Recensão da prova de exame de Português
A prova que vou recensear é a do exame nacional de Português
(código 639), de 2013-2014 (1.ª fase), realizado em 18 de junho de 2014 [prova:
<http://cdn.gave.min-edu.pt/files/557/EX-Port639-F1-2014-V1.pdf>;
critérios de correção: <http://cdn.gave.min-edu.pt/files/557/EX-Port639-F1-2014-CC.pdf>].
Verei primeiro os textos — um dos problemas frequentes destas
provas é escolherem mal a fixação dos textos de que se ocupam os questionários
—, detendo-me depois nos itens. Embora seja o aspeto mais problemático, serei
breve nas considerações em torno da conceção do modelo de exame de Português,
para que a recensão possa focar-se sobretudo na prova em causa.
1. os textos
1.1 grupo I
[Devia ter-se
recorrido à edição crítica do «Sermão». Referência bibliográfica e glossário estão
imperfeitos.]
Na parte B do grupo I, que usa um trecho do «Sermão de Santo António
ao Peixes», as provas socorreram-se do texto fixado num livro escolar-universitário.
O volume em causa, que é o segundo da coleção ‘Textos Literários’, da Seara
Nova/Comunicação (Padre António Vieira, Sermão
de Sto. António (aos peixes) e Sermão da Sexagésima, apresentação crítica,
notas e sugestões para análise literária de Margarida Vieira Mendes, Lisboa,
Seara Nova, 1978), tem como objetivo analisar os dois sermões e introduzir a
oratória de Vieira a um público de estudantes universitários, professores,
estudantes do secundário. É um livro didático — escrito com a clareza, erudição
e originalidade que vemos em todas as obras de Margarida Vieira Mendes — cujo escopo
primeiro não era, naturalmente, a edição do texto de Vieira. Adota a edição
princeps, «com actualizações em certas variantes morfológicas, na ortografia e
pontuação, mantendo as maiúsculas» (p. 53). (Pode aliás contestar-se a
formulação da referência bibliográfica na prova de exame, com, a seguir ao
título, «edição de Margarida Vieira Mendes», sendo preferível, como fiz em cima,
reproduzir o que vem no frontispício quanto à precisa intervenção da autora:
«apresentação crítica, notas e sugestões para análise literária de...». É uma
prática recomendada nos programas, e que as provas de exame não seguem, a de
redigir a referência bibliográfica a partir da informação no rosto da obra.)
Já há quatro anos que temos um texto crítico do sermão que nos
interessa, incluído no tomo II da edição crítica dos Sermões do Padre António Vieira (direção científica de Arnaldo do
Espírito Santo; Lisboa, CEFi — Centro de Estudos de Filosofia/Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2010). Não havendo outras razões a ponderar, uma prova
de exame deveria usar o texto fixado na edição crítica, advertindo as
adaptações ulteriores que houvesse tido de fazer (nem era o caso, porque o
texto da edição crítica não apresenta complexidade que a prova de exame precisasse
de aplainar). O texto fixado na edição do CEF/IN-CM diverge do do livro da
Seara Nova quase só na pontuação. Como se percebe da explicação acerca de
«Critérios da edição» (pp. XXIX-XXXIII), assinada por Aníbal Pinto de Castro e
Arnaldo do Espírito Santo, a edição crítica foi conservadora da pontuação de
Vieira, acolhendo os sinais originais que não implicassem agramaticalidades, para
contemplar o facto de se tratar de pontuação «que corresponde ao débito oral do
texto, ou seja, à sua configuração oratória pela actio retórica» (XXX). Com efeito, encontramos no passo da edição
crítica mais oito vírgulas do que as que ficaram na prova de exame, e todas
elas são gramaticais, plausíveis mesmo num texto escrito que não pretendesse
atender ao ritmo oratório. A sua omissão parece esbater o efeito oral da
argumentação de Vieira, já que no texto da prova de exame se prefere interpretar
como conexões de mera justaposição as ligações com «e» ou «ou» que o original
recomendava fossem lidas como introdutoras de acrescentos intercalares:
prova de exame ] edição crítica
com o mar e com nadar, e não queirais voar, ] com o
mar, e com nadar, e não queirais voar,
olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas,
] olhai para as vossas espinhas, e para as vossas escamas,
mata-os o anzol ou a fisga, ] mata-os o anzol, ou a
fisga,
mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. ]
mata-vos a vossa presunção, e o vosso capricho.
Vai o navio navegando e o Marinheiro dormindo, ] Vai o
navio navegando, e o Marinheiro dormindo,
Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca, ]
Aos outros peixes mata-os a fome, e engana-os a isca,
Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e
viver, ] Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha, e viver,
que voar por cima das entenas e cair morto, ] que voar
por cima das entenas, e cair morto,
Há um único caso em que o texto usado na prova tem mais pontuação
do que o da edição crítica — «Mas ainda mal, porque tantas vezes» —, decerto
acrescentado por Margarida Vieira Mendes, provavelmente porque nos anos setenta-oitenta
era mais comum do que hoje ter-se como obrigatória a vírgula entre subordinante
e subordinada adverbial.
Além da pontuação, uma única diferença: onde a prova atualiza
«uma» — «uma palavra» —, a edição crítica mantém a grafia sem a consoante nasal
mas com til. É esta a forma que uma edição mais conservadora deve escolher; mas
pode aceitar-se a modernização feita na fixação do volume da Seara Nova.
A prova de exame comete um lapso no glossário. O nome «entenas»,
dado no plural, tem depois o seu sentido redigido no singular: «antena, verga
fixa a um mastro na qual se prende uma vela triangular ou vela latina». O que é
típico de uma alfabetação é até a flexão no singular. Porém, escolhendo-se como
cabeça do verbete a forma do plural, a paráfrase teria de vir no plural.
Quanto ao texto da parte A, um excerto de Memorial do Convento, nada há a referir. Usou-se a 27.ª edição
[aliás, impressão]. Creio que não há diferenças entre as «edições» da Caminho. O
texto do meu exemplar, da impressão assumida como 13.ª edição, coincide com o
que vejo na prova.
1.2 grupo II
[Sem culpa do
IAVE, surgem dois períodos que não são de Lídia Jorge. E há de novo uma
referência bibliográfica imperfeita.]
O texto do grupo II era o artigo-testemunho «Sobre Eça de
Queirós», de Lídia Jorge, escrito para o número 9-10 (abril-setembro de 2000;
número dedicado a Eça de Queirós) de Camões.
Revista de Letras e Culturas Lusófonas, a revista do Instituto Camões.
Naturalmente, não implica decisão sobre a edição a escolher. No entanto, sem
grande culpa dos autores da prova, levou a uma situação caricata. Na sequência
da contestação da solução que o IAVE propunha para o item 2.3, que aproveitava
o período final do texto («Como um dia veremos»), veio a perceber-se que os
dois últimos períodos do artigo de Lídia Jorge são na verdade um indevido enxerto
ao original da escritora, decerto o resultado de uma falha na composição tipográfica
da revista. Na Camões, o artigo que
precede o de Lídia Jorge, de Almeida Faria e intitulado «O Homem das
Hipálages», termina com os dois mesmos períodos que encerram o testemunho de
Lídia Jorge: «O que não parece vir a propósito, embora venha. Como um dia
veremos.» (p. [107]). Era improvável que os dois textos, o de Almeida Faria e o
de Lídia Jorge, terminassem com as mesmas palavras. Não sei quem advertiu esta identidade
dos finais dos dois textos, que se adivinha decorrer de na composição da
revista se ir copiando a mancha das páginas, para facilmente se controlar o
layout, tendo acabado por ficar esquecida a cauda do texto que se reproduzia
apenas para efeitos de manter o mesmo estilo tipográfico. Entretanto, Almeida Faria
viria asseverar ter escrito aqueles dois períodos; Lídia Jorge, ao contrário,
não conseguiu jurar ser sua autora e admitiu que seriam do colega escritor que delas
se lembrava ainda. Nada disto é muito relevante em termos da resolução da
prova, embora seja circunstância que acentua a inconsistência dos itens 2.3 e
1.7 (de que tratarei à frente).
Também
aqui a referência bibliográfica devia estar mais completa. Como assinala a capa
da revista, trata-se de número em torno de Eça de Queirós, informação que
poderia concorrer para a boa leitura do texto (não se infere assim melhor que a
posição da autora é de irreverência, contida dado o contexto de número temático
consagrado a Eça?). Se os programas dão justa relevância à consideração de
indícios paratextuais enquanto estratégia de compreensão, convém que a citação
dos textos seja cuidadosa.
2. os itens
2.1 grupo II
[As
competências deveriam ser avaliadas sem serem sempre filtradas por outra.]
Como
se sabe, o grupo II dos exames de Português procura testar duas capacidades
diferentes: a leitura (ou seja, a compreensão do escrito) e a reflexão sobre o
funcionamento da língua. Na verdade, conviria ter cada uma destas capacidades
aferidas em itens que não as misturassem, sabendo-se que se trata de
competências bastante autónomas: pode ser-se bom em compreensão de textos e
ser-se péssimo em conhecimentos de gramática; ou, quase simetricamente, pode um
aluno fraco em leitura atingir razoável eficiência em gramática. Ora, num grupo
assim concebido, com itens que são ao mesmo tempo de gramática e de compreensão,
é grande o risco de se obter uma aferição neutralizada, «contaminada». Quem é eficiente
numa das duas capacidades e fraco na outra tenderá a ter resultado idêntico ao
de quem é fraco em ambas. Em princípio, o prejuízo maior calhará àqueles que
até sabem gramática mas vão ficar enredados nas ambiguidades criadas pela
testagem da compreensão. A aferição conjunta das duas competências parece até
surgir como estratégia para se evitar uma testagem suficientemente distintiva,
como se o avaliador pretendesse rechear cada item de um módico de ambiguidade
(ou, ao contrário, de indícios facilitadores), com o objetivo final de
compactar as classificações. Os itens de gramática que se ocupam de assuntos
menos tradicionais são apresentados de forma a poderem ser resolvidos por senso
comum. O conhecimento desta característica do modelo de exames tem levado a que
os alunos — e talvez professores e escolas — já invistam muito pouco em gramática.
Vejamos os dez itens do grupo II da prova de 18 de junho, começando pelos que
parecem querer focar-se no funcionamento da língua.
2.1.1 funcionamento da língua
[Conhecimento
implícito em vez de gramática. Soluções discutíveis; soluções erradas.]
O
item 1.6
ilustra o vício, assinalado há pouco, de se testar um conteúdo gramatical (um
conteúdo de conhecimento explícito da língua) de forma envergonhada (como
conhecimento implícito). O assunto que os autores da prova alegarão estar a
testar será ‘valor das modalidades (deôntica, epistémica, apreciativa)’. E, no
entanto, chega-se à solução (a alínea «obrigação») por simples leitura. O
conhecimento do conteúdo gramatical é irrelevante. Por outro lado, se se
pretender que este item era para ser mesmo só de compreensão, deve dizer-se
então que é uma pergunta demasiado incipiente, que não parece poder aferir
nenhuma estratégia de leitura suscetível de dever ser avaliada no secundário.
O
item 1.7
pretende deter-se no conhecimento dos protótipos textuais, tratando-se de decidir
se o último parágrafo do texto é narrativo, descritivo, argumentativo ou
expositivo. De novo se faz coincidir num mesmo item a compreensão e o conteúdo,
digamos assim, declarativo. Dir-se-á que, dado o assunto em causa (entre o
funcionamento da língua e a análise de texto), a coincidência era quase
obrigatória. Porém, o problema maior deste item é que não é de solução
indubitável. O último parágrafo do texto reúne estratégias de ordem
argumentativa e expositiva. Quanto a mim, pode ser visto como exposição (com
alguns intervalos argumentativos, que aligeirariam o ensaio) ou como
argumentação (respaldada em momentos expositivos). Não nos chocaria ver a quase
totalidade deste trecho a integrar um verbete de enciclopédia sobre literatura,
o que parece bom critério para o considerarmos um texto expositivo. Diria que
os períodos nas linhas 15-24 são marcadamente expositivos. As linhas iniciais
(12-14), um meio termo entre expositivo e argumentativo. As linhas finais
(25-29), mais argumentativas. É engraçado que o troço mais argumentativo (os
períodos finais, nas ll. 28-29) seja o que afinal não é de Lídia Jorge, como se
explicou atrás.
O
item 1.5
implica a noção de ‘metáfora’, que o aluno terá de reconhecer em «deflagração
extraordinária». Pergunto-me se não haverá o risco de o aluno falhar por não
saber o sentido literal de «deflagração». Admito que tenha havido alunos que arriscassem
a alínea a («antítese») por não
dominarem o léxico. O meu ponto é este: num item que pretende avaliar uma noção
de conhecimento explícito da língua deveria evitar-se cruzar essa testagem com
a do conhecimento meramente linguístico. De qualquer modo, este será dos itens
menos criticáveis, embora, como quase todos os que se ocupam com a gramática,
pareça pouco reflexivo, demasiado imediato, sem a densidade exigível à testagem
do conhecimento explícito.
Os
três itens em 2 implicavam escrita da resposta (não eram de escolha múltipla,
como os que estivemos a referir). Detenhamo-nos em cada um deles.
2.3 é um item cuja solução proposta pelo
IAVE está errada. O caso já foi debatido na imprensa (< http://www.publico.pt/sociedade/noticia/associacao-de-linguistica-confirma-erro-nos-criterios-de-correccao-do-exame-de-portugues-1659812
>; < http://www.publico.pt/sociedade/noticia/professores-detectaram-erro-nos-criterios-de-correccao-do-exame-de-portugues-1659701
>). Pretendiam os criadores da prova que se respondesse «ato ilocutório
compromissivo», quando o enunciado é mais claramente «assertivo». O período «Como
um dia veremos» seria compromissivo num contexto em que se estivesse, por
exemplo, a prometer vir a tratar o assunto em aula. No texto em apreço a
situação não é essa: para um leitor competente, o enunciador está a marcar um
grau de certeza, está, portanto, a praticar um ato ilocutório assertivo. O IAVE
já veio informar que aceitará as duas respostas, remédio que não resolve
cabalmente a injustiça criada (imaginemos o tempo perdido em torno de uma
pergunta ambígua; ou que alguns alunos, intrigados com a dificuldade provocada
sem querer, tenham acabado por não se decidir entre uma daquelas duas opções).
E, claro, é menos um item de gramática a funcionar na discriminação de
classificações que se supõe seja objetivo de uma avaliação externa. Fica também
evidente que quem elabora as provas de Português domina mal as áreas menos
tradicionais da gramática (neste caso, a da pragmática linguística). É que este
erro indicia mais a superficialidade do conhecimento do conteúdo do que parece
resultar de desatenção. E esqueçamos que neste item se usa de novo o trecho que
não estava no original de Lídia Jorge.
O
item 2.1
pede a identificação da função sintática de um segmento do texto, a palavra
«queirosiano», um predicativo do sujeito, que vem precedido de «continua». Os itens
em torno de funções sintáticas são mais interessantes quando mobilizam algum
teste gramatical que exija raciocínio relativamente complexo (como os que podem
levar à decisão entre complementos oblíquos e modificadores do grupo verbal,
entre complemento direto e complemento indireto, entre complemento direto e
sujeito, entre vocativo e sujeito, entre predicativo do complemento direto e
alguns complementos diretos, etc.). Já a identificação do predicativo do
sujeito pode decorrer apenas do conhecimento mnemónico do rol de verbos
copulativos («ser, estar, ficar, parecer, permanecer, continuar»), tornando-se
supérfluo o exercício de um juízo sintático. É mais um item que não avalia o
conhecimento explícito com o mínimo de sofisticação a que obrigaria a verdadeira
avaliação da capacidade de refletir sobre a língua.
O
item 2.2
visava a classificação da oração «onde mal cabia», uma oração subordinada
adjetiva relativa explicativa. É uma pergunta que pode fazer equivaler em
termos de pontuação situações muito diferentes. A saber, a dos alunos que
conseguem habitualmente reconhecer as orações relativas explicativas mas a quem
até escapou que «onde» é um advérbio relativo, suscetível de introduzir essas orações,
e a dos que nada sabem acerca de orações relativas. Este defeito não o seria se
na prova houvesse mais itens de gramática, de dificuldade variada (o que não se
deve confundir com dois extremos quanto a exigência, quase nada e muito
significativa). Mas, como se vai vendo, os itens de gramática ou foram anulados,
por erro de quem os concebeu, ou são muito discutíveis e talvez devessem ser
anulados, ou não são de gramática.
2.1.2 leitura
[Três
itens aceitáveis e um item muito discutível. Itens de leitura deviam ser em
maior número.]
Um
dos problemas desta estrutura das provas de exame é o recurso a relativamente
poucos itens de leitura. A compreensão deve ser testada em itens fechados mas
convém que sejam em maior número e com pontuações mais reduzidas. Para este
grupo II, sugeriria perto de vinte itens, cada um a valer cerca de metade de
cada um dos dez itens atuais (atualmente: 10 x 5 = 50 pontos). Não sendo assim,
é grande o perigo de restringir a avaliação da leitura a dois ou três itens
que, como se verá, podem até ser ambíguos. Os itens de compreensão devem
implicar pequenos matizes — o fechamento, é claro, não deve ser confundido com
resposta óbvia —, mas, para que não haja o risco de essa finura da formulação
resultar em performances de puro azar
ou sorte, seria avisado multiplicarem-se os itens, cada um com cotação menor
(em conjunto, perfazendo pontuação idêntica à atual).
Passo
agora aos quatro itens do grupo II que se centravam assumidamente na testagem
da leitura.
1.3 e 1.4 não têm problemas. São bons
itens.
1.1, que também considero aceitável, tem um
enunciado com redação propositadamente tortuosa. O tronco da afirmação fica na
negativa («a expressão ‘triunfo de um ponto de vista’ [linhas 1 e 2])
corresponde a uma síntese que exclui a»), o que funcionará como exigência posta
à interpretação pouco menor do que a do trecho que se pretendia o aluno
descodificasse. Considerando que essa dificuldade trazida pelo próprio
enunciado é um obstáculo de características semelhantes ao que põe a compreensão
de textos em geral, não escandaliza que a leitura seja aferida assim. (Mas é
preciso reconhecermos que se estará a testar a compreensão do enunciado dos
autores da prova e não apenas já a do texto sobre que a testagem anunciara ir
deter-se.)
Quanto
a 1.2,
é um item incorreto, invalidável portanto. É certo que é possível adivinhar que
a prova pretende que escolhamos «mantém-se inalterada» (como boa continuação de
«Desde as primeiras leituras realizadas na adolescência, a admiração da autora
pela obra de Eça»), mais por experiência com o estilo de perguntas das provas
do que por leitura suficientemente atenta. Concordo até que seria aquela a
resposta obrigatória se se remetesse para os dois primeiros parágrafos, e não estou
a desdenhar o início do terceiro parágrafo («Mas se é verdade que Eça continua
atual», l. 12) nem, quase no final, «do culto que a obra legitimamente merece»
(l. 25). Só que, para além da interpretação bem comportada de que a cronista
continua a admirar Eça, o longo terceiro parágrafo mostra que essa admiração
tem de ser equilibrada com os novos dados que se retiram da história da
literatura do século XX. Ora, um bom leitor pode inferir que essa nova
contextualização, essa nova bitola que nos é explicada no último parágrafo,
também não a tinha a autora enquanto adolescente. O segmento «é assim que o
entendo sempre que lá regresso» (l. 10) não implica que a admiração se mantenha
inalterada; supõe só que continua a haver admiração e que permanece o
entendimento quanto às exatas características gabadas antes, não impedindo a
conclusão de que a cronista enquadra já de outro modo a sua opinião sobre Eça
(diremos que a admiração não é menor mas é diferente, já que Eça tem agora rivais).
Ou seja, a alínea «mudou consideravelmente» não pode ser tida como errada
(«consideravelmente» abarca uma mudança que não é de desvalorização e que é determinada
por novo ponto de vista); por outro lado, a solução que se exige — a alínea «mantém-se
inalterada» — radica numa leitura demasiado literal e ingénua do texto de Lídia
Jorge. Um bom leitor tem de ler nas entrelinhas. Nas entrelinhas da crónica
percebe-se que Lídia Jorge não mantém inalterada a sua admiração por Eça
(continua a admirá-lo mas enquadrando essa admiração de outro modo, de um modo que,
afinal, «mudou consideravelmente»).
2.2. grupo I
[De
novo: devia evitar-se misturar a aferição de capacidades diferentes. Leitura ou
reconhecimento do que foi estudado? Estratégia para classificação das respostas
quanto a conteúdo costuma convidar a uma redação de «sebenta», o que não
acontecerá desta vez. Não houve verdadeira matéria do 11.º ano. Foco da
testagem da leitura devia estar na informação não explícita.]
O
grupo I pretende testar expressão escrita e leitura. Como fora anunciado pelo
IAVE, a parte A incidiu sobre «matéria» do 12.º ano; a B, sobre autor do 11.º
ano. Os itens deste grupo — reporto-me à estrutura das provas de exame, sem me
focar particularmente nesta prova —, segundo a espécie de protocolo que se
forma entre IAVE, professores e alunos, supõem a avaliação do conhecimento das
obras (o que inclui a leitura propriamente dita mas também algum treino de
análise das obras ou de poemas típicos), da compreensão do trecho reproduzido e
da capacidade de redigir. Prescindo de repetir que era desejável que estes três
aspetos pudessem ser avaliados em maior independência. Julgo errado que a
escrita intermedie sempre a aferição da compreensão e do conhecimento das
obras. Descarto ainda o problema que advém de ser impossível testar
eficientemente a compreensão se se usar texto já conhecido dos alunos. Também
não vincarei de novo que textos como as estâncias de Os Lusíadas ou mesmo os trechos do «Sermão de Santo António aos
Peixes» e, por outras razões, os poemas de Pessoa, não facilitam a boa testagem
da leitura. Em tempos [«Textos e preparação do ensino», Actas do segundo encontro de professores de Português (Homenagem a
Eugénio de Andrade), pp. 36-52, Porto, Areal, 1998], mostrei como textos
com língua que que já não é a dos alunos ou que joguem com informação que os
leitores do século XXI já não têm são desvantajosos no ensino da leitura e na
sua testagem. No caso de Camões, por exemplo, ou o aluno já interiorizou antes
do exame a tradução das estâncias em causa ou não perceberá o passo. E note-se que
deter o aluno em memória uma paráfrase das estrofes impede que se possa avaliá-lo
em termos de verdadeira compreensão de leitura.
O
constrangimento de escrever sobre textos pouco acessíveis por leitura
propriamente dita tem incentivado a que se recorra a sebentas, a esquemas (em
apresentações ou em papel), a uma série de expedientes que os critérios de correção
do IAVE têm tornado rendíveis. Com efeito, para se resolver itens como os que
são exigidos nestes grupos I duas vias são possíveis: (i) procurar compreender
bem o texto (o que inclui, é claro, o cruzamento com informações prévias
adquiridas no 12.º ou no 11.º ano) e, tendo presentes as indicações dadas nos
enunciados das perguntas, pôr por escrito, em texto próprio, a resposta; (ii)
ler os enunciados das perguntas escrutinando entre o que se estudou o que
pareça poder aludir ao texto e item em pauta, redigindo de modo a incluir as
noções que se julga virem a propósito, mais conduzido pela informação decorada
do que empenhado em escrever com originalidade. Em geral, os critérios de
correção do grupo I, preocupados em desdobrar comportamentos no que concerne a
alusões a tópicos, mas subjetivos no que tem que ver com a redação ou a
compreensão genérica, levam a que nos perguntemos se a segunda via não será
muitas vezes a mais recompensada. Nem tanto assim, desta vez. Os grupos I-A e
I-B do exame deste ano não são do pior que se tem visto. Logo o usar-se textos
de prosa permite evitar escolhos que tenho visto em provas de outros anos.
O
texto de Saramago, apesar de incorrer no obrigatório óbice de ser já conhecido dos
alunos (pela leitura do livro, mas também por análise em aula — é trecho de um momento
da narrativa que é dos mais abordados nos manuais —, em documentário, salvo
erro até na adaptação a teatro), é passível de leitura de compreensão, mesmo se
a testagem dessa competência fica enviesada, dada a variável estranha
incontrolável que são as experiências anteriores com o mesmo episódio.
Considerado o modelo que estas provas preferem, o grupo I-A é razoável. Os
itens 1, 2, 3 (os da parte B), avaliarão, e por esta ordem de valorização, capacidade
de redação (mas do tipo expositivo-argumentativo), conhecimento prévio da obra,
compreensão de leitura propriamente dita.
Já
a parte I-B parece poder ser respondida independentemente do conhecimento da
obra. Não creio que o conhecimento do «Sermão» concorra para a resposta do que
é exatamente perguntado. E, na verdade, ter-se-á querido afinal evitar matéria
do 11.º ano: usar-se um texto do «Sermão» ou de outra obra qualquer, vistos os
itens 4. e 5., é indiferente. Dir-se-ia ficar assim aberto o campo para se
testar a verdadeira compreensão. Ora também isso não acontece. Como as
respostas aos dois itens se ancoram sobretudo em informação explícita e textual
— note-se que o mais interessante seria aferir a informação implícita e textual
ou a informação implícita e baseada nos esquemas do leitor — estará em causa,
mais do que a compreensão, a redação (e, de novo, unicamente a daquele estilo
«literato» que supõem estes itens). Este grupo I-B, que vale quarenta pontos, exige
portanto apenas capacidades que pouco dependem do trabalho havido.
2.3 grupo III
[A
expressão escrita é testada num único tipo de texto, quando os programas
estipulam o ensino de tantos outros. Mesmo considerado o tipo
expositivo-argumentativo, o enunciado do grupo III conduz a uma redação «de
formulário». Os critérios de pontuação deste grupo desaproveitam o que a
investigação sobre escrita já conseguiu descrever.]
Também
o grupo III apela a uma capacidade que, nos seus traços gerais, está definida
desde o início do 2.º ou do 3.º ciclo. Como se sabe, neste grupo pede-se uma
composição expositivo-argumentativa, «uma reflexão», em torno de um tópico,
bastante genérico. Embora costume ser dada uma citação, em que a dissertação se
pode apoiar, não seria muito diferente se surgisse apenas o tópico. Neste caso,
o tópico era ‘a ambição’ e, não havendo citação, as duas linhas iniciais do
enunciado funcionavam como epígrafe orientadora: «Para uns, a ambição está na
origem de todas as conquistas humanas; para outros, a ambição é a causa de
muitos dos problemas da humanidade». Vem também a instrução habitual, a
constranger o escopo da argumentação: «Fundamente o seu ponto de vista
recorrendo, no mínimo, a dois argumentos e ilustre cada um deles com, pelo
menos, um exemplo significativo».
As
críticas que farei não caem especificamente sobre o grupo III da presente prova,
antes têm que ver com o tipo de redação que o modelo de provas de exame assim
elege. Os programas do secundário, no que se refere à competência de escrita,
percorrem diversos tipos/géneros/subgéneros textuais: textos narrativos,
descritivos, autobiográficos, expressivos, transacionais, informativos, de
apreciação crítica, etc.. Apesar disso, o tipo textual estipulado para este
grupo III é sempre o expositivo-argumentativo. Como vimos, os itens do grupo I,
que misturam escrita e compreensão, quanto a escrita também mobilizam exclusivamente
o protótipo expositivo-argumentativo. Valeria a pena ponderar se o grupo III
não deveria ir alternando os tipos de redação pedida, de forma a aproximar o
que se treina ao longo do ensino e o que se pede na testagem externa. Não sei
se este monopólio da exposição-argumentação resulta de ser o tipo textual que,
ao lado do curriculum vitae, está nos
conteúdos do 12.º — se sim, agora que em termos de leitura se alargaram os
conteúdos até aos do 11.º (já neste exame) e aos do 10.º (no ano que vem), mais
se justifica que passe a haver a expetativa de que, também nos domínios da
escrita, qualquer tipo textual pode ser objeto do exame. Acrescentaria que o
desdobramento do grupo III em duas redações mais pequenas permitiria contemplar
dois géneros de texto, conseguindo-se uma amostra mais fiável das capacidades
do aluno na escrita em geral. Convém lembrar que a proficiência em escrita pode
variar bastante em função do tipos de texto pedidos. Há excelentes escreventes
de textos criativos (ou transacionais, ou memorialísticos, etc.) que, ao mesmo
tempo, falham bastante na clássica dissertação. Ao contrário, também.
Regressando
ao modelo que temos atualmente, podemos lamentar que os tópicos do grupo III
grupos tendam a convidar à exposição bem comportada, ao lugar comum, à redação
comandada por um formulário escolar. O constrangimento imposto na instrução —
dois argumentos, um exemplo por cada um — conduz estes textos para uma matriz
comum completável depois com poucos conectores também eles registados já
enquanto acervo sempre retomável.
Uma
última palavra para os critérios de pontuação, em que pouco me fui detendo quando
abordei os outros grupos. Os cinquenta pontos do grupo III distribuem-se entre «Estruturação
Temática e Discursiva» (30 pontos) e «Correção Linguística» (20). Os vinte
pontos de CL são para ser sujeitos aos chamados «Fatores de desvalorização»
(descontos de um ponto, por erros de ortografia, pontuação, «morfologia»;
descontos de dois pontos por má sintaxe ou impropriedade lexical). Este
mecanismo de desconto por erros (comum à pontuação dos itens do grupo I) não
obedece a nenhum critério didático. A cotação dos erros em termos tão liminares
(todos os erros de ortografia a retirarem um ponto; todos os erros de sintaxe a
significarem menos dois pontos) faz equivaler situações diversíssimas, que a
investigação linguística consegue discriminar e cujas diferentes causas tem
explicado. A extensão do texto pedido, com extremos de duzentas a trezentas
palavras, ainda mais invalida, em termos investigativos, este tipo de
estratégia, pois que a amplitude acentua a aleatoriedade da pontuação negativa:
desconta-se relativamente a um «universo» demasiado variável. Diga-se ainda que
a qualidade da redação, mesmo em termos linguísticos, não é aferível pela
simples ausência ou quantidade de erros: dois textos com o mesmo número de
erros localizáveis nos termos em que propõe a grelha do IAVE podem abonar
níveis de «correção linguística» francamente diferentes. (Tratei de alguns
destes problemas da classificação de textos escritos em «Parecer sobre
critérios de avaliação para a disciplina de Português», Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 12 (1999), pp.
202-212, Lisboa, Colibri, [2001] [< http://run.unl.pt/handle/10362/7449
>].)
A
pontuação relativa a ETD é orientada por escalas de níveis de eficiência, que julgo
pouco práticas. Mais do que funcionarem enquanto descritores úteis, consultáveis,
é provável que acabem por só iludir a subjetividade da escolha da pontuação (os
desempenhos descritos moldam-se facilmente a perfis diversos). Demorariam aliás
tempo irrazoável os classificadores que, perante cada teste, se dispusessem a percorrer
a escala em todos os comportamentos. Também sucederá raramente, ao contrário do
que sugere a escala, terem os escreventes um mesmo nível de desempenho em
comportamentos de subdomínios variados (na verdade, o classificador precisaria
de idealizar um valor médio dados desempenhos de níveis diversos e que nem
terão sempre peso idêntico). Adivinho que os corretores procedam, na prática,
por interiorização de uma bitola (aferida, inicial ou periodicamente, pela escala
de níveis de desempenho). E é o mais sensato.
A
prova de Português (639) realizada a 18 de junho é um exemplo de teste de
Português que evita avaliar o que é ensinável. Ocupa-se quase só com o que
pouco depende do estudo, do investimento que os alunos pudessem ter feito na
disciplina. Há pelo menos 90 pontos (os quarenta do grupo I-B e os cinquenta do
grupo III) que podiam ser respondidos cabalmente sem qualquer conhecimento do
programa. Quanto ao grupo II, defendi que inclui dois itens corretos (1.3 e
1.4), quatro itens deficientemente concebidos (1.1, 1.5, 2.1, 2.2), quatro
itens mal formulados ou com solução errada (1.2, 1.6, 1.7, 2.3), pelo que
contém 20 pontos que não deveriam contabilizados, 20 pontos em que é grande o
risco de se avaliar mal e 10 pontos realmente avaliáveis. Acrescente-se que a
classificação de alguns dos itens que considerámos formulados aceitavelmente (o
grupo I-A, que vale sessenta pontos) é, ainda assim, suscetível de injustiça,
já que, na parte de «Conteúdo», a pontuação assenta em níveis de desempenho a apreciar
subjetivamente e, na parte «Estruturação do discurso e correção linguística»,
se socorre dos fatores de desvalorização cujo caráter contingente já abordámos
a propósito do grupo III.
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