. 10) não implica que a admiração se mantenha inalterada; supõe só que continua a haver admiração e que permanece o entendimento quanto às exatas características gabadas antes, não impedindo a conclusão de que a cronista enquadra já de outro modo a sua opinião sobre Eça (diremos que a admiração não é menor mas é diferente, já que Eça tem agora rivais). Ou seja, a alínea «mudou consideravelmente» não pode ser tida como errada («consideravelmente» abarca uma mudança que não é de desvalorização e que é determinada por novo ponto de vista); por outro lado, a solução que se exige — a alínea «mantém-se inalterada» — radica numa leitura demasiado literal e ingénua do texto de Lídia Jorge. Um bom leitor tem de ler nas entrelinhas. Nas entrelinhas da crónica percebe-se que Lídia Jorge não mantém inalterada a sua admiração por Eça (continua a admirá-lo mas enquadrando essa admiração de outro modo, de um modo que, afinal, «mudou consideravelmente»).

 

2.2.    grupo I

 

[De novo: devia evitar-se misturar a aferição de capacidades diferentes. Leitura ou reconhecimento do que foi estudado? Estratégia para classificação das respostas quanto a conteúdo costuma convidar a uma redação de «sebenta», o que não acontecerá desta vez. Não houve verdadeira matéria do 11.º ano. Foco da testagem da leitura devia estar na informação não explícita.]

 

O grupo I pretende testar expressão escrita e leitura. Como fora anunciado pelo IAVE, a parte A incidiu sobre «matéria» do 12.º ano; a B, sobre autor do 11.º ano. Os itens deste grupo — reporto-me à estrutura das provas de exame, sem me focar particularmente nesta prova —, segundo a espécie de protocolo que se forma entre IAVE, professores e alunos, supõem a avaliação do conhecimento das obras (o que inclui a leitura propriamente dita mas também algum treino de análise das obras ou de poemas típicos), da compreensão do trecho reproduzido e da capacidade de redigir. Prescindo de repetir que era desejável que estes três aspetos pudessem ser avaliados em maior independência. Julgo errado que a escrita intermedie sempre a aferição da compreensão e do conhecimento das obras. Descarto ainda o problema que advém de ser impossível testar eficientemente a compreensão se se usar texto já conhecido dos alunos. Também não vincarei de novo que textos como as estâncias de Os Lusíadas ou mesmo os trechos do «Sermão de Santo António aos Peixes» e, por outras razões, os poemas de Pessoa, não facilitam a boa testagem da leitura. Em tempos [«Textos e preparação do ensino», Actas do segundo encontro de professores de Português (Homenagem a Eugénio de Andrade), pp. 36-52, Porto, Areal, 1998], mostrei como textos com língua que que já não é a dos alunos ou que joguem com informação que os leitores do século XXI já não têm são desvantajosos no ensino da leitura e na sua testagem. No caso de Camões, por exemplo, ou o aluno já interiorizou antes do exame a tradução das estâncias em causa ou não perceberá o passo. E note-se que deter o aluno em memória uma paráfrase das estrofes impede que se possa avaliá-lo em termos de verdadeira compreensão de leitura.

O constrangimento de escrever sobre textos pouco acessíveis por leitura propriamente dita tem incentivado a que se recorra a sebentas, a esquemas (em apresentações ou em papel), a uma série de expedientes que os critérios de correção do IAVE têm tornado rendíveis. Com efeito, para se resolver itens como os que são exigidos nestes grupos I duas vias são possíveis: (i) procurar compreender bem o texto (o que inclui, é claro, o cruzamento com informações prévias adquiridas no 12.º ou no 11.º ano) e, tendo presentes as indicações dadas nos enunciados das perguntas, pôr por escrito, em texto próprio, a resposta; (ii) ler os enunciados das perguntas escrutinando entre o que se estudou o que pareça poder aludir ao texto e item em pauta, redigindo de modo a incluir as noções que se julga virem a propósito, mais conduzido pela informação decorada do que empenhado em escrever com originalidade. Em geral, os critérios de correção do grupo I, preocupados em desdobrar comportamentos no que concerne a alusões a tópicos, mas subjetivos no que tem que ver com a redação ou a compreensão genérica, levam a que nos perguntemos se a segunda via não será muitas vezes a mais recompensada. Nem tanto assim, desta vez. Os grupos I-A e I-B do exame deste ano não são do pior que se tem visto. Logo o usar-se textos de prosa permite evitar escolhos que tenho visto em provas de outros anos.

O texto de Saramago, apesar de incorrer no obrigatório óbice de ser já conhecido dos alunos (pela leitura do livro, mas também por análise em aula — é trecho de um momento da narrativa que é dos mais abordados nos manuais —, em documentário, salvo erro até na adaptação a teatro), é passível de leitura de compreensão, mesmo se a testagem dessa competência fica enviesada, dada a variável estranha incontrolável que são as experiências anteriores com o mesmo episódio. Considerado o modelo que estas provas preferem, o grupo I-A é razoável. Os itens 1, 2, 3 (os da parte B), avaliarão, e por esta ordem de valorização, capacidade de redação (mas do tipo expositivo-argumentativo), conhecimento prévio da obra, compreensão de leitura propriamente dita.

Já a parte I-B parece poder ser respondida independentemente do conhecimento da obra. Não creio que o conhecimento do «Sermão» concorra para a resposta do que é exatamente perguntado. E, na verdade, ter-se-á querido afinal evitar matéria do 11.º ano: usar-se um texto do «Sermão» ou de outra obra qualquer, vistos os itens 4. e 5., é indiferente. Dir-se-ia ficar assim aberto o campo para se testar a verdadeira compreensão. Ora também isso não acontece. Como as respostas aos dois itens se ancoram sobretudo em informação explícita e textual — note-se que o mais interessante seria aferir a informação implícita e textual ou a informação implícita e baseada nos esquemas do leitor — estará em causa, mais do que a compreensão, a redação (e, de novo, unicamente a daquele estilo «literato» que supõem estes itens). Este grupo I-B, que vale quarenta pontos, exige portanto apenas capacidades que pouco dependem do trabalho havido.

 

2.3      grupo III

 

[A expressão escrita é testada num único tipo de texto, quando os programas estipulam o ensino de tantos outros. Mesmo considerado o tipo expositivo-argumentativo, o enunciado do grupo III conduz a uma redação «de formulário». Os critérios de pontuação deste grupo desaproveitam o que a investigação sobre escrita já conseguiu descrever.]

 

Também o grupo III apela a uma capacidade que, nos seus traços gerais, está definida desde o início do 2.º ou do 3.º ciclo. Como se sabe, neste grupo pede-se uma composição expositivo-argumentativa, «uma reflexão», em torno de um tópico, bastante genérico. Embora costume ser dada uma citação, em que a dissertação se pode apoiar, não seria muito diferente se surgisse apenas o tópico. Neste caso, o tópico era ‘a ambição’ e, não havendo citação, as duas linhas iniciais do enunciado funcionavam como epígrafe orientadora: «Para uns, a ambição está na origem de todas as conquistas humanas; para outros, a ambição é a causa de muitos dos problemas da humanidade». Vem também a instrução habitual, a constranger o escopo da argumentação: «Fundamente o seu ponto de vista recorrendo, no mínimo, a dois argumentos e ilustre cada um deles com, pelo menos, um exemplo significativo».

As críticas que farei não caem especificamente sobre o grupo III da presente prova, antes têm que ver com o tipo de redação que o modelo de provas de exame assim elege. Os programas do secundário, no que se refere à competência de escrita, percorrem diversos tipos/géneros/subgéneros textuais: textos narrativos, descritivos, autobiográficos, expressivos, transacionais, informativos, de apreciação crítica, etc.. Apesar disso, o tipo textual estipulado para este grupo III é sempre o expositivo-argumentativo. Como vimos, os itens do grupo I, que misturam escrita e compreensão, quanto a escrita também mobilizam exclusivamente o protótipo expositivo-argumentativo. Valeria a pena ponderar se o grupo III não deveria ir alternando os tipos de redação pedida, de forma a aproximar o que se treina ao longo do ensino e o que se pede na testagem externa. Não sei se este monopólio da exposição-argumentação resulta de ser o tipo textual que, ao lado do curriculum vitae, está nos conteúdos do 12.º — se sim, agora que em termos de leitura se alargaram os conteúdos até aos do 11.º (já neste exame) e aos do 10.º (no ano que vem), mais se justifica que passe a haver a expetativa de que, também nos domínios da escrita, qualquer tipo textual pode ser objeto do exame. Acrescentaria que o desdobramento do grupo III em duas redações mais pequenas permitiria contemplar dois géneros de texto, conseguindo-se uma amostra mais fiável das capacidades do aluno na escrita em geral. Convém lembrar que a proficiência em escrita pode variar bastante em função do tipos de texto pedidos. Há excelentes escreventes de textos criativos (ou transacionais, ou memorialísticos, etc.) que, ao mesmo tempo, falham bastante na clássica dissertação. Ao contrário, também.

Regressando ao modelo que temos atualmente, podemos lamentar que os tópicos do grupo III grupos tendam a convidar à exposição bem comportada, ao lugar comum, à redação comandada por um formulário escolar. O constrangimento imposto na instrução — dois argumentos, um exemplo por cada um — conduz estes textos para uma matriz comum completável depois com poucos conectores também eles registados já enquanto acervo sempre retomável.

Uma última palavra para os critérios de pontuação, em que pouco me fui detendo quando abordei os outros grupos. Os cinquenta pontos do grupo III distribuem-se entre «Estruturação Temática e Discursiva» (30 pontos) e «Correção Linguística» (20). Os vinte pontos de CL são para ser sujeitos aos chamados «Fatores de desvalorização» (descontos de um ponto, por erros de ortografia, pontuação, «morfologia»; descontos de dois pontos por má sintaxe ou impropriedade lexical). Este mecanismo de desconto por erros (comum à pontuação dos itens do grupo I) não obedece a nenhum critério didático. A cotação dos erros em termos tão liminares (todos os erros de ortografia a retirarem um ponto; todos os erros de sintaxe a significarem menos dois pontos) faz equivaler situações diversíssimas, que a investigação linguística consegue discriminar e cujas diferentes causas tem explicado. A extensão do texto pedido, com extremos de duzentas a trezentas palavras, ainda mais invalida, em termos investigativos, este tipo de estratégia, pois que a amplitude acentua a aleatoriedade da pontuação negativa: desconta-se relativamente a um «universo» demasiado variável. Diga-se ainda que a qualidade da redação, mesmo em termos linguísticos, não é aferível pela simples ausência ou quantidade de erros: dois textos com o mesmo número de erros localizáveis nos termos em que propõe a grelha do IAVE podem abonar níveis de «correção linguística» francamente diferentes. (Tratei de alguns destes problemas da classificação de textos escritos em «Parecer sobre critérios de avaliação para a disciplina de Português», Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 12 (1999), pp. 202-212, Lisboa, Colibri, [2001] [< http://run.unl.pt/handle/10362/7449 >].)

A pontuação relativa a ETD é orientada por escalas de níveis de eficiência, que julgo pouco práticas. Mais do que funcionarem enquanto descritores úteis, consultáveis, é provável que acabem por só iludir a subjetividade da escolha da pontuação (os desempenhos descritos moldam-se facilmente a perfis diversos). Demorariam aliás tempo irrazoável os classificadores que, perante cada teste, se dispusessem a percorrer a escala em todos os comportamentos. Também sucederá raramente, ao contrário do que sugere a escala, terem os escreventes um mesmo nível de desempenho em comportamentos de subdomínios variados (na verdade, o classificador precisaria de idealizar um valor médio dados desempenhos de níveis diversos e que nem terão sempre peso idêntico). Adivinho que os corretores procedam, na prática, por interiorização de uma bitola (aferida, inicial ou periodicamente, pela escala de níveis de desempenho). E é o mais sensato.

 

A prova de Português (639) realizada a 18 de junho é um exemplo de teste de Português que evita avaliar o que é ensinável. Ocupa-se quase só com o que pouco depende do estudo, do investimento que os alunos pudessem ter feito na disciplina. Há pelo menos 90 pontos (os quarenta do grupo I-B e os cinquenta do grupo III) que podiam ser respondidos cabalmente sem qualquer conhecimento do programa. Quanto ao grupo II, defendi que inclui dois itens corretos (1.3 e 1.4), quatro itens deficientemente concebidos (1.1, 1.5, 2.1, 2.2), quatro itens mal formulados ou com solução errada (1.2, 1.6, 1.7, 2.3), pelo que contém 20 pontos que não deveriam contabilizados, 20 pontos em que é grande o risco de se avaliar mal e 10 pontos realmente avaliáveis. Acrescente-se que a classificação de alguns dos itens que considerámos formulados aceitavelmente (o grupo I-A, que vale sessenta pontos) é, ainda assim, suscetível de injustiça, já que, na parte de «Conteúdo», a pontuação assenta em níveis de desempenho a apreciar subjetivamente e, na parte «Estruturação do discurso e correção linguística», se socorre dos fatores de desvalorização cujo caráter contingente já abordámos a propósito do grupo III.