Thursday, September 09, 2021

Relógios Parados (por Ana Sofia, 12.º 3.ª de 2019-2020)

Relógios parados

A leve cadência da carruagem sempre o confortara. O movimento compassado do comboio, acompanhado pelo seu murmúrio agradavelmente ritmado, transportava uma serenidade inigualável: sentia-se maestro de uma sinfonia que, apesar de já tão bem conhecida, era como se estivesse verdadeiramente nas suas mãos e ele, seguro da rota a seguir, a harmonizasse com perícia. Só a passagem pelo túnel o perturbava: durante aqueles instantes em que o tempo se alongava, ignorando a sua habitual efemeridade, o murmúrio tornava-se ensurdecedor e as luzes brancas, contrastando implacavelmente com a escuridão do outro lado do vidro, surgiam-lhe agressivas.

Mas era sobretudo por esse momento, já iminente mas sempre fugaz, que ansiava toda a viagem: por uns breves segundos a selva urbana, majestosa fauna de betão, aparentemente imutável devido à pouca atenção que lhe dispensava, cedia gentilmente o lugar a uma nesga do oceano refletida nos seus olhos como uma explosão de azuis mesclados, odores sempre inventados e banhistas sem cara mas decerto felizes, queimados por um sol, frequentemente, imaginado. E depois, quando já fixara o olhar num desses pássaros que avistava no horizonte deixando-se sobrevoar as águas revoltas e ser transportado para um outro canto qualquer do planeta onde a nesga de azul profundo era eterna e translúcida e o sol raiava sempre, cortavam-lhe as asas, a fauna de betão ressurgia mais impenetrável que nunca.

Nesse final de tarde o cenário não foi diferente: se é certo que, por ser já tão tarde, a diferença cromática, as texturas e sombras daquele seu pequeno refúgio visual que tanto lhe agradavam de manhã, de tão vivas e claras, se atenuavam, apenas uma mancha pálida ao sol outonal a fazer de mar rodeada por uma areia acinzentada e deserta despontando timidamente, a verdade é que a sua imaginação, que só saía do seu canto perdido numa gaveta qualquer em casos que tais, fazia o resto. Pintava agora um esplendoroso pôr do sol na sua tela improvisada: o mar, quase imóvel como numa verdadeira pintura, tingia-se de dourados e de tons avermelhados que se iam esbatendo e misturando com aquele cheiro a verão inconfundível que alguns dias de maio já conheciam. No fio que costumava separar rigidamente o mar do céu, mas que agora se tornara invisível, avistava-se uma ou outra embarcação, impassíveis a esta condição de indefinição do horizonte onde navegavam.

A poucos metros deste quadro, todos os cantos de um pequeno mas largamente desorganizado escritório no velho prédio de tijolo amarelo da marginal (que destoava completamente dos seus modernos vizinhos ainda que parecesse ostentar as marcas da decadência do passar dos anos, nomeadamente a sua notória transformação num branco sujo, com um certo orgulho) eram iluminados pelo que seria talvez a primeira vez nesse ano. O pó acumulado, já entranhado em todos os orifícios possíveis e impossíveis, dançava no ar, as plantas, evidentemente mortas, regozijavam com um sol desde sempre desconhecido, mas que em tempos teria permitido a sua prosperidade. Sim, era demasiado tarde, mas, movido por um qualquer ímpeto cuja origem não conseguia precisar, atrevera-se a correr as cortinas, desbotadas pelos anos de um cumprimento assíduo do seu dever em que, ignorantemente, bloqueavam uma vista para muitos privilegiada. E, como se se tratasse de uma ação trivial, num movimento no princípio incerto mas, depois, rápido e seguro, retirou a máquina de escrever da sua prisão, disposto a dedicar-lhe, por fim, o seu coração, é certo que há muito adormecido, mas pronto para um despertar, para uma nova vida que bombearia as palavras ininterruptamente. Confrontado com aquele objeto canalizador de uma vontade que tanto se esforçara por suprimir, apercebeu-se de todos os cheiros, sons, memórias de sorrisos desvanecidos com o passar dos anos que se iam multiplicando numa cacofonia para que nenhum corajoso impulso ou mais anos de um teimoso adiar do inevitável o podiam preparar.

Recordava agora o que o havia sobressaltado; não tinha sido o bater da porta nem, dias depois, a cama que continuava por fazer, os pratos nauseabundos que se iam acumulando no lava-loiças, os ossos do Pluto cada vez mais visíveis ou o som do piano que deixara de ecoar pelo apartamento agora imundo, melancólica banda sonora de um tempo passado. Não, foi outra coisa que gritava mais alto do que todas as outras, o suficiente para o libertar, mesmo que momentaneamente, do seu aparente torpor, na realidade o estado de êxtase angustiado de quem, não tendo palavras para tudo o que lhe corre na alma, lhe faz um corte tão profundo quanto possível deixando jorrar os pensamentos mais recônditos (mas havia sempre um, maldito, que se escapava!); a escrita ininterrupta era a única forma de sobrevivência desta alma mutilada. Tinha sido ao ver o relógio da cozinha que um eco, inicialmente indefinido, foi ganhando forma, insurgindo-se – “Também eu não suporto o passar do tempo, aguento tudo, sim, mas não preciso de mais uma lembrança do que poderia ser mas já passou.”.

Ela sempre odiara relógios parados, aversão que não passava de uma manifestação curiosa da sua intolerância perante a fugacidade de uma vida que lhe havia sido injusta e do consequente medo de se perder na suspensão do tempo. A necessidade de garantir que nada escapava à sua passagem inexorável, muito menos (note-se a ironia, que a eriçava) o seu próprio marcador, o seu suposto controlador que continuamente a anunciaria a todos, parecia-lhe lógica, assegurando assim que todos lhe eram subordinados, embora estivesse consciente de que talvez lidasse com esta condição mais amargamente. Portanto, o que não passava de uma falha mecânica despoletava em si uma fúria bizarra, que a ele até lhe era querida. Não o expressava, claro (há quanto tempo não expressava o que quer que fosse, não contando com os rios intermináveis de papel datilografado sob um sol que insistia em bloquear?). Mas não deixava de ser confortante a recordação de que havia ali um outro coração errante, porventura tão perdido como o seu que agora estacava de olhar vazio perante o relógio da cozinha, imóvel tal como os seus ponteiros, apercebendo-se de que perdera o outro que lhe havia sido tão querido, e que, mesmo que na altura não o soubesse, seria sempre mais seu, sempre antes daquele que carregava no peito.

Os dias que passou, então sim, mergulhado num verdadeiro torpor, a casa emudecida findos os seus tic-tacs (o do relógio e o outro, fiel acompanhante da transcrição dos seus pensamentos) foram-se multiplicando indefinidamente. As horas passadas surgiam-lhe desfocadas, certamente indiferentes tais como as presentes e as futuras, fundindo-se num emaranhado que não lhe interessava desfazer. Mas sentia agora como as cortinas invulgarmente corridas e uns tímidos raios de sol batendo levemente na máquina de escrever adormecida, tinham um efeito disruptor.

Um passo de cada vez, pensou, pousando o olhar no Pluto, agora menos escanzelado, não pela atenção do dono, mas porque também ele se reerguera, aprendendo a alimentar-se sozinho, o que agora o outro reconhecia com prazer. Hoje observo o mundo porque há ervas a crescerem por entra as fendas do passeio, um veleiro destemido a brincar na indeterminação do horizonte e um lagarto por baixo da janela a que está a crescer uma nova cauda.

Deslumbrado, nem estranhou dirigir-se à estação para andar de comboio pela primeira vez, imaginava apenas que, tal como a árvore que agora habita uma casa abandonada qualquer, os seus ramos a rasgarem o teto sem questionarem o xilema que lhes corre nos vasos, sentindo-o apenas, vivendo o milagre em toda a sua simplicidade, a sua alma regenerar-se-ia. E, algures numa casa que ela decorou ao seu gosto (as almofadas combinam com as cortinas que não estão desbotadas), talvez nem todos os relógios tenham corda.