Saturday, September 14, 2013

Poemas de Cesário Verde 1


Era minha intenção fazer alguma escolha da edição dos textos de Cesário. Como acontece com escritores cujos textos foram publicados em livro apenas depois da sua morte, há dúvidas sobre a melhor versão de alguns dos textos de Cesário Verde, mas teria sido possível eleger a edição que consideramos preferível. Porém, para não me demorar mais, acabei por reunir aqui os poemas sem esse trabalho prévio de escrutínio de edições. Paciência.
Nas reproduções que se seguem falha sempre a representação de versos recuados (indentados) que caracterizam muitas estrofes de Cesário Verde. Essa disposição de um verso dentro de cada estrofe será mais requinte tipográfico do que pensada pelo poeta — mas, não fossem os constrangimentos da edição no blogger, tê-la-ia conservado. Também terão falhado alguns itálicos e, como aproveitei uma digitalização brasileira que procurei depois rever, admito que surjam raras idiossincrasias ortográficas (certos circunflexos por agudos, por exemplo). Irei revendo a pouco e pouco.
Não se estranhe que alguns dos títulos destes poemas não coincidam como da edição que é consultável aqui. É uma das tais diferenças de fixação do texto.
 
Os textos que demos em aula o ano passado são estes:
«Num bairro moderno» (pp. 293-294)
«O sentimento dum ocidental. I —Ave Marias» (pp. 298-299)
«O sentimento dum ocidental. III — Ao gás» (pp. 303-304)
«Contrariedades» (pp. 307-308)
«Deslumbramentos» (p. 311)
«Lúbrica» (p. 314)
«Vaidosa» (p. 316)
«Cinismos» (p. 316)
«Cristalizações» (p. 319)
«A Débil» (levado por mim)
«De tarde» (levado por mim)
«De verão» (levado por mim)
 
 
 
DESLUMBRAMENTOS
 
                S.
 
Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
 
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...
 
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
 
Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...
 
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
 
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pelo dum regalo!
 
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
 
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.
 
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
 
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas!
 
 
 
CANTOS DA TRISTEZA
 
Talvez já te não lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
Á tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.
 
Talvez já te não lembres, pesarosa,
Da casinha caiada em que morámos,
Nem do adro da ermida silenciosa,
Onde nós tantas vezes conversámos.
 
Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.
 
Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acácia.
 
Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E nas lajes campais do cemitério.
 
Talvez já se apagassem as miragens
Do tempo em que eu vivia nos teus seios,
Quando as aves cantando entre as ramagens
O teu nome diziam nos gorjeios.
 
Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,
Ou nos bicos agrestes dos silvados.
 
Eu ia desprendê-los, como um pajem
Que a cauda solevasse aos teus vestidos,
E ouvia murmurar à doce aragem
Uns delírios de amor, entristecidos.
 
Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,
Pousarem borboletas doudejantes
Nas tuas formosíssimas madeixas,
Daquela cor das messes lourejantes.
 
E no pomar, nós dois, ombro com ombro,
Caminhávamos sós e de mãos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro,
E colorindo as faces desbotadas.
 
Quando Helena, bebíamos, curvados,
As águas nos ribeiros remansosos,
E, nas sombras, olhando os céus amados
Contávamos os astros luminosos.
 
Quando, uma noite, em êxtases caímos
Ao sentir o chorar dalgumas fontes,
E os cânticos das rãs que sobre os limos
Quebravam a soidão dos altos montes.
 
E assentados nos rudes escabelos,
Sob os arcos de murta e sobre as relvas,
Longamente sonhamos sonhos belos,
Sentindo a fresquidão das verdes selvas.
 
Quando ao nascer da aurora, unidos ambos
Num amor grande como um mar sem praias,
Ouvíamos os meigos ditirambos
Que os rouxinóis teciam nas olaias.
 
E, afastados da aldeia e dos casais,
Eu contigo, abraçado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigais.
Devolvia-te os beijos que me deras.
 
Quando, se havia lama no caminho,
Eu te levava ao colo sobre a greda,
E o teu corpo nevado como arminho
Pesava menos que um papel de seda.
 
                *
 
Talvez já te esquecesses dos poemetos,
Revoltos como os bailes do Casino,
E daqueles byrónicos sonetos
Que eu gravei no teu peito alabastrino.
 
De tudo certamente te esqueceste,
Porque tudo no mundo morre e muda,
E agora és triste e só como um cipreste,
E como a campa jazes fria e muda.
 
Esqueceste-te, sim, meu sonho querido,
Que o nosso belo e lúcido passado
Foi um único abraço comprimido,
Foi um beijo, por meses, prolongado.
 
E foste sepultar-te, ó serafim,
No claustro das Fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.
 
E eu passo tão calado como a Morte
Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
E prelibando o cálix da agonia,
 
E, tristíssima Helena, com verdade,
Se pudera na terra achar suplícios,
Eu também me faria gordo frade
E cobriria a carne de cilícios.
 
 
 
MERINA
 
Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noites de balada;
 
Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingénua e delicada.
 
 
 
SARDENTA
 
Tu, nesse corpo completo,
Ó láctea virgem doirada!
Tens o linfático aspeto
Duma camélia melada.
 
 
 
FLORES VENENOSAS
 
                I — CABELOS
 
Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;
 
Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.
 
Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre dos tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.
 
Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo escuro, etéreo e bom,
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Ou como um pé subtil calçado à Benoiton!
 
Ó pálida mulher, formosa incomparável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;
 
Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.
 
Eu sei que não possuis balsâmicos desejos,
Que és fria e não trilhaste a senda do prazer,
Mas ouço ao ver-te andar melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e elanguescer.
 
E a tua cabeleira, em ondas, pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.
 
E ela há de, ela há de, um dia, em turbilhões insanos
Nos rolos envolver-me e encher-me do vigor,
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.
 
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Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão eu vou talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer que eu tenho muito frio,
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.
 
 
 
CAPRICHO
 
                I
 
Num castelo deserto e solitário,
Toda de preto, às horas silenciosas,
Envolve-se nas pregas dum sudário
E chora como as grandes criminosas.
 
Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas
Em que ela esconde as lágrimas singelas.
 
                II
 
É loura como as doces escocesas,
Duma beleza ideal quase indecisa;
Circunda-se de luto e de tristezas
E excede a melancólica Artemisa.
 
Fosse eu os seus vestidos afogados
E havia de escutar-lhe os seu pecados.
 
                III
 
Alta noute, os planetas argentados
Deslizam um olhar macio e vago
Nos seus olhos de pranto marejados
E nas águas mansíssimas do lago.
 
Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna,
E faria que a noute fosse eterna.
 
                IV
 
E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pegos,
E nas salas ressoam uns suspiros
Dolentes como as súplicas dos cegos.
 
Fosse eu aquelas aves de pilhagem
E cercara-lhe a fronte, em homenagem.
 
                V
 
E ela vaga nas praias rumorosas,
Triste como as rainhas destronadas,
A contemplar as gôndolas airosas,
Que passam, a giorno iluminadas.
 
Pudesse eu ser o rude gondoleiro
E ali é que fizera o meu cruzeiro.
 
                VI
 
De dia, entre os veludos e as sedas,
Murmurando palavras aflitivas,
Vagueia nas umbrosas alamedas
E acarinha, de leve, as sensitivas.
 
Fosse eu aquelas árvores frondosas,
E prendera-lhe as roupas vaporosas.
 
                VII
 
Ou domina, a rezar, no pavimento
Da capela onde outrora se ouviu missa,
A música dulcíssima do vento
E o sussurro do mar que se espreguiça.
 
Pudesse eu ser o mar e os meus desejos
Eram ir borrifar-lhe os pés com beijos.
 
                VIII
 
E às horas do crepúsculo saudosas,
Nos parques com tapetes cultivados,
Quando ela passa curvam-se amorosas
As estátuas dos seus antepassados.
 
Fosse eu também granito e a minha vida
Era vê-la a chorar arrependida.
 
                IX
 
No palácio isolado como um monge,
Erram as velhas almas dos precitos,
E nas noutes de inverno ouvem-se ao longe
Os lamentos dos náufragos aflitos.
 
Pudesse eu ter também uma procela
E as lentas agonias ao pé dela!
 
                X
 
E às lajes, no silêncio dos mosteiros,
Ela conta o seu drama negregado,
E o vasto carmesim dos reposteiros
Ondula como um mar ensanguentado.
 
Fossem aquelas mil tapeçarias
Nossas mortalhas quentes e sombrias.
 
                XI
 
E assim passa, chorando, as noutes belas,
Sonhando uns tristes sonhos doloridos,
E a refletir das góticas janelas
As estrelas dos céus desconhecidos.
 
Pudesse eu ir sonhar também contigo
E ter as mesmas pedras no jazigo!
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                XII
 
Mergulha-se em angústias lacrimosas
Nos ermos dum castelo abandonado,
E as próximas florestas tenebrosas
Repercutem um choro amargurado.
 
Uníssemos, nós dois, as nossas covas,
Ó doce castelã das minhas trovas!
 
 
 
NOITADA
 
Lembras-te tu do sábado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?
 
Eu lembro bem as altas ruazinhas,
Que ambos nós percorremos, de mãos dadas;
Às janelas palravam as vizinhas;
Tinham lívidas luzes as fachadas.
 
Não me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado tempo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!
 
Nós saíramos próximo ao sol-posto,
Mas seguíamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.
 
Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.
 
Como uma mitra a cúpula da igreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja
Torcia risos com sabor amargo.
 
A lua dava trêmulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!
 
E para te seguir entrei contigo
Num pátio velho que era dum canteiro,
E onde, talvez, se faça inda o jazigo
Em que eu irei apodrecer primeiro!
 
Eu sinto ainda a flor da tua pele,
Tua luva, teu véu, o que tu és!
Não sei que tentação é que te impele
Os pequeninos e cansados pés.
 
Sei que em tudo atentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos marçanos,
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafurnados por imensos anos!
 
Tu sorrias de tudo: os carvoeiros,
Que aparecem ao fundo dessas ruínas,
E à crua luz os pálidos barbeiros
Com óleos e maneiras femininas!
 
Fins de semana! Que miséria em bando!
O povo folga, estúpido e grisalho!
E os artistas de ofício iam passando,
Com as férias, ralados do trabalho.
 
O quadro interior, dum que à candeia,
Ensina a filha a ler, meteu-me dó!
Gosto mais do plebeu que cambaleia,
Do bêbado feliz que fala só!
 
De súbito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gás que abria em leque,
Vimos um militar, de barretina
E dourados galões de pechisbeque,
 
E enquanto ela falava ao seu namoro,
Que morava num prédio de azulejo,
Nos nossos lábios retiniu em coro
Um vigoroso e estrepitoso beijo!
 
E assim ao meu capricho abandonada,
Errámos por travessas, por vielas,
E passamos por pé duma tapada
E um palácio real com sentinelas.
 
E eu que busco a moderna e fina arte,
Sobre a umbrosa calçada sepulcral,
Tive a rude intenção de violentar-te
Imbecilmente, como um animal!
 
Mas ao rumor dos ramos e da aragem,
Como longínquos bosques muito ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nós vivermos.
 
E ao passo que eu te ouvia abstratamente,
Ó grande pomba tépida que arrulha,
Vinham batendo o macadame fremente,
As patadas sonoras da patrulha.
 
E através a imortal cidadezinha,
Nós fomos ter às portas, às barreiras,
Em que uma negra multidão se apinha
De tecelões, de fumos, de caldeiras.
 
Mas a noite dormente e esbranquiçada
Era uma esteira lúcida de amor;
Ó jovial senhora perfumada,
Ó terrível criança! Que esplendor!
 
E ali começaria o meu desterro!...
Lodoso o rio, e glacial, corria;
Sentamo-nos, os dois, num novo aterro
Na muralha dos cais de cantaria.
 
Nunca mais amarei já que não amas,
E é preciso, decerto, que me deixes!
Toda a maré luzia como escamas,
Como alguidar de prateados peixes.
 
E como é necessário que eu me afoite
A perder-me de ti por quem existo,
Eu fui passar ao campo aquela noite
E andei léguas a pé pensando nisto.
 
E tu que não serás somente minha,
Às carícias leitosas do luar,
Recolheste-te, pálida e sozinha,
À gaiola do teu terceiro andar!
 
 
 
MANHÃS BRUMOSAS
(versos de um inglês)
 
Aquela, cujo amor me causa tanta pena,
Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, bucólica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.
 
Que línguas fala? A ouvir-lhe as inflexões inglesas,
– Na névoa, a caça, as pescas, os rebanhos! –
Sigo-lhe os altos pés por estas asperezas;
O meu desejo nada em época e banhos,
E, ave de arribação, ele enche de surpresas
Seus olhos de perdiz, redondos e castanhos.
 
As irlandesas têm soberbos desmazelos!
Ela descobre assim, com lentidões ufanas,
Alta, escorrida, abstrata, os grossos tornozelos;
E como aquelas são marítimas, serranas,
Sugere-se o naufrágio, as músicas, os gelos
E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.
 
Parece um «rural boy»! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracolo e aplicações vermelhas;
E à roda, num país de prados e barrancos,
Se as minhas mágoas vão, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.
 
E aquela, cujo amor me causa tanta pena,
Põe o chapéu ao lado, abre o cabelo à banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, católica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.
 
 
 
MELODIAS VULGARES
 
Fui ontem visitar o jardinzinho agreste,
Aonde tanta vez a lua nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como um sol, serena como um voo.
 
Em tudo cintilava o límpido poema
Com ósculos rimado às luzes dos planetas;
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E via-se o matiz das leves borboletas.
 
Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os castos madrigais;
E as virações, o rio, os astros, a paisagem,
Traziam-me à memória idílios imortais.
 
Diziam-me que tu, no flórido passado,
Detinhas sobre mim, ao pé daquelas rosas,
Aquele teu olhar moroso e delicado,
Que fala de langor e de emoções mimosas;
 
E, ó pálida Clarisse, ó alma ardente e pura,
Que não me desgostou nem uma vez sequer,
Eu não sabia haurir do cálix da ventura
O néctar que nos vem nos mimos da mulher!
 
Falou-me tudo, tudo, em tons comovedores,
Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes;
As falas quase irmãs do vento com as flores
E a mole exalação das várzeas rescendentes.
 
Inda pensei ouvir aquelas coisas mansas
No ninho de afeições criado para ti,
Por entre o riso claro, e as vozes das crianças,
E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.
 
Lembre-me muito, muito, ó símbolo das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquele céu e sobre aquelas plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.
 
E nosso bom romance escrito num desterro,
Com beijos sem ruído em noites sem luar,
Fizeram-mo reler, mais tristes que um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas-de-toucar.
 
Mas tu agora nunca, ai, nunca mais te sentas
Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,
E eu não te beijarei, às horas sonolentas,
Os dedos de marfim, polidos e delgados...
 
Eu por não ter sabido amar os movimentos
Da estrofe mais ideal das harmonias mudas,
Eu sinto as deceções e os grandes desalentos
E tenho um riso meu como o sorrir de Judas.
 
E tudo enfim passou, passou como uma pena
Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais,
E aquela doce vida, aquela vida amena,
Ai, nunca mais virá, Clarisse, nunca mais!
 
Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!
Quando ontem eu pisei, bem magro e bem curvado,
A areia em que rangia a saia roçagante,
Que foi na minha vida o céu aurirrosado,
 
Eu tinha tão impresso o cunho da saudade,
Que as ondas que formei das suas ilusões
Fizeram-me enganar na minha soledade
E as asas ir abrindo às minhas impressões.
 
Soltei com devoção lembranças inda escravas,
No espaço construí fantásticos castelos,
No tanque debrucei-me em que te debruçavas,
E onde o luar parava os raios amarelos.
 
Cuidei até sentir, mais doce que uma prece,
Suster a minha fé, num véu consolador,
O teu divino olhar que as pedras amolece,
E há muito me prendeu nos cárceres do amor.
 
E cheio das visões em que a alma se dilata,
Julguei-me no teu peito, ó coração que dormes!
E foram embalar-me as águas da cascata
De búzios naturais e conchas multiformes.
 
Os teus pequenos pés, aqueles pés suaves,
Julguei-os esconder por entre as minhas mãos,
E imaginei ouvir ao conversar das aves
As célicas canções dos anjos teus irmãos.
 
E como na minha alma a luz era uma aurora,
A aragem ao passar parece que me trouxe
O som da tua voz, metálica, sonora,
E o teu perfume forte, o teu perfume doce,
 
Agonizava o Sol gostosa e lentamente,
Um sino que tangia, austero e com vagar,
Vestia de tristeza esta paixão veemente,
Esta doença enfim, que a morte há de curar.
 
E quando me envolveu a noute, noute fria,
Eu trouxe do jardim duas saudades roxas,
E vim a meditar em que me cerraria,
Depois de eu morrer, as pálpebras já frouxas.
 
Porém, minha Clarisse, eu peço que não creias
Que eu amo esta existência e não lhe queira um fim;
Há tempos que não sinto o sangue pelas veias
E a campa talvez seja afável para mim.
 
Portanto, eu, que não cedo às atrações do gozo,
Sem custo hei de deixar as mágoas deste mundo,
E, ó pálida mulher, de longo olhar piedoso,
Em breve te olharei calado e moribundo.
 
Mas quero só fugir das coisas e dos seres,
Só quero abandonar a vida triste e má
Na véspera do dia em que também morreres,
Morreres de pesar, por eu não viver já!
 
 
 
CADÊNCIAS TRISTES
A João de Deus
 
Ó bom João de Deus, o lírico imortal,
Eu gosto de te ouvir falar timidamente
Num beijo, num olhar, num plácido ideal;
Eu gosto de te ver contemplativo e crente,
Ó pensador suave, ó lírico imortal!
 
E fico descansada, à noite, quando cismo
Que tentam proscrever a sensibilidade,
E querem denegrir o cândido lirismo;
Porque o teu rosto exprime uma serenidade,
Que vem tranquilizar-me, à noite, quando cismo!
 
O enleio, a simpatia e toda a comoção
Tu mostras no sorriso ascético e perfeito;
E tens o edificante e doce amor cristão,
Num trono de bondade, a iluminar-te o peito,
Que é toda a melodia e toda a comoção!
 
Poeta da mulher! Atende, escuta, pensa,
Já que és o nosso irmão, já que és nosso mestre.
Que ela, ou doente sempre ou na convalescença,
É como a flor de estufa em solidão silvestre,
Ao tempo abandonada! Atende, escuta, pensa.
 
E, ó meigo visionário, ó meu devaneador,
O sentimentalismo há de mudar de fases;
Mas só quando morrer a derradeira flor
É que não hão de ler-se os versos que tu fazes,
Ó bom João de Deus, ó meu devaneador!
 
 
 
NUM ÁLBUM
 
                I
 
És uma tentadora: o teu olhar amável
Contém perfeitamente um poço de maldade,
E o colo que te ondula, o colo inexorável
Não sabe o que é paixão, e ignora o que é vaidade.
 
                II
 
Quando me julgas preso a eróticas cadeias
Radia-te na fronte o céu das alvoradas,
E quando choro então é quando garganteias
As óperas de Verdi e as árias estimadas.
 
                III
 
Mas eu hei de afinal seguir-te a toda a parte,
E um dia quando eu for a sombra dos teus passos,
Tantos crimes terás, que eu hei de processar-te,
E enfim hás de morrer na forca dos meus braços.
 
 
 
CONTRARIEDADES
                A Coelho de Carvalho
 
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
 
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
 
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
 
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...
 
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
 
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.
 
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.
 
Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.
 
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
 
Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
 
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
 
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos...
 
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
 
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
 
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?
 
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...
 
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!
 
 
 
HUMILHAÇÕES
De todo o coração – a Silva Pinto
Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Job,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.
 
Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.
 
Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.
 
Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.
 
Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia
De vê-la aproximar, sentado na plateia,
De tê-la num binóculo mordaz!
 
Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
— Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovações.
 
Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetáculos do Som.
 
Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.
 
Saí; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.
 
De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
— Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...
 
 
 
A DÉBIL
 
Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.
 
Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.
 
E, quando deste esmola a um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.
 
“Ela aí vem!” disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na fresquidão dos linhos matinais.
 
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, — talvez que não o suspeites! —
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
 
Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste, eu deixei o botequim, à pressa;
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.
 
Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.
 
Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!
 
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.
 
Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.
 
“Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!”
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.
 
E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.
 
E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.
 
 
 
IRONIAS DO DESGOSTO
 
“Onde é que te nasceu” — dizia-me ela às vezes –
“O horror calado e triste às coisas sepulcrais?
“Por que é que não possuis a verve dos franceses
“E aspiras em silêncio os frascos dos meus sais?
 
“Por que é que tens no olhar, moroso e persistente,
“As sombras dum jazigo e as fundas abstrações,
“E abrigas tanto fel no peito, que não sente
“O abalo feminil das minhas expansões?
 
“Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
“Mas quando tentas rir parece então, meu bem,
“Que estão edificando um negro cadafalso
“E ou vai alguém morrer ou vão matar alguém!
 
“Eu vim — não sabes tu? — para gozar em maio,
“No campo, a quietação banhada de prazer!
“Não vês, ó descorado, as vestes com que saio,
“E os júbilos, que abril acaba de trazer?
 
“Não vês como a campina é toda embalsamada
“E como nos alegra em cada nova flor?
“Então por que é que tens na fronte consternada”
“Não sei quê de tocante e de enternecedor?”
 
E eu só lhe respondia: — “Escuta-me. Conforme
“Tu vibras os cristais da boca musical,
“Vai-nos minando o tempo, o tempo — o cancro enorme
“Que te há de corromper o corpo de vestal.
 
“E eu calmamente sei, na dor que me amortalha,
“Que a tua cabecinha ornada à Rabagas,
“A pouco e pouco há de ir tornando-se grisalha
“E em breve ao quente sol e ao gás alvejará!
 
“E eu que daria um rei por cada teu suspiro,
“Eu que amo a mocidade e as modas fúteis, vãs,
“Eu morro de pesar, talvez, porque prefiro
“O teu cabelo escuro às veneráveis cãs!”
 
 
 
NUM BAIRRO MODERNO
A Manuel Ribeiro
 
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
 
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama do papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
 
Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
 
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho da horta aglomerada
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
 
E eu, apesar do sol, examinei-a.
Pôs-se de pé, ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
 
Do patamar responde-lhe um criado:
“Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.” E muito descansado,
Atira um cobre ignóbil, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
 
Subitamente — que visão de artista! —
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
 
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
 
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, ao bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.
 
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos — ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas — os rosários de olhos.
 
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que lembrou um ventre.
 
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
 
O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
“Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...”
 
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
 
“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.
 
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre, afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
 
Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
 
Chegam do gigo emanações sadias,
Ouço um canário — que infantil chilrada!
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
 
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
 
E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
 
 
 
CRISTALIZAÇÕES
A Bettencourt Rodrigues
Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma imensa claridade crua.
De cócaras, em linha, os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua.
 
Como as elevações secaram do relento,
E o descoberto Sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
E as poças de água, como um chão vidrento,
Refletem a molhada casaria.
 
Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manhã bonita,
Uns barracões de gente pobrezita,
E uns quintalórios velhos, com parreiras.
 
Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra — que união sonora! —
Retinem alto pelo espaço fora,
Com choques rijos, ásperos, cantantes.
 
Bom tempo. Os rapagões, morosos, duros, baços,
Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos. Voam-lhe estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.
 
A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se as japonas, os coletes;
E eles descalçam com os picaretes,
Que ferem lume sobre pederneiras.
 
E nesse rude mês, que não consente as flores,
Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
Atiram terra com as largas pás.
 
Eu julgo-me no Norte, ao frio — o grande agente! —
Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente;
Vê-se a cidade, mercantil, contente:
Madeiras, águas, multidões, telhados!
 
Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria:
Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto, que eu diria
Ter ante mim lagoas de brilhantes!
 
E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo encontro alegremente exato.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato!
 
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me o fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.
 
Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo,
Dois assobiam, altas as marretas
Possantes, grossas, temperadas de aço;
E um gordo, o mestre, com um ar ralasso
E manso, tira o nível das valetas.
 
Homens de carga! Assim a bestas vão curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores descansam as enxadas,
E cospem nas calosas mão gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.
 
Povo! No pano cru rasgado das camisas
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas;
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!
 
De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem saiu da toca,
Uma figura fina desemboca,
Toda abafada num casaco à russa.
 
Donde ela vem! A atriz que eu tanto cumprimento
E a quem, à noite, na plateia, atraio
Os olhos lisos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
Caminha agora para o seu ensaio.
 
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados;
Os das planícies, altos aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!
 
Mas fina de feições , o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a atrizita que hoje pinto,
Neste dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!
 
Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na sanguínea, brutamente;
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinas de tacões agudos.
 
Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
Com seus pezinhos rápidos, de cabra!
 
 
 
HUMORISMOS DE AMOR
 
                I
Balzac é meu rival, minha senhora inglesa!
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas;
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.
 
                II
Admiro-a. A sua longa e plácida estatura
Expõe a majestade austera dos invernos;
Não cora no seu todo a tímida candura;
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos.
 
                III
Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante,
Numa das mãos franzindo um lençol de cambraia!...
Ninguém assim me prende, ó seria extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!
 
                IV
Hei de esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei duma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite,
É como o Sol — dourada, e como a Lua — branca!
 
                V
Pudesse-me eu prostrar, num meditado impulso,
Ó gélida mulher bizarramente estranha,
E trémulo depor os lábios no seu pulso,
Entre a macia luva e o punho de bretanha!...
 
                VI
Cintila ao seu rosto a lucidez das joias.
Ao deparar consigo a fantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das jiboias
E a marcha demorada e muda dum fantasma.
 
                VII
Metálica visão que Charles Baudelaire
Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos,
Permita que eu lhe adule a distinção que fere,
As curvas da magreza e o brilho dos adornos!
 
                VIII
Desliza como um astro, um astro que declina,
Tão descansada e firme é que me desvaria,
E tem a lentidão duma corveta fina
Que nobremente vá num mar de calmaria.
 
                IX
Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge,
No bosque das ficções, ó grande flor do Norte!
Ah, ao persegui-la penso acompanhar de longe
O sossegado espectro angélico da Morte!
 
                X
O seu vagar oculta uma elasticidade
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e ataca o meu nervoso.
 
                XI
Porém não arderei aos seus contactos frios,
E não me enroscará nos serpentinos braços.
Receio suportar febrões e calafrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos.
 
                XII
E se uma vez me abrisse o colo transparente,
E me osculasse, enfim, flexível e submissa,
Eu julgaria ouvir alguém, soturnamente,
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça!
 
 
 
DE VERÃO
 
                I
No campo; eu acho nele a musa que me anima:
A claridade, a robustez, a ação.
Esta manhã, saí com minha prima,
Em quem eu noto a mais sincera estima
E a mais completa e séria educação.
 
                II
Criança encantadora! Eu mal esboço o quadro
Da lírica excursão, de intimidade.
Não pinto a velha ermida com seu adro;
Sei só desenho de compasso e esquadro,
Respiro indústria, paz, salubridade.
 
                III
Andam cantando aos bois; vamos cortando as leiras;
E tu dizias: “Fumas? E as fagulhas?
Apaga-o teu cachimbo junto às eiras;
Colhe-me uns brincos rubros nas ginjeiras!
Quanto me alegra a calma das debulhas!”
 
                IV
E perguntavas sobre os últimos inventos
Agrícolas. Que aldeias tão lavadas!
Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!
Olha: os saloios vivos, corpulentos,
Como nos fazem grandes barretadas!
 
                V
Voltemos. Na ribeira abundam as ramagens
Dos olivais escuros. Onde irás?
Regressam os rebanhos das pastagens;
Ondeiam milhos, nuvens e miragens,
E, silencioso, eu fico para trás.
 
                VI
Numa colina azul brilha um lugar caiado.
Belo! E arrimada ao cabo da sombrinha,
Como teu chapéu de palha desabado,
Tu continuas na azinhaga; ao lado
Verdeja, vicejante, a nossa vinha.
 
                VII
Nisto, parando, como alguém que se analisa,
Sem desprender do chão teus olhos castos,
Tu começastes, harmônica, indecisa,
A arregaçar a chita, alegre e lisa
Da tua cauda um poucochinho a rastos.
 
                VIII
Espreitam-te, por cima, as frestas dos celeiros;
O Sol abrasa as terras já ceifadas,
E alvejam-te, na sombra dos pinheiros,
Sobre os teus pés decentes, verdadeiros,
As saias curtas, frescas, engomadas.
 
                IX
E, como quem saltasse, extravagantemente,
Em rego de água sem se enxovalhar,
Tu, a austera, a gentil, a inteligente,
Depois de bem composta, deste à frente
Uma pernada cômica, vulgar!
 
                X
Exótica! E cheguei-me ao pé de ti. Que vejo!
No atalho enxuto, e branco das espigas
Caídas das carradas no salmejo,
Esguio e a negrejar em um cortejo,
Destaca-se um carreiro de formigas.
 
                XI
Elas, em sociedade, espertas, diligentes,
Na natureza trêmula de sede,
Arrastam bichos, uvas e sementes;
E atulham, por instinto, previdentes,
Seu antros quase ocultos na parede.
 
                XII
E eu desatei a rir como qualquer macaco!
“Tudo não as esmagares contra o solo!”
E ria-me, eu ocioso, inútil, fraco,
Eu de jasmim na casa do casaco
E de óculo deitado a tiracolo!
 
                XIII
“As ladras da colheita! Eu se trouxesse agora
Um sublimado corrosivo, uns pós
De solimão, eu, sem maior demora,
Envenená-las-ia! Tu por ora,
Preferes o romântico ao feroz.
 
                XIV
Que compaixão! Julgava até que matarias
Esses insetos importunos! Basta.
Merecem-te espantosas simpatias?
Eu felicito suas senhorias,
Que honraste com um pulo de ginasta!”
 
                XV
E enfim calei-me. Os teus cabelos muito louros
Luziam, com doçura, honestamente;
De longe o trigo em monte, e os calcadouros,
Lembravam-me fusões de imensos ouros,
E o mar um prado verde e florescente.
 
                XVI
Vibravam, na campina, as chocas da mana;
Vinham uns carros a gemer no outeiro,
E finalmente, enérgica, zangada,
Tu inda assim bastante envergonhada,
Volveste-me, apontando o formigueiro:
 
                XVII
“Não me incomode, não, com ditos detestáveis!
Não seja simplesmente um zombador!
Estas mineiras negras, incansáveis,
São mais economistas, mais notáveis,
E mais trabalhadoras que o senhor.”
 
 
 
O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL
A Guerra Junqueiro
                I — AVE-MARIAS
 
Nas nossas ruas, ao noitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
 
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
 
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, no mundo!
 
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
 
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
 
E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
 
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
 
Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
 
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
 
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
 
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infeção!
 
                II — NOITE FECHADA
 
Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!
 
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
 
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
 
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
 
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções retas, iguais, crescidas,
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
 
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
 
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
 
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
 
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Ao lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
 
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
 
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
 
                III — AO GÁS
 
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
 
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
 
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
 
Num cuteleiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
 
E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confeções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
 
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!
 
Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
 
E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, as duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.
 
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
 
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros,como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tomam-se mausoléus as armações fulgentes.
 
“Dó da miséria!... Compaixão de mim!...”
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim?
 
                IV — HORAS MORTAS
 
O teto fundo de oxigênio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-se a quimera azul de transmigrar.
 
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
 
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
 
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
 
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
 
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nômadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
 
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.
 
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
 
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
 
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, os imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
 
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
 
 
 
EM PETIZ
 
                I — DE TARDE
 
Mais morta do que viva, a minha companheira
Nem força teve em si para soltar um grito;
E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!
 
Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas,
Desciam mais atrás, malhadas e turinas.
 
Do seio do lugar – casitas com postigos –
Vem-nos o leite. Mas batizam-no primeiro.
Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,
Cujo pregão vos tira ao vosso sono, amigos!
 
Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:
Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!
E os fartos animais, ao recolher dos pastos,
Roçavam pelo teu “costume de percale”.
 
Já não receias tu essa vaquita preta,
Que eu seguirei, prendi por um chavelho? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!
 
                II — IRMÃOZINHOS
 
Pois eu, que no deserto dos caminhos,
Por ti me expunha imenso, contra as vacas;
Eu, que apartava as mansas das velhacas,
Fugia com terror dos pobrezinhos!
 
Vejo-os no pátio, ainda! Ainda os ouço!
Os velhos, que nos rezam padre-nossos;
Os mandriões que rosnam, altos, grossos;
E os cegos que se apoiam sobre o moço.
 
Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros,
Os que a poeira no suor mascarra,
Chegam das feiras a tocar guitarra,
Rolam os olhos como dois escarros!
 
E os pobres metem medo! Os de marmita,
Para forrar, por ano, alguns patacos,
Entrapam-se nas mantas com buracos,
Choramingando, a voz rachada, aflita.
 
Outros pedincham pelas cinco chagas;
E no poial, tirando as ligaduras,
Mostram as pernas pútridas, maduras,
Com que se arrastam pelas azinhagas!
 
Querem viver! E picam-se nos cardos;
Correm as vilas; sobem os outeiros;
E às horas de calor, nos esterqueiros,
De roda deles zumbem os moscardos.
 
Aos sábados, os monstros, que eu lamento,
Batiam ao portão com seus cajados;
E um aleijado com os pés quadrados,
Pedia-nos de cima de um jumento.
 
O resmungão! Que barbas! Que sacolas!
Cheirava a migas, a bafio, a arrotos;
Dormia as noutes por telheiros rotos,
E sustentava o burro a pão de esmolas.
 
                *
 
Ó minha loura e doce como um bolo!
Afável hóspeda na nossa casa,
Logo que a tórrida cidade abrasa,
Como um enorme forno de tijolo!
 
Tu visitavas, esmoler, garrida,
Umas crianças num casal queimado;
E eu, pela estrada, espicaçava o gado,
Numa atitude esperta e decidida.
 
Por lobisomens, por papões, por bruxas,
Nunca sofremos o menor receio.
Terríveis, vós, porém, o meu asseio,
Mendigazitas sórdidas, gorduchas!
 
Vícios, sezões, epidemias, furtos,
Decerto, fermentavam entre lixos;
Que podridão cobria aqueles bichos!
E que luar nos teus fatinhos curtos!
 
                *
 
Sei de uma pobre, apenas, sem desleixos,
Ruça, descalça, a trote nos atalhos,
E que lavava o corpo e os seus retalhos
No rio, ao pé dos choupos e dos freixos,
 
E a doida a quem chamavam a “Ratada”
E que falava só! Que antipatia!
E se com ela a malta contendia,
Quanta indecência! Quanta palavrada!
 
Uns operários, nestes descampados,
Também surdiam, de chapéu de coco,
Dizendo-se, de olhar rebelde e louco,
Artistas despedidos, desgraçados.
 
Muitos! E um bêbado — o Camões — que fora
Rico, e morreu a mendigar, zarolho,
Com uma pala verde sobre um olho!
Tivera ovelhas, bois, mulher, lavoura.
 
E o resto? Bandos de selvagenzinhos:
Um nu que se gabava de maroto;
Um, que cortada a mão, coçava o coto,
E os bons que nos tratavam por padrinhos.
 
Pediam fatos, botas, cobertores!
Outro jogava bem o pau, e vinha
Chorar, humilde, junto da cozinha!
“Cinco-réizinhos!... Nobres benfeitores!...”
 
E quando alguns ficavam nos palheiros,
E de manhã catavam os piolhos:
Enquanto o sol batia nos restolhos
E os nossos cães ladravam, rezingueiros!
 
Hoje entristeço. Lembro-me dos coxos,
Dos surdos, dos manhosos, dos manetas.
Sulcavam as calçadas, as muletas;
Cantavam, no pomar, os pintarroxos!
 
                III — HISTÓRIAS
 
Cismático, doente, azedo, apoquentado,
Eu agourava o crime, as facas, a enxovia,
Assim que um besuntão dos tais se apercebia
Da minha blusa azul e branca, de riscado.
 
Mináveis-me, ao serão, a cabecita loura.
Com contos de província, ingênuas criaditas:
Quadrilhas assaltando as quintas mais bonitas,
E pondo a gente fina, em postas, de salmoura!
 
Na noite velha, a mim, como tições ardendo,
Fitavam-me os olhões pesados das ciganas;
Deitavam-nos o fogo aos prédios e arribanas;
Cercava-me um incêndio ensanguentado, horrendo.
 
E eu que era um cavalão, eu que fazia pinos,
Eu que jogava a pedra, eu que corria tanto;
Sonhava que os ladrões — homens de quem me espanto —
Roubavam para azeite a carne dos meninos!
 
E protegia-te eu, naquele outono brando,
Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas,
Gritos de maiorais, mugidos de boiadas,
Branca de susto, meiga e míope, estacando!