Thursday, September 08, 2022

Quem nasceu para cinco nunca chegará a dez (por Maria; 12.º 1.ª de 2021-2022)

Quem nasceu para cinco nunca chegará a dez

 

“Quem nasceu para cinco, nunca chegará a dez.” — era a frase mais ouvida na casa da prima Alzira. Todas as primas mais novas veneram a Ziza (como é carinhosamente tratada).

Órfã desde muito cedo, era dona de um olhar distante e de uma negritude incomum. Os, agora, cabelos grisalhos, foram antes de um loiro brilhante, natural e invejado em toda a cidade. Contudo,  a parca e fraca figura esconde uma personalidade férrea, inflexível e de uma retidão quase incompreensíveis.

Ana, Sofia e Rita sempre ouviram com atenção as muitas lições de moral, financeiras e de economia doméstica da prima Ziza e agora, no dia em que lhe prestam a última homenagem, pensam em como a prima Ziza, teve um papel tão importante na formação dos seus seres.

Ziza tomou conta das irmãs Cardoso toda a sua vida, foi o pilar, a sua mentora, o seu farol. Todas as decisões passavam por ela, qualquer passo ou movimento era escrutinado por Ziza, que, com a  habitual calma e ponderação, determinava a resolução ou ação a tomar.

Agora, perante uma Ziza imóvel e serena, diante dos seus olhos, Ana, a mais velha do clã, revivia o passado e auditava o presente. Constatava o quanto Ziza tinha sido importante para si, mas, também, como tinha sido castrador e debilitante o matraquear aos seus ouvidos ingénuos e crédulos, por toda a sua infância e juventude, a frase mais ouvida no nº 12 da rua de São Julião  — “Quem nasceu para cinco, nunca chegará a dez.”.

Naquele momento solene e devastador, nem Ana, nem Rita, nem Sofia conseguiam conter a mágoa que sentiam, perante a figura, agora morta, da dama de ferro que, mesmo sem querer, as tinha privado de um futuro mais confiante e feliz.

“Quem nasceu para cinco, nunca chegará a dez” ressoava nos seus ouvidos e ficara imprimido na sua mente por décadas e décadas. Mas porquê? O que tinha levado Ziza a fazer as irmãs acreditar que não eram suficientes, que não tinham muito mais para dar. Que teria vivido Ziza de tão grave, que não lhe permitia sentir confiança ou orgulho naquelas meninas que tinham estado uma vida inteira a seu cargo? Porquê a mágoa? Seria consciente?

A prima Alzira sempre vivera de forma frugal e contida, tinha manietado, mesmo que sem intenção, a vida das pequenas. Ana, Rita e Sofia cresceram a pensar que, por muito que estudassem e que se esforçassem, nunca chegariam longe. E porquê? Porque, simplesmente, não lhes estava no sangue.

O líquido que lhes corria nas veias era de fraca qualidade e, como tal, como poderiam elas querer ser mais do que um poucochinho.

Intimamente culpavam Ziza pelos seus fracassos, por todos os meios sucessos ou até pela falta de sorte.

Diante do túmulo de Ziza, todas as suas vidas lhes passavam diantes dos olhos como um filme em fast forward, como se estivessem elas próprias à beira da morte e que, em segundos, um mini-filme das suas vidas rodasse nas suas cabeças, segundos antes do suspiro final.

Ana casou cedo, com um bancário careca e pouco afetuoso. Sempre quisera ser bailarina, mas a vida (ou talvez Ziza) nunca o permitiu. Sempre pensou: “Para quê tentar, se sei à partida que nunca irá acontecer.”. Resignou-se sempre a uma vida doméstica a cuidar dos dois filhos, a tratar da casa e a passar secretamente todas as semanas na Escola de Dança, onde ficava sempre dez minutos em pura contemplação e sonho. Nunca ninguém soube desta atividade clandestina e Ana nunca fez questão disso.

Rita, a irmã do meio, era claramente a mais independente e rebelde, vivia sozinha, no seu T1 em Santa Apolónia, tinha um conjunto de amigos, dir-se-ia, alternativos e saltitava de namorado em namorado, sem se prender. Esta vida, claramente pouco recomendável aos olhos da sua mentora, era vivida à socapa e por isso as visitas e consequentes explicações â prima Ziza eram pouco frequentes.

Sofia, a benjamim do clã, era a mais doce, a mais preocupada e a mais carente. Enfermeira de profissão, mas médica de coração, é devota do trabalho, mas carrega a mágoa de nunca sequer ter tentado aquilo de que realmente gostava — ser neurologista. O cérebro humano fascinava-a, as suas ligações e a complexidade eram tanto de mistério como de vontade da descoberta. A vida, ou talvez a prima ou talvez as duas, tinham-na levado por outro caminho. A insegurança e a profunda crença na sua mediocridade sanguínea fizeram-na optar pelo caminho mais fácil, mais seguro.

Sem combinarem, chegaram em simultâneo ao velório de Ziza e a primeira coisa que lhes saiu, em uníssono, foi “Quem nasceu para cinco nunca chegará a dez.”.

Nenhuma das irmãs conhecia a verdadeira história da prima e, na verdade, nunca tinham tido curiosidade em perguntar. Para elas, a prima Alzira era uma velhinha solitária, determinada e a com mais "pelo na venta” que conheciam. Nunca se deixava abalar, mantinha sempre uma calma imperial e tinha sempre resposta para tudo (mesmo que não fosse a resposta que elas queriam ouvir). Não obstante, e agora que paravam para pensar no assunto, não conheciam o passado de Ziza antes de elas chegarem à sua vida. Poderia ter sido um tabu ou absoluto desinteresse. Afinal, que interesse teria a infância e juventude de uma mulher que vivia uma vida regrada, com todas as ações realizadas a “régua e esquadro”. Certamente seria a história mais aborrecida de toda a humanidade.

A prima Ziza não tinha amigas (que se conhecesse), era filha única e perdera os seus pais num trágico acidente de carro, no final da sua adolescência. A partir daqui nada mais sabiam, para além de que assumira a responsabilidade das irmãs Cardoso, quando os pais destas emigraram para a África do Sul, à procura de uma vida melhor e mais desafogada. Ziza tinha vinte e oito anos na altura.

Passados todos estes anos, e só perante a inevitabilidade da morte, as irmãs tomaram consciência de que nada sabiam deste hiato de dez anos.

Como era isto possível? De facto, Ziza nunca tinha mencionado uma só palavra sobre este período, nunca se ouvira uma única história, uma menção. Era como se um vírus apagador da memória tivesse aparecido e, em consequência, a vida tivesse dado um salto quântico entre os dezoito e os vinte e oito anos de Ziza.

Como podia ser? Como é que Ana, Sofia e Rita nunca tinham pensado nisso? Como teria sido tão habilidosa a sua educadora para evitar o assunto por todos estes anos? Na verdade, nunca tinha havido abertura ou tempo para isso. Ziza tinha mantido as suas vidas tão ocupadas e distantes da sua própria que o assunto sempre lhes passara ao lado.

Agora, neste último adeus, em que Ziza já não lhes dizia o que fazer ou como pensar, tinham verdadeiramente tempo para refletir e para questionar.

Imersas nestes pensamentos, as irmãs choravam a partida de Ziza, quando se deram conta da entrada um senhor de ar altivo, muito aprumado no seu fato de três peças e que trazia um lindo e gigante ramo de tulipas amarelas. As mesmas tulipas amarelas que, sem razão aparente, Ziza comprava nos primeiros dias de maio e que ficavam na jarra à entrada do seu quarto até ao cair da última pétala. As tulipas amarelas eram o único luxo que Ziza tinha tido na vida e claramente tinham um significado muito além de embelezarem por uns dias a casa.