Convento 1
Nota é a da primeira versão. Algumas das
referências ainda podem ser melhoradas (letristas e compositores devem ser
confirmados, nomes e datas de álbuns, etc.). A pouco e pouco irei acrescentando
esses dados (para o que peço, é claro, a colaboração dos autores das análises
ou de outros colegas).
Francisco
R.
Francisco R. (Bom(-)) ||
«Cubanita» (Almir Sater / Almir Sater), 7
sinais, 2006 // José Saramago,
Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 54-57,
353-357
A canção do compositor-cantor Almir Sater
“Cubanita” tem semelhanças com a relação de Baltasar e Blimunda, em especial no
dia em que se conheceram e na procura por Blimunda após o desaparecimento de
Baltasar. O sujeito poético fala de como se apaixona pela mulher que ama, o que
acontece também em Memorial do Convento. No
entanto, enquanto a paixão à primeira vista ocorre tanto na música como no
romance, na música o que se sucede após a primeira noite juntos não é similar
com o que acontece na obra de José Saramago. Na primeira estrofe da música há
muitos pontos em comum com o romance, mas nas três seguintes isso já não
acontece.
Tanto na música de Almir Sater (em especial, na
primeira estrofe) como no capítulo V de Memorial
do Convento, um casal conhece-se de uma forma “que foi amor à primeira
vista”. Uma simples pergunta feita por Blimunda a Baltasar que muda tudo: “Que
nome é o seu” (p. 54). Tal como está afirmado na música, o casal “fez amor” e,
“quando amanheceu”, Baltasar reparou na cor dos olhos de Blimunda, tendo ficado
extasiado com a sua beleza: “cinzentos àquela hora” (p. 57).
Porém, o desfecho do que sucede a seguir na
composição de Almir Sater é precisamente o contrário do que acontece no
romance: após o amanhecer, “você fugiu”, ao contrário do que acontece com
Baltasar e Blimunda, que, ao amanhecer ainda se encontram na cama com Blimunda,
relativamente a Baltasar, “ao seu lado, a comer pão” (p. 57). O sujeito poético
na música anda à procura da mulher por quem se apaixonou e, no romance de José
Saramago, como se lê mais á frente, é a mulher do casal que procura o homem,
após o seu desaparecimento.
Na canção há indicações acerca de onde anda a
mulher que e o “eu” procura (“vem gente e diz que te viu casada com
economista”). Já no Memorial,
Blimunda procura Baltasar sem quaisquer pistas, “durante nove anos” (p. 353),
apenas pelo amor e a fé que tem em encontra-lo, o que também acontece devido ao
grande número de anos que estiveram juntos.
Esta canção pode servir como contraste entre
relações que começam com amor “à primeira vista” mas que acabam por ter um
desenvolvimento diferente em todo o seu percurso. A relação de Baltasar e
Blimunda dura vários anos sempre com a mesma intensidade que os uniu. Já em
relação do sujeito poético da música só há amor de verdade por parte de um
elemento do casal, o que se pode concluir pela fuga do outro membro. Mesmo após
a fuga o sujeito poético pensa nela, esteja ela “onde estiver”, pois “será
sempre não só” para ele mas para todos “uma linda mulher”, e termina a canção
dizendo que a aceita de volta mesmo depois de ela ter fugido. Blimunda, devido
à sua persistência, acaba por encontrar Baltasar num auto-de-fé onde este
morre; este final é mais trágico que o da canção pois o amor foi mais real.
Guilherme
Guilherme I (Bom+/Muito Bom-) || «Brighter Than
A Thousand Suns» (Adrian Smith, Steve Harris,
Bruce Dickinson/Iron Maiden),
A Matter of Life and Death, 2006 // José Saramago, Memorial do Convento, 17.ª
edição, Lisboa, Caminho, 1982, pp. 239-277
Na terceira faixa
do seu décimo-quarto álbum, a banda de metal britânica Iron Maiden apresenta-nos “Brighter Than A Thousand Suns” – uma
composição de aproximadamente nove minutos que, quer pelo estilo epopeico, quer
pelo tom de crítica adoptado, se aproxima da “Epopeia da Pedra” narrada no
Capítulo XIX da obra Memorial do Convento
de José Saramago.
Na letra escrita
por Adrian Smith, Steve Harris e Bruce Dickinson, o sujeito poético, num tom
claramente declarativo, descreve a humanidade como sendo uma mártir
desfavorecida, que, por vontade suprema de Deus, não regulado pela moral humana,
está predestinada à miséria imutável, da qual resultará a sua destruição- “We
are not the sons of god/We are not his chosen people now/ We have crossed the
path he trod/We will feel the pain of his beginning” e “Bury your morals/And
bury your dead/Bury your head in the sand”, o que em português significa,
respectivamente “Nós não somos os filhos de Deus/ Não somos mais os seus
escolhidos/ Atravessaremos o caminho por Ele traçado/ Sentiremos a dor da sua
criação” e “Enterrem a vossa moral/Enterrem os vossos mortos/Enterrem as vossas
cabeças na areia”. Analogamente, o narrador saramaguiano descreve o povo como
aqueles que, pela construção do convento prometida por D. João V e pela sua
megalomania e falta de consideração pelo povo, características provenientes do
seu poder absoluto quase divino, alvo de ironia e de critica por parte do
narrador em grande parte da obra, são sacrificados, humilhados e em caso
extremo, como a personagem Francisco Marques, mortos (“seiscentos homens que
eram seiscentos medos de ser (…) e tudo por causa uma pedra que não precisaria
ser tão grande”; “Deve-se a construção do Convento de Mafra ao rei D. João V,
um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não
fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam” e
“Distraiu-se talvez Francisco Marques, (…) fugiu-lhe o calço da mão no preciso
momento em que a plataforma deslizava, não se sabe como foi, apenas que o corpo
está debaixo do carro, esmagado” – p. 257 e p. 259).
Em ambas as epopeias
também existe uma elevação da humanidade, de uma forma geral, em “Brighter Than
A Thousand Suns”, e de uma forma mais específica, no romance de Saramago – o
povo –, como trabalhadora/determinada – através da exclamação “How we made god
with our hands!”, em português, ”Como criamos Deus com as nossas mãos!”, na
letra de Iron Maiden, e na obra
saramaguiana com a passagem: “Êeeeeeiii-ô, Êeeeeeiii-ô, Êeeeeeiii-ôô, todo o
mundo puxa com entusiasmo,homens bois, pena é que não esteja D. João V no alto
da subida, não há povo que puxe melhor que este.” (p. 248) – e detentora uma
natureza trágica, como já antes mencionado.
O grande
objetivo presente, tanto na música da banda britânica, como no capítulo XIX,
ou melhor dizendo, em toda a obra de Saramago, é libertar o ser humano do
anonimato, através da narrativa dos seus feitos e do seu trágico mas glorioso
fim. “All nations are rising/ Through veils of love and hate”, ”Todas as nações
erguem-se/ Através de véus de amor e ódio” e “já que não podemos falar-lhes as
vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa
obrigação”.
Inês C.
Inês C. (Muito Bom-) ||
“Resistance” (Muse/Matthew Bellamy), Resistance, 2009 // José Saramago,
Memorial do Convento, 1ª edição, Linda-a-Velha, Biblioteca Visão, 2000, pp.
131-146
A música “Resistance”, dos Muse, permite-nos
criar um paralelismo entre a construção da passarola, e os riscos que advêm do
desenvolvimento desta futurista máquina, e o amor entre Blimunda e Baltasar. Ao
longo da narrativa, não só somos confrontados com o amor verdadeiro e puro que
une Sete-Sóis e Sete-Luas, como também vamos conhecendo todas as peripécias e
dificuldades por que passaram para construírem a máquina voadora. Contudo, para
além dos riscos inerentes à construção da própria passarola, existe um perigo
maior: a Inquisição.
Tanto na música dos Muse como em Memorial do
Convento, conseguimos depreender um clima de ansiedade perante uma força da
autoridade. Na primeira, o sujeito poético questiona-se sobre se está a salvo,
para além de revelar uma forte dúvida existencial (“It could be wrong / could
be wrong”, “Isto pode estar errado / pode estar errado”). Esta mesma dúvida
pode ser aplicada ao padre Bartolomeu, que se vai apresentando cada vez mais
arrependido por ter decidido tornar real a sua invenção, que, no início, se lhe
apresentara tão correta e promissora (“But it should've been right”, “Mas
devia estar certo”).
Quando a passarola fica concluída, ficaram
Baltasar e Blimunda a conhecer os receios do padre que, “[tornando-se] mais
pálido, olhou em redor” (p. 131), como se se questionasse se “[estava] fora de
vista” (“Are we out of sight?”), e, “agitado”, “[respondeu] em voz baixa” (p.
135): “Santo Ofício”. Desta forma, é apresentada ao leitor a razão pela qual o
padre andava ansioso, com “a cara branca, os olhos pisados” e diz-se-nos por
que motivo “nem ficou contente” (p. 132) por saber que a sua invenção estava preparada
para ser experimentada.
Os acontecimentos precipitam-se e, de repente,
parece que “todo o mundo desabará” (“Will our world come tumbling down?”),
sendo o padre oficialmente perseguido pela Inquisição. Passa a existir um
sentido de premência e necessidade de agir rápido (“Não sei, o que é preciso é
fugir daqui”, p.136), também presente na letra escrita por Matt Bellamy, onde a
repetição e o questionamento inicial revelam uma certa precipitação e a
obrigação implícita de encontrar um sítio seguro para ficar. Ao contrário dos
protagonistas de “Resistance”, os do romance de Saramago têm um forma de fugir,
a viagem na passarola.
Questionando-se sempre sobre se “os [seus]
segredos [estavam] seguros” (“Is our secret safe tonight?”), Bartolomeu já nem
confiava plenamente nos seus amigos, receando que o denunciassem (“e com o que
acabo de dizer estou nas mãos de ambos e perdido estarei se me forem
denunciar”) (p. 135). Contudo, ambos confirmaram que “[conseguiam] guardar
segredo” (“We can hide the truth inside”), foi neles que o padre confiou para
fugir e na sua passarola que tentou voar para longe da Inquisição.
O padre, sempre possuído por um medo “lívido,
cor de cinza”, consumido pela ideia do pecado e pelo medo do Santo Ofício,
deixou-se abater. Mesmo o sucesso da passarola não o alegrou o suficiente pois,
considerando que tudo “[estava] fora de controlo” (“This is out of control”),
decidiu que o melhor seria “apagar tudo rapidamente” (“Must erase it fast”),
tentando, “com um ramo inflamado”, “[pegar] fogo à máquina” (p. 145). Não foi
bem sucedido, pelo que, não conseguindo “apagar” a máquina, decidiu “apagar-se”
a si mesmo (“Foi-se embora, não o tornaremos a ver”) (p. 145).
O padre e o controlo da situação desapareceram,
mas o amor entre Baltasar e Blimunda continuou a existir. Este amor
apresenta-se como a sua “resistência” perante as adversidades do dia a dia
(“Love is our resistance”). Desta forma, ao mesmo tempo que Bartolomeu Lourenço
se afasta do grupo e foge da Inquisição, Sete-Sóis e Sete-Luas tentam estar
sempre juntos, até que são separados pelo infortúnio. E, mesmo no fim, nove
anos depois de intensa busca por parte de Blimunda (“[She'll] wait a thousand
years”), acabam por ficar com as vontades “para sempre juntas” (“must always be
sealed”), numa demonstração do amor utópico que une este par.
Beatriz
Beatriz (Bom) || «O
lugar» (Tiago Bettencourt / Tiago Bettencourt), O jardim, 2007 // José Saramago, Memorial do Convento, 40ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp.
275-284
“Desde que a máquina voadora descera no Monte
Junto, contavam-se por seis, ou eram sete, as vezes que Baltasar sete-sóis
metera os pés ao caminho” e, desde aí, jamais descurou o seu trato. Tal como
acontece em “O lugar”, o sujeito poético demonstra ter como projeto a
recuperação do “espaço que o medo não matou”, da esperança - procura manter
acesa a sua felicidade - e assume uma posição: perante as dificuldades impostas
pelo decorrer natural dos acontecimentos, ele não desiste e acredita que é
possível: “onde tudo”, aparentemente “morre tudo pode renascer”.
Nestas páginas de Memorial, as vontades e a máquina não vão ser deixadas ao abandono,
existe uma preocupação rotineira com a estrutura, não só pelo facto de quererem
mantê-la, mas também como prova de amizade pelo seu grande impulsionador,
Bartolomeu de Gusmão. Chegados, tudo parecia uma “triste ruína”, o que
apresenta equivalência à noite em que se encontra o eu lírico da canção de
Tiago Bettencourt (“Já é noite e a sombra/Está em tudo o que se vê”). Se
tivessem abandonado a passarola, nem o esqueleto da máquina se poderia
encontrar, o que ali estaria eram “os ossos de um pássaro morto”.
Estas
idas e vindas à serra acontecem após o primeiro voo de Sete-sóis. Inicia uma
aventura de manutenção da máquina que pelas próprias mãos construiu, pois por
tudo o que é nosso temos sempre mais apreço. Voar é a experiência que anseia
repetir, tem esperança de que um dia nele acreditem e que possa voar sem
recear. Tal como o sujeito poético da canção, tem a esperança de que tudo
melhore; o eu poético tem esperança de se reconciliar, afirmando com convicção
que “E é em ti que vou ficar”, e Baltasar tem o sonho de viver, voando com o seu
amor eterno, sem os grilhões da inquisição.
Um outro ponto interessante de comparação entre
a obra literária e a canção de Tiago Bettencourt é a focalização geral no
estabelecimento e manutenção de uma relação amorosa: Blimunda está para
Baltasar, assim como o motivo da noite e da esperança está para o sujeito
poético, ambos lutam pelo amor da sua vida e querem ficar com ele para sempre.
A renovação da passarola é muito anterior ao final trágico e inesperado do
romance. Baltasar, Blimunda e todas as personagens intervenientes na ação
desconhecem o seu destino final, o certo é que, assim como na canção, também
Baltasar fica em Blimunda.
A esperança de que “Onde tudo morre tudo” possa
“renascer” é uma ponte perfeita entre a letra da música e a relação do casal
com a máquina. Para que tudo possa renascer é necessário levar Blimunda
consigo, juntos conseguem ativar a máquina - ”mas hoje
Blimunda diz-lhe, em três anos é a primeira vez, vou também”.
A máquina é uma fonte de problemas, desde
difíceis viagens até à necessidade de esconder a verdade. A resolução dos
problemas inicia-se em casa, quando Sete-sóis conta o segredo numa confissão ao
pai. (“Eu já desvendei o mundo e o tempo de perder/Aqui tudo é mais forte e há
mais cor no céu maior”). Revela tudo e, de um momento para o outro, o velho
João Francisco sabe de tudo (“Eu voei, pai, Filho, eu acredito”), sabe agora
qual é a causa de tantas viagens, de estranhas aparições, (“já é dia e a
luz/Está em tudo o que se vê”). Esta luz, luz de verdade, revela-se a João
Francisco e, também, ao eu lírico da canção. O eu lírico está, finalmente, bem,
reencontrou-se com a felicidade; e o velho, o resistente velho, que teimava
querer saber tudo o que lhe era devido antes de morrer (pobre morte, “que lhe
andava a rondar a porta” e que “ dava um passo para entrar” e “arrependia-se”).
Depois de feita a revelação ao pai e arranjada a passarola, é tempo de
Blimunda. Encontra nela a pacificação e as vivências de anos partilhados e quer
e permanece desde o primeiro momento nela (“Arrastando para o teu lugar/E é em
ti que vou ficar”).
Tomi
Tomi (Bom(-)) || “Que
força é essa?” (Sérgio Godinho/ Sérgio Godinho), Os sobreviventes, 1971 // José Saramago, Memorial do Convento, 42ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp.
220-225
A ação principal em Memorial do Convento é a construção do Convento de Mafra. José
Saramago utiliza este tema para refletir, principalmente, sobre a magnificência
do reinado de D. João V, o seu poder
absoluto e a vida faustosa da aristocracia e clero, que se contrapõe ao
sacrifício e ao sofrimento do povo que nele trabalhou, e que, em alguns casos,
teve de pagar com a própria vida, para levar a cabo a construção do colossal
empreendimento, pagamento afinal, de uma promessa ao divino em troca de prole
real.
Esta obra literária, ao descrever a construção
do Convento de Mafra caracteriza uma época da história de Portugal em que
existam grandes excessos devido à riqueza vinda das colónias e grandes
diferenças sociais, que se mantinham na altura em que Sérgio Godinho lança o
seu primeiro álbum Os sobreviventes,
cuja primeira canção seria “Que força é essa”. Essas diferenças sociais
evidenciadas tanto no trecho de Memorial
como no poema de Sérgio Godinho seriam opulência/miséria; poder/opressão;
corrupção/penitência.
Apesar de ambos os autores apresentarem uma
posição crítica contra a exploração e a extrema pobreza do povo, em Memorial do Convento o principal alvo de
crítica é a vaidade de D.João V, enquanto que em “Que força é essa” o foco é a
opressão durante o regime do Estado Novo.
Na música de Godinho o povo é, de alguma forma
forçado a trabalhar durante vários períodos de tempo (“Vi-te a trabalhar o dia
inteiro”) e um dos trabalhos mais exigentes que os explorados teriam de
executar era o carregamento de pedras. Podemos observar também este facto na
narração feita do andamento das obras do convento (“Desde que o sol nasce até
que se põe, Baltasar e com ele, quantos mais, setecentos, mil, mil e duzentos
homens, carregam os carros com terra e pedras”, p. 223).
No poema de Sérgio Godinho, o sujeito poético
insinua ainda as más condições em que os trabalhadores viviam “quando os dias
se tornam azedos”. No episódio de Memorial
de Convento, o narrador também faz alusão à dura situação em que o povo se
encontrava, sendo todos os homens válidos obrigados a trabalhar na construção
do convento (“Nestas grandes barracas de madeira dormem os homens, não comporta
cada uma menos de duzentos, e, aqui onde está, não pode Baltasar contar os
barracões todos, chegou a cinquenta e sete e perdeu-se”, p. 220). Eram homens
“sujos” pois trabalhavam sem descanso em quaisquer condições (“Quando a chuva
se afasta ou se tornou aturável, voltam os homens e tudo recomeça, carregar e
descarregar, puxar e empurrar, arrastar e levantar”, p. 225).
Como já referi anteriormente, tanto na letra de
Sérgio Godinho como no trecho do capítulo XVII do Memorial se testemunha a dureza a que o povo está sujeito e ainda a
exploração a que é submetido. Porém enquanto que na obra de José Saramago o
povo abandona as suas casas e famílias para erigir o Convento de Mafra, na
canção o povo tem como função “Construir as cidades pr’os outros”, sendo “os
outros” a classe endinheirada,
proprietária e dominante, também
em contraponto com as classes dominantes
na época, aristocracia, burguesia e clero.
Ângela
Ângela (Suficiente-) || “I
Believe i can fly” (Robert Kelly/Robert Kelly), R.
, 1996 // José Saramago, Memorial
do convento, 30.ª edição, Lisboa, Caminho,1984, pp. 197-199
Na canção “I believe i can fly” encontramos alguns
pontos de semelhança com a narrativa da viagem na passarola no Memorial. O padre Bartolomeu Lourenço é
uma personagem peculiar que vive com a obsessão de construir uma máquina
voadora. Ao longo da narrativa, sabemos de tentativas falhadas, como a do balão
que ardeu, mas nunca vemos o padre a desistir do seu sonho (“Spread my wings
and fly away”). Ele vai até ao fim, contra tudo o que possam dizer sobre ele, e
continua a lutar pelo seu sonho.
Junta-se-lhe Baltasar Sete-Sóis e Blimunda:
Bartolomeu Lourenço não se preocupa que Sete-Sóis seja maneta e que Blimunda
“veja por dentro”, o que não seria bem visto aos olhos da inquisição. São eles as
pessoas que faltavam para o sonho do Padre se concretizar. Baltasar tratava da
mão-de-obra da máquina e Blimunda tratava de recolher as vontades — eram
necessárias duas mil vontades para pôr a máquina a voar. O padre Bartolomeu
Lourenço estava tão obcecado (pensando apenas em concretizar o seu sonho — “I
think about it every night and day”) que recolher todas aquelas vontades fez
Blimunda adoecer. O que salvou Blimunda foi a música de Domenico Scarlatti, o
quarto elemento que se juntou aos outros três para que a verdadeira ascensão
fosse possível.
Eram quatro horas da tarde quando Baltasar,
Blimunda e o padre Bartolomeu Lourenço dão asas ao seu projecto e, finalmente, põem
a máquina a voar (“I can fly”). Na canção insinua-se termos como acreditar nos
nossos sonhos e lutar por eles. Para este padre e para nós, o “abrir as asas e voar”
é fazer-nos sentir livres e em paz. Baltasar e Blimunda encontravam-se com ar
de assustados assim que a máquina estremeceu, mas não tinham medo, enquanto o
padre Bartolomeu ria e dava gritos. Deslumbrados pela luz e o vento abraçaram-se
e quem sabe “aonde iremos parar, talvez ao sol” (p. 199).
Depois de ter conseguido concretizar o seu sonho,
o Padre Bartolomeu Lourenço, fugiu, enlouquecido, e Blimunda e Baltasar nunca
mais tiveram notícias dele. Até que, um dia, Domenico Scarlatti lhes deu a
notícia da sua morte, aos 38 anos, em Toledo. Tal como diz a letra da música, o
padre Bartolomeu lutou até ao fim pelo seu sonho e conseguiu voar.
Sempi
Sempi (Bom(-)) || “Breathe into me” (Red/Red), End of Silence, 2006// José Saramago, Memorial do Convento, 40.ª edição, Lisboa,Caminho, 2006, pp 369-373
Ao longo do
romance Memorial do Convento, o amor
entre Blimunda e Baltasar surge como uma das linhas principais da narrativa.
Sete-Luas e Sete-sóis partilhavam um amor forjado numa chama, de origem
instantânea e duradoura. Tudo começou quando, num auto-de-fé, Sebastiana, mãe
de Blimunda, que seria posteriormente deportada, envia um pensamento para a
filha, interrogando-a sobre quem seria o homem atrás dela. Seguindo o caminho
que a sua mãe abriu, Blimunda acaba por lhe perguntar o nome, e este,
reconhecendo-lhe o direito a perguntar, respondeu-lhe: “Baltasar”. Neste
primeiro dia da relação, acabaram em casa da Sete-Luas, onde consumaram o seu
recente amor, como tantas vezes fariam. Ao longo do romance, são-nos descritas
muitas mais situações em que se torna evidente que o amor que une este casal é
verdadeiro e puro.
A ligação entre
Sete-Luas e Sete-Sóis era de tal modo íntima e forte, que, quando Baltasar foi
dado por desaparecido, a companheira deixou tudo para trás para o ir procurar,
de forma a reencontrar a sua alma gémea. Nesta jornada, que nos é descrita no
último capítulo, podemos confirmar que os nove anos em que as luas ficaram sem
os seus sóis, e vice versa, foram árduos e extremamente dolorosos, para
qualquer um deles. Blimunda percorreu “caminhos do pó e de lama”, enfrentou
frequentemente “a geada rangente e assassina”, e resistiu implacavelmente à
morte “porque ainda não queria morrer”. Percorreu Portugal inteiro e partes de
Espanha, perguntando a com quem se cruzasse, se vira o homem que procurava,
quem que lhe era tão familiar quanto as palmas das suas mãos.
Esta busca
incansável indicia que Blimunda não conseguia aceitar a morte do seu esposo,
“ainda precisando dele” (“I still need you”), causando-lhe a sua ausência uma
dor inimaginavelmente profunda e constante, “sendo assim que se estilhaça”
(“This is how I break apart”) parte de Sete-Luas. Podemos assim supor que
Blimunda “acaba assim por se perder” (“And this is how i lose myself”) na dor e
no vazio que se foi apoderando dela, sem Baltasar Sete-Sóis a iluminá-la.
Só passados
nove anos é que o encontrou Blimunda, “[vinda] do sul, dos lados de pegões”, a
arder numa fogueira.“Um homem sem a mão esquerda”, com a cara aparentemente
mais nova devido à cinza que deixava a sua barba negra, era sem dúvida o seu
Baltasar. Quebrando a sua promessa, Blimunda faz o que nunca pensou fazer: ver
Baltasar por dentro com o seu dom, que tantas vezes usara para recolher as
incontáveis vontades. No centro de Baltasar estava a nuvem fechada, a sua
vontade, que Blimunda recolheu, visto que esta lhe pertencia. Podemos pensar
que Blimunda recolheu a vontade do amado, a essência do ser do seu amado,
acabando este por “respirar a sua vida nela (breathe your life in to me)”.
Desta forma, Blimunda acabou por “conseguir senti-lo” (“I can feel you”),
fazendo Sete-Sóis de novo parte dela e, desta vez, para sempre.
É com esta
conclusão que José Saramago deixa os dois companheiros de uma vida,
representantes de um amor utópico, verdadeiramente reunidos, após uma trágica e
dolorosa separação.
Rui
Rui (Bom-) || “Vagalumes”
(Pollo), ?, 2012 // José Saramago, Memorial
do Convento, versão e-book, pp. 183-194
Escolhi a música “Vagalumes”, um êxito do
artista brasileiro Pollo. Ao tentar encontrar uma letra para relacionar com a
obra, facilmente escolhi esta, não só por se conseguir estabelecer uma reação
com o trecho que escolhi mas também por conseguir estabelecer uma comparação
com a história do memorial em geral.
Tal como na obra de Saramago, em “Vagalumes”
temos uma história romântica entre o autor e outra personagem que lembra um
pouco a história de Baltasar e Blimunda. Em ambos os casos temos um homem
apaixonado que é capaz de fazer o possível e o impossível só para ver o seu par
romântico feliz (“Eu só quero amar você, e quando amanhecer quero acordar … do
seu lado”).´
A parte da obra que escolhi para relacionar com
a música é uma sequência de acontecimentos posterior à integração de Scarlatti
no projeto da passarola, é na altura da epidemia da cólera e da febre-amarela
em Lisboa. Está a ser construída a passarola na quinta em São Sebastião da
Pedreira.
O Padre Bartolomeu Lourenço tinha então uma
“equipa” preparada e a tratar do seu sonho de voar. Esta equipa era constituída
pelo próprio, por Baltasar Sete-Sóis, por Blimunda Sete-Luas e pelo último e
recente membro, Domenico Scarlatti. A Blimunda cabia a tarefa de recolher as
vontades para que a máquina pudesse voar e é aqui que se estabelece uma maior
semelhança com a canção.
Na canção, o autor “v[ai] caçar mais de um
milhão de vagalumes por aí” (vagalumes são pirilampos) e vai “colorir o céu de
outra cor só para [a] ver sorrir”. Ao longo de toda a letra vemos uma busca
determinada da felicidade (“teu sonho impossível vai ser realidade”) que se
pode comparar à determinação, tanto de Baltasar como de Blimunda (que vai
“caçar” as vontades) em terminarem a passarola e concretizar o sonho de voar do
Padre Bartolomeu. Blimunda fica doente mas, mesmo assim, consegue ter força
para recolher as duas mil vontades necessárias e terminar o projeto que
começaram.
Em suma, ao analisar a canção em contraste com a
obra de Saramago, conclui-se que há toda uma relação entre a temática romântica
dos dois textos e também na busca do pretendido (os vagalumes e as vontades).
Inês P.
Inês
P. (Bom+) || “The Dirt Whispered” (Rise Against), Appel to Reason, 2008 // José Saramago, Memorial do Convento, 20.ª edição, Lisboa, Caminho, 1990, pp. 14,
279
A construção do convento de Mafra é uma das
principais linhas de enredo do Memorial
do Convento. É fruto de uma promessa que D. João V faz a frei António de S.
José, por intermédio de D. Nuno da Cunha – bispo inquisidor –, de modo a
aumentar as suas possibilidades de originar descendência (inexistente até
então).
No trecho “Retiram-se a uma parte D. João V e o
inquisidor, e este diz, Aquele que além está é frei António de S. José, a quem,
falando, lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade por não lhe dar filhos a
rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe
desse sucessão, e ele respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e
então perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras,
porquanto é sabido que filhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me,
palavras enfim muito claras, que se vossa majestade prometesse levantar um
convento na vila de Mafra, Deus lhe daria sucessão (…)” (p. 14) é evidente a
importância da figura de Deus na vida e na mentalidade das pessoas na época.
Contudo, o ideal de “Deus” apresenta-se deveras distorcido, como é provado ao
longo de toda a obra.
O Rei era a figura mais alta na sociedade,
aquela que ouvia a voz de Deus, falada da boca dos clérigos, e a transmitia ao
povo, tornando-se a figura humana mais próxima de Deus no reino. A sua vontade
era absoluta, devendo ser sempre satisfeita.
Na estrutura da sociedade católica, a imagem de
um Deus torna-se quase corrupta com a introdução dos deveres necessários para
atingir o paraíso.
Tal como na obra, também em “The Dirt Whispered”
(“O murmúrio da poeira”), de Rise Against, o conceito de Deus é contestado e
apresentado este como uma entidade gananciosa, que nunca está satisfeita com o
que tem. “Where we danced just to please the gods that only ask for more, so it
goes” (“Onde dançámos para satisfazer os deuses que só querem mais, e assim é”)
pode não se referir ao próprio Deus, mas mais ao papel que o rei toma, quando
refletimos sobre a obra de Saramago.
D. João V é incrivelmente orgulhoso e
ganancioso, caraterísticas que, associadas ao poder que possui e ao ambiente de
prosperidade que se vivia na altura graças ao ouro do Brasil, levam
necessariamente a desejar sempre “danças maiores”.
O momento em que o rei perde o interesse pelo
modelo da Basílica de S. Pedro que possui e decide que é sua “vontade que seja
construída na corte uma igreja como a de S. Pedro de Roma”(p. 279) é o culminar
dos seus desvaneios e da sua busca pela grandiosidade. Ludwig, o arquiteto de
Mafra, sabe que “a um rei nunca se diz não, (…) sabe que uma vida, bem-sucedida
haverá de ser conciliadora, sobretudo por quem viva entre os degraus do altar e
os degraus do trono.” (p.279); porém ele mesmo admite que o rei é “tolo”, que
não sabe o que pede, e não é pela “simples vontade, mesmo real” (p. 279) que se
erguerá algo com as proporções de S. Pedro.
O soberano não se mostra minimamente preocupado
com as implicações dos seus “desejos”, ignorando fatores humanos, materiais e
económicos. Quando o arquiteto o convence de que não é sensato construir algo
dessa magnitude, pois demoraria gerações, D. João decide que amplificar o
convento de Mafra também o satisfaria.
Esta expansão aumenta o trabalho nas obras, mas
com ela veio também o desejo de ver o monumento acabado em data anterior. Os
acidentes tornam-se mais frequentes, as perdas humanas aumentam, assim como o
desespero dos que trabalham contrariados e das famílias dos que foram levados
pela força.
Apesar de estarem a trabalhar numa obra com
propósitos divinos, mais parece que Deus abandonou os trabalhadores, cujo árduo
emprego parece não acabar (“She got down on hands and knees, one ear against
the ground, holding her breath to hear something, but the dirt made not a sound
tonight” [“ela ajoelhou-se com as mãos no chão, sustendo a respiração para
ouvir algo, mas a poeira não fez um som nesta noite”]). O mesmo “Deus” que os
faz trabalhar.
Pedro C.
Pedro C. (Bom/Bom(-)) ||
«Mundo ao Contrário» (Xutos e Pontapés / Xutos e Pontapés), Mundo ao Contrário, 2004 // José
Saramago, Memorial do Convento, 41.ª
edição, Lisboa, Caminho, 2007, pp. 27-33
Tal como Os
Maias de Eça de Queirós fazem uma
ampla crítica à sociedade do século XIX, também aqui Saramago faz muitas
críticas à sociedade do séc. XVIII (em que pode haver um paralelismo com a
atualidade), comentando os defeitos e as hipocrisias existentes.
“Um mundo ao contrário” é uma expressão que se
pode utilizar para descrever o mundo de Memorial
do Convento que, embora se assemelhe bastante à realidade, é descrito de
uma forma mais fria e fazendo reparos às imensas imperfeições da sociedade. Uma
das partes do livro onde se vê um exemplo deste mundo é o terceiro capítulo
(pp. 27-33), onde se descrevem as celebrações carnavalescas de Lisboa e a
posterior quaresma que antecede a Páscoa. Neste capítulo são relatados os
excessos destas festividades que incluem a enorme voracidade dos lisboetas, as
procissões sanguinárias em prol da religião e a visita das mulheres às igrejas.
O capítulo III inicia-se com a descrição de um
dos pecados mortais – a gula, que mata ironicamente os lisboetas de acidentes
apopléticos, contrastando com os que por pouco comerem vão “falecendo mais
facilmente” (p. 27, l. 8), exemplificando assim os contrastes existentes na
sociedade.
“Bem depois, de estar na rua, instalou-se uma
dor por nós dois”, poderia corresponder às dores dos homens que mostram nas
ruas o sangue derramado inutilmente como oferta às mulheres. Só depois se verá a
infeliz situação quando elas mais tarde os traírem quem sabe até, se calhar,
com o homem que se encontrara naquele momento lado a lado com o marido. É assim
que se demonstra a real futilidade das ações humanas, a ingenuidade e a
obediência cega à religião que levam o ser humano a ser nada mais que uma peça
num jogo que não pode controlar.
"Onde vais?" – devem perguntar os
homens que, nesta passagem, veem as mulheres ir às igrejas “contra o uso do
resto do ano, que é tê-las em casa presas” (p. 30 l. 19). E, se na música dos
Xutos e Pontapés há quem não saiba mentir, estas mulheres fazem-no muito bem. É
notória a crítica de Saramago à hipocrisia dos que utilizam a desculpa da
religião para seguir os seus próprios desejos sejam eles quais forem,
evidenciando-se assim a traição e a dissimulada falta de valores. Até mesmo a
rainha que poderia dizer “Dói-me não ir”, pois, por estar grávida, não pode
participar nestes passeios pelas igrejas, não deixa, no entanto, de se fazer
adormecer com sonhos de adultério com o infante D. Francisco. Mais um facto que
realça como todas a personagens são abrangidas por valores distorcidos.
Mas, tal como a música tem como assunto um casal,
também em Memorial do Convento
existem duas personagens principais que formam um casal que, contrastando com a
música, vive unido, feliz e com amor. São estas duas personagens que Saramago
coloca num mundo que, apesar de descrever friamente e cheio de hipocrisia e
traição, é contrariado pelo amor de Baltasar e Blimunda, cujos sentimentos
verdadeiros fazem parecer que são eles que têm os valores ao contrário por
apenas eles superarem a animalidade do mundo em que vivem.
Guilherme Stock
Guilherme
Stock (Suficiente(+)) || “Dare you” (Hardwell ft. Matthew Koma/ Matthew
Koma), Dare you, 2013 // José
Saramago, Memorial do Convento, 53.ª
edição, Lisboa, Caminho, 2013, pp. 59-69
No inicio do romance, o padre Bartolomeu explica
a Baltasar que tinha feito voar um “balão” que saiu pela janela do palácio e
nunca mais foi avistado. Desde esse momento, o padre teve sempre a ideia de voar
e conseguir construir uma máquina que o pudesse levar mais perto do sol, acima
das outras pessoas, em ascensão às estrelas. Ninguém acreditava que era algo possível
de se fazer nem mesmo Baltasar, no início. Até ver a máquina a que o padre
tinha dado de nome Passarola, uma máquina muito bem planeada e desenhada e que ,
pela explicação do padre Bartolomeu, seria capaz de voar. Ao longo do romance,
a Passarola foi construída por Baltasar e sua companheira Blimunda sob ordens do
padre Bartolomeu que, por sua vez, estava a agir sob ordens do rei D. João V e,
ao mesmo tempo, contra a Inquisição.
A letra da música de Hardwell é relacionável com
o livro pois, no romance, o padre Bartolomeu é o único que acredita que a
capacidade de voar pode ser alcançada, uma pessoa no meio dos milhares de
cidadãos (“We’re a million lonely people“) presentes na cidade de Lisboa (“All
together on this needle in the sky”). A igreja acreditava que se alguém
conseguisse voar, seria por artes negras, por magia, por isso teriam medo de
quem voasse (“Afraid of height”). O padre sabia que estava a violar as regras e
a ir contra a igreja católica para provar que não havia magia proveniente
daquela máquina. O sonho de Bartolomeu, voar, era considerado uma actividade
ilegal (“In your dreams were made illegal/By laws of lesser evil”) mas ele quis
realizar o seu sonho (“we call life, but not tonight”). O padre sente-se
desafiado a tentar e sabe que pode falhar mas quer tentar na mesma, sendo isso algo
em que o refrão da música insiste repetidamente (“I dare you”, eu desafio-te).
Na segunda parte e última parte da música,
reforça-se a ideia de ser o especial, aquele que tem um dom de ver as coisas de
outra maneira, quando era criança (“You’re an outline of a vision/That you had
when we were children/Yesterday”) e, que por ter esse dom, tentava coisas novas
e diferentes. Apesar de as ver a falharem, não desistia pois o seu coração era
algo que não lhe permitia desistir pois era a sua crença, a sua religião (“Let
your heart be your religion”) e que o levava a sítios que pessoas normais não
conseguiam percepcionar (“Let it break you out of this prison”, sendo a prisão
referida na música, as ideias das pessoas normais). Paralelamente, no romance,
o padre Bartolomeu sempre foi diferente dos outros pois via que existia uma
certa capacidade de voar, uma coisa que mais ninguém via mas não quando era
criança mas sim uns anos antes da sua ideia da Passarola. Antes dessa ideia,
tinha tentado várias vezes, com outros balões mas os mesmos arderam até que
houve um que voou como ele pretendia e aí teve a certeza de que iria conseguir
criar um balão capaz de o fazer voar bem alto ao ponto de conseguir ver Lisboa
inteira.
Mónica
Mónica (Suficiente(+))
|| “Isto do Amor” (João Pedro Pais/João Pedro Pais) // José Saramago, Memorial
do Convento, 13ª edição, Lisboa, Caminho, 1982, pp. 45-53
Baltasar e Blimunda conheceram-se no auto-de-fé
numa situação horrenda e estranha, quando Maria Sebastiana (mãe de Blimunda)
foi sentenciada ao degredo para Angola por ser considerada bruxa. Blimunda
estava acompanhada do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, não só por este ser
seu amigo como também para lhe dar apoio naquela situação tão difícil por que
estava a passar. E Baltasar foi abordado por Blimunda com a simples pergunta:
“Que nome é o seu” (p. 49), a que Baltasar respondeu (assim reconhecendo o
direito de esta mulher lhe fazer perguntas): Baltasar Mateus! Também me chamam
Sete-Sóis” (p. 49). A história de amor de ambos começou assim com estas simples
perguntas. E, por isso, escolhi a canção “Isto do Amor”, de João Pedro Pais,
para caracterizar o capítulo quinto do romance de José Saramago.
Blimunda disse: “Ali vai minha mãe”. Nenhum
suspiro, lágrima nenhuma, nem sequer o rosto compadecido, de tanto ódio, de
tanto insulto e escárnio, e esta, que é filha, e amada como se viu pelo modo
como olhava a mãe, não teve mais dizer senão “Ali vai”. Depois, voltando para
um homem a quem nunca vira, perguntou
“Que nome é o seu”, como se contasse mais sabê-lo que o tormento dos açoites
depois do tormento do cárcere e dos tratos (p. 50) Esta citação mostra que
Blimunda estava interessada em Baltasar, visto que houve uma comparação entre
tê-lo conhecido e o sofrimento pela sua mãe. Por esta razão, pode-se enquadrar
perfeitamente aqui o verso “Isto do Amor é um caso estranho” da canção.
“Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de
cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago...” (p. 51).
Nesta citação percebe-se nitidamente que Baltasar também estava interessado em
Blimunda e que a achava bonita. Pode-se incorporar uma parte da canção: “Tenho
o meu peito aberto só tu podes fechar”.
Depois do auto-de-fé, Blimunda foi para casa com
o Padre e deixou a porta aberta para que Baltasar pudesse entrar, apesar de não
o ter convidado. Mas o que é facto é que ele, entretanto, apareceu, porque
achou que o facto de Blimunda lhe ter perguntado o seu nome era razão mais que
suficiente para aparecer em sua casa. Blimunda ferveu uma panela de sopa e
deu-a aos dois homens. Esperou que Baltasar acabasse de comer para se poder
servir da colher dele. Depois, o Padre casou-os. Blimunda, com apenas dezanove
anos, perdeu a virgindade com Baltasar e essa foi uma grande prova de amor da
parte dela. E, por isso, encaixa tão bem a parte da canção que diz: “Quero-te
mostrar aquilo que sinto”. Disse-lhe também depois de comer o pão: “Nunca te
olharei por dentro”.
Houve uma cumplicidade entre ambos logo desde
início. No que respeita a Blimunda, para a época em que decorreu a história era
muito pouco usual a mulher abordar o homem. O homem é que abordava sempre a
mulher porque esta era considerada um ser inferior, ou seja, não era
considerada como um cidadã . Por outro lado, Baltasar tinha estado na guerra
onde perdera a mão esquerda, fora assaltado no caminho para Lisboa e matara um
homem, e era mais velho que Blimunda. Histórias de vida diferentes mas que se
cruzaram e se juntaram.
Miguel F.
Miguel F. (Bom+/Muito
Bom-) || «Estás à espera de quê» (João Pedro Pais / João Pedro Pais), Desassossego, 2012 // José Saramago, Memorial do Convento, 46.ª edição,
Lisboa, Caminho, 1994, pp. 384-401
“Estás à espera de quê” descreve um desejo que
se pode comparar aos sonhos que D. João V, o rei que também é personagem de Memorial do Convento, tanto insistiu em
ver concretizados. Este poema quase parece remeter para um “diálogo imaginário”
entre o magnânimo e os trabalhadores
que foram chamados de todo o país para cumprir uma mesma obrigação: a de apressar
a construção do Convento de Mafra, que el-rei quisera ver expandido ainda antes
da sua morte, para o dia do seu quadragésimo primeiro aniversário, a um domingo
(“Acordei mais cedo / Quis ver o dia chegar”). Para satisfazer este desejo, o
rei mandou chamar operários de todo o país para trabalhar, ora por vontade
própria (por norma, queriam-no pela remuneração) ora de forma obrigatória, na
construção do monumento. Não se trata, portanto, de qualquer convite ou
proposta de emprego, como se poderia inferir pelos versos “Fiz-te este convite/
Estou de braços abertos / Para poderes entrar”.
Genericamente, a forma como na canção o “eu”
lírico se dirige a uma segunda pessoa é diferente da que o rei adoptaria para
os operários: no poema, nota-se uma abordagem mais assertiva, mais consciente
do que se quer e se diz; em Memorial do
Convento, contrariamente, tem-se um rei egocêntrico e pouco racional, que
quer cegamente a consecução do seu sonho, independentemente de meios para o
conseguir. Aqueles que se recusassem a colaborar ou tentassem fugir eram
obrigados (“Recusava-se o homem primeiro, fazia menção de escapar (...),
deitavam-lhe a mão os quadrilheiros”, p. 401) a abandonar prolongadamente as
suas vidas, aliás, “muitos eram metidos ao caminho a sangrar” (p. 401), pois,
segundo o rei, “nada está acima da vontade real, salvo a vontade divina, e a
esta ninguém poderá invocar” (pp. 399-400).
No entanto, há certos trechos do poema que
exemplificariam bem a despreocupação egocêntrica de D. João V, se forem
pensados como parte de um monólogo. Em “Houve alguém que o pintou / Com todas
as cores / Até parecia, tão natural”) o desinteresse pela identidade do pintor recorda
o desprezo e materialismo do rei pelos trabalhadores. No fundo, estes são
tratados de forma desumana, como meras ferramentas de um homem que não conhecia
limites ao poder, não fosse ele um rei absoluto, “que em geral não admite resistências
ao seu arbítrio” (p. 384).
Diria que este regime, de poder máximo ao rei,
se coaduna com um período de infinita – ou quase inacabável – riqueza: se D.
João V tinha ao seu alcance todas as regalias que desejasse, e se era, por
personalidade, megalómano, então seria de esperar uma época de desperdício, esbanjamento
e desigualdade. Tais foram os gastos que chegou o seu contabilista a falar-lhe
de uma possível pobreza iminente (“ousaria dizer que estamos pobres e sabemos”,
p. 388), a propósito da expansão do Convento de Mafra para trezentos frades.
Ainda assim, foi uma advertência insuficiente para o demover da sua decisão. Pelo
contrário, acaba este diálogo (entre rei e contabilista) com maior despesa (“A
partir de hoje, passas a receber vencimento dobrado para que te não custe tanto
fazer força”, p. 389) e um rei igualmente desregrado no usufruto e preservação
dos bens do seu país.
Francisco S.
Francisco S. (Bom(-)/Bom-)
|| «This is war» (Jared Leto/ 30 seconds to mars), This is war, 2009 // José Saramago, Memorial do Convento, 53.ª edição, Alfragide, Caminho, 1994, pp.
379-386
Parece insólito, mas reunia-se a corte para assistir a rei e infantes
a brincar com o que seria a miniatura da basílica de São Pedro de Roma— “está
meia corte reunida para assistir ao brinquedo dos infantes”(p. 380). Adotando a
mesma linguagem que o narrador, que, como se sabe, crítica jucosamente estes
aparatos, realmente não haveria nada mais produtivo para se fazer,
especialmente enquanto andam os sacrificados no Alto da vela a erigir um
convento, por interesse franciscano e promessa da realeza.
O interesse que o clero tinha nas construções megalómanas para seu
proveito é ridiculamente demonstrado em toda a obra através de actos religiosos
que mais parecem encenações teatrais, como a reação que o provincial dos franciscanos
da Arrábida teve quando soube que o convento ia ser ampliado («derrubou-se no
chão dramaticamente, beijou com abundância as mãos da majestade», p. 386).
Os momentos da narrativa em cima referidos são pretexto para a escolha
da canção “This is war” (“isto é guerra”), por serem representativos do
interesse por parte do clero e do rei em se fazerem grandes obras, marca de
grande admiração e respeito, que motivam a luta incessante de muitos
trabalhadores para concretizaram um sonho megalomano que lhes é alheio.
A canção contém uma mensagem para todos: para o que luta e se
sacrifica para difundir as suas crenças/convicções (“The martyr" / "O
mártir”; “The prophet"/"O profeta”), para o que luta para defender o seu território (“The
soldier”/ "O soldado"), para o bom (“The good”) e para o mau (“The
evil”), para o mentiroso ("The liar") e para o honesto ("the
honest"). Alerta-nos para o facto de na humanidade haver uma permanente
guerra de interesses que nos obriga a “lutar” até à morte (“We will fight to
the death” / “Nos vamos lutar até à morte”; “to edge of the earth/ até aos
confins da terra”). E diz-nos que só lutando e terminando os conflitos é que se
pode ganhar a guerra que existe entre a humanidade (“The war is won / A guerra
está ganha” ) e assim atingir um admirável novo mundo ("A brave new
world”).
A narrativa de Memorial do
Convento é, de facto, uma guerra, é a guerra dos trabalhadores em
resistirem à opressão dos líderes do reino (“The evil" / "Os maus” ;
“The leader" / "Os líderes”), o rei e a sua corte, que usam e abusam
do seu poder, sendo o povo um meio para atingirem os seus fins. É a guerra dos
trabalhadores (“The victim” / “As vítimas”) que suportam dores horríveis e
desumanas condições de trabalho. E que, ainda assim, não desistem e lutam até à
morte, como é o caso de Francisco Marques, que morreu esmagado pelo carro
desenhado para transportar a pedra do pórtico da igreja, durante a viagem de
Pêro Pinheiro até Mafra, que durou oito dias e fez sofrer homens e animais.
Neste grupo dos guerreiros, enquadram-se Francisco Marques, José Pequeno,
Joaquim da Rocha, Manuel Milho, João Anes, Julião Mau-Tempo, amigos que
Baltasar fez nas obras do convento, rústicos e analfabetos, no entanto bem mais
interessantes que D. João V, nas suas histórias de vida, nas suas conversas e
pensamentos, levando o narrador a intrigar-se —“Donde vêm tais coisas à cabeça
desses rústicos”(p. 323).
Mas não é apenas a guerra dos trabalhadores. Assim como na canção, a
guerra tanto é dos honestos e dos bons como dos mentirosos e dos maus, é também
a guerra do rei, que quer o mais depressa possível ver o convento erigido para,
ainda em vida, poder usufruir do prestigio que isso lhe traria.
No fim da música, celebra-se o facto de a guerra ter sido ganha e se
ter atingido um hipotético mundo melhor e igualitário (“Lift your ends towards
the sun / Levante as suas mãos em direção ao sol”). No entanto, em Memorial do Convento, enquanto o rei D.
João V está no trono, não há grandes motivos para festejar, porque o povo
continuará oprimido e pobre, e o clero, a corte e quem vive à conta desta,
ricos e esbanjadores.
Marta
Marta
(Suficiente) || “Se olhar em mim verá” (Elias Wagner) // José Saramago, Memorial do Convento, 16.ª edição,
Lisboa, Caminho, 1984
Os olhos de Blimunda enfeitiçaram Baltasar e, por isso, este deixa-se ir
atrás dela como que hipnotizado: “e de cada vez que ela o olha a ele sente um
aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de
cinzento, ou verde ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de
dentro, e, às vezes, tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como
lascado carvão de pedra.”
(55)
Passo
a relacionar a música que escolhi com Memorial
do Convento. A música refere-se À circunstância de uma pessoa andar à
procura da sua amada desaparecida e ao facto de nunca desistir de a procurar,
custe o que custar. A música mostra que essa pessoa já procurou por todo o lado
a sua amada e de não a encontrou, mas isso não significa que vá desistir.
Vai
continuar à procura da sua amada porque a ama incondicionalmente, e a sua amada
sabe que ele a ama se olhar dentro dele (“Se olhar dentro de mim verá / Que sou
teu, sempre seu, sempre verá que eu te espero / Sempre aqui, sempre / Sem você
não posso me achar vivo me perdendo ao te / Procurar sem você não sei o quanto
vou viver mais / Serei sempre seu / Seu olhar já me chorar, já me fez sorrir,
já me fez / Parar, já me fez cair depois me levantou e hoje estou / Assim tão
preso em você”, “Já andei nas nuvens cruzei oceanos e em nenhum lugar / Eu te
encontrei”, “Sou capaz de voar por ti amor”,
“Como está você em mim”).
Também após o
desaparecimento de Baltasar, no Monte Junto, Blimunda parte à sua procura;
começa a procurá-lo nas proximidades e encontra um frade dominicano que lhe
oferece ajuda mas que tenta violá-la. Procura-o em Mafra, e depois, em todo o
país, chegando a atravessar a fronteira com Espanha:
“Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. Conhecera todos os
caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada
rangente e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria
morrer. (…) Por fim, já era conhecida de terra em terra, a ponto de não raro a
preceder o nome de Voadora, por causa da estranha história que contava” (p. 353).
Concluindo:
relacionei esta música com o facto de Blimunda procurar (sem
fim) Baltasar; e nunca desistir de o procurar, podendo através do seu dom,
saber se ele está vivo ou não e saber o quanto ele a ama (mesmo não o querendo
fazer). Esta música transmite muito os sentimentos de amor, juntamente com a
procura por esse amor e possibilidade de os olhos poderem ver mais do que
aquilo que veem.
Noorani
Noorani (Bom-/Bom(-)) ||
«Povo que lavas no rio» (Pedro Homem de Mello/ Joaquim Campos), interpretada
originalmente por Amália Rodrigues // José Saramago, Memorial do Convento, 46.ª edição, Lisboa,
Caminho, 1994, pp. 328-331
“Tudo quanto é nome de
homem vai aqui”
“Povo que lavas no rio” é uma expressão que se
pode reportar a todos os quarenta mil portugueses que, sacrificados e
obrigados, fizeram levantar o Convento de Mafra, a fim de cumprir uma promessa
feita pelo rei D. João V. O convento foi fruto de um trabalho árduo, violento,
intensivo, sem dó nem piedade, em condições de vida precárias e desumanas,
tendo sido os sonhos e vontades destas pessoas marginalizados em prol de um
sonho de um só homem.
A música acompanha o quotidiano dos pesados sete
anos do povo português durante a construção do convento, reforçando a ideia de
partilha (“Aromas de urze e de lama / Dormi com eles na cama / Tive a mesma
condição”), escravidão (“Que talhas com o teu machado / As tábuas do meu
caixão”) e união, na medida em que são pessoas de valor, sabem o que é sofrer
e, por isso, sabem dar valor à vida e a pequenos traços que o poder e a luxúria
não podem comprar, como o amor, a dignidade e a entreajuda.
“Tudo quanto é homem vai” por toda a ‘obra’:
“belos e formosos, esbeltos e escorreitos, inteiros e completos”. Assim seria
se não fosse outra a verdade: “defeituosos, marrecos, manetas e zarolhos”.
Homens – esse “povo que lava no rio / Que talhas com o teu machado” a pedra que
com os outros fará um grande feito, o da construção do Convento de Mafra. Assim
está expressa a história, mas existe outra versão, essa sim, heróica de
verdade, que só chegou até nós através dos olhos que Saramago atribuiu à
personalidade e à personagem de Baltasar.
“Tudo quanto é vida também (aqui vai)
principalmente se miserável, já que podemos falar-lhes das vidas, por tantas
serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação.” Com
efeito, longe dos seus lares e das suas famílias, aqueles homens foram
obrigados a serem violentos e rudes com o objectivo de obterem o mínimo. Mas
será que este mínimo existe entre estes trabalhadores? Enquanto elementos do
povo, têm de lutar pela sua sobrevivência, por um pedaço de pão e poucos ou
nenhuns são aqueles que os defendem ou os ajudam (“Pode haver quem te defenda /
Quem compre o teu chão sagrado”).
Muita pedra correu e muita está ainda erguida no
convento. No entanto, a verdade do povo não permaneceu gravada, encontra-se
escondida, no requintado e rico monumento. Temos todos a mesma condição de
vida, porque “povo, povo, eu te pertenço / Deste-me alturas de incenso”. E,
assim, nasce uma obra heróica, onde cada pedaço é parte da soma de todos os
homens. É nesta realidade que se forma um verdadeiro herói.
Os homens com poder tendem, ciclicamente, a
cometer os mesmos erros, a cair na mesma tentação, porque são incapazes de
perceber que o poder e o valor estão nas coisas simples. E a simplicidade está
entre os homens do povo, que partilham “a mesa redonda, vinho, água pura, fruto
agreste, mas a tua vida não”. Muitas vidas foram e são sacrificadas, mas delas
nenhum monumento fica, nenhuma obra é construída em nome das acções feitas
pelos mesmos, a não ser elas próprias.
Miguel M.
Miguel M (Suficiente+) || "It's a kind of magic" (Queen/Roger Taylor), It's a kind
of magic, ?// José Saramago, Memorial do Convento, 53.ª edição,
Lisboa, Caminho, 2013, pp. 71-74
A música escolhida para estabelecer uma relação
com a obra Memorial do Convento foi “It’s
a kind of magic”, dos Queen.
No núcleo da música está a palavra “magia”, que
pode ser ligada a vários pontos da história, um deles o caso dos poderes
sobrenaturais de Sebastiana e Blimunda, que, na altura, são ligados à bruxaria,
acabando por levar à condenação de Sebastiana e à infelicidade de Blimunda. Outro
foco de magia é o início da relação entre Baltasar e Blimunda, porque esta
começa de forma bastante estranha (“veio a esta casa não porque lhe dissessem
que viesse, mas Blimunda perguntara-lhe que nome tinha e ele respondera, não
era necessário melhor razão”, p.72) e o próprio pedido de casamento também é
feito de forma estranha (“aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a
boca deste homem”, p.73). A magia está também presente no projecto da
passarola, porque é necessária a magia de Blimunda para a máquina voar, pois,
na altura, ainda não havia a tecnologia devida.
Estes três aspectos da acção de Memorial do Convento revelam exemplos de
figuras excepcionais que se destacam do resto da sociedade e cujas acções podem
ser consideradas gritos de revolta com o objectivo de atingir um fim: a
liberdade. Com a leitura da música, consegue-se fazer pontos de ligação com os
caracteres excepcionais das personagens. Na primeira estrofe, logo no primeiro
verso (“One dream one soul one goal”), este sonho é a construção da passarola, a
alma é o casal Baltasar e Blimunda e o prémio e objectivo é a liberdade. O verso
seguinte resume o primeiro.
A segunda estrofe fala-nos de outra coisa: logo
no primeiro verso, “One shaft of light that shows the way” tem a ver com a
visão, o que permite estabelecer uma relação com o casal Baltasar e Blimunda,
em que Baltasar, sendo o sol, tem uma visão mais aberta das coisas — daí ter
aceitado os planos da passarola; por outro lado, temos a Blimunda que é a lua e
que, ao contrário de Baltasar, vê no escuro, pois ela possui o sexto sentido,
ela consegue ver por dentro das pessoas (“Não sabes do que estás a falar, não
te olhei por dentro…”, p. 74). O verso seguinte (“No mortal man car win this day”)
serve para realçar o carácter excepcional das personagens por elas serem
bastante diferentes do tipo de pessoas daquele tempo: elas pensam de forma
diferente e têm diferentes sonhos.
A estrofe seguinte começa com “The bell that
rings inside your mind” e refere-se ao instinto que faz que as personagens
(Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu) sejam diferentes das outras todas. O
verso seguinte fala-nos de um desafiar das normas da época, a partir dos seus
comportamentos únicos.
A quinta estrofe descreve-nos uma longa espera
(“The waiting seems eternity”), que nos faz pensar na espera pela mudança da
sociedade. Quando falamos em termos de visão da sociedade, é preciso dizer que
estas personagens vêem mais que os outros. Quando chegamos ao quinto verso (“There
can only be one”), que se pode referir ao casal Baltasar e Blimunda, pode dizer-se
que eles são como as faces da moeda, são opostos: um é o sol e o outro, a lua.
Logo o verso abaixo fala-nos de uma raiva que dura há muitos anos e isso pode
relacionar-se com Memorial do Convento,
com a revolta contra as injustiças e vivendo de forma diferente.
A sexta estrofe inicia-se com “This flame that
burns inside of me”, e pode referir-se à paixão incondicional entre Baltasar e Blimunda
(“só os abriu, cinzentos (…), e disse, nunca te olharei por dentro”, p. 74).
Concluindo, Baltasar, Blimunda e o padre
Bartolomeu são personagens que têm pensamentos diferentes dos outros e que
vivem de forma diferente, seguindo as suas próprias normas e sonhos, o que vai
fazer com que sejam diferentes da sociedade.
Pedro D.
Pedro D. (Bom(-)/Bom-)
|| «Por quem não esqueci» (Pedro Oliveira, Rodrigo Leão, Nuno Cruz/Sétima
Legião), De Um Tempo Ausente, 1989 //
José Saramago, Memorial do Convento,
43.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 354-373
A canção «Por quem não esqueci» relaciona-se
logo a partir do título com o final do Memorial
do Convento. Nos dois últimos capítulos da obra é relatada a longa busca que
Blimunda faz «por quem não esquec[eu]», Baltasar («É uma cara que não se
esquece, pelo menos não a esqueci eu», p. 369). A música também trata de uma
longa procura por uma pessoa amada que o sujeito poético tanto deseja,
impulsionado pela esperança de a reencontrar.
Podemos considerar que a noite aparece na canção
como um símbolo de solidão, melancolia ou até mesmo alguma tristeza. A
esperança aparece, assim, como a «voz de sempre que chama por [ele] para que
[ele] lembre que a noite tem fim». Por outro lado, a noite pode também
simbolizar na canção uma dificuldade acrescida na busca, tendo em conta que a
falta de luminosidade torna consideravelmente mais difícil uma busca nocturna.
Em Memorial
do Convento é notável tanto a persistência que leva «Durante nove anos,
Blimunda [a] procur[ar] Baltasar» (p. 369) como a esperança que Sete-Luas tem
em encontrá-lo («de repente entrou-lhe no coração o convencimento de que vai
encontrar lá em cima Baltasar», p. 354). A esperança na obra de José Saramago
também vem mascarada como um sentido, no entanto, em vez de se recorrer à «voz
de sempre», utiliza-se o tacto, como a sensação «de Blimunda nas suas ancas,
como se lhes tivesse tocado o seu homem» (p. 354).
Assim como Blimunda «perguntava se tinham visto
por ali um homem com estes e estes sinais» (p. 369), na canção o sujeito lírico
«procur[a] à noite um sinal». A esperança era tão profunda que, a certa altura,
a mulher visionária começou a imaginar sinais como: «se pudesse parar ouviria
certamente o grito dele, Blimunda, está tão certa de tê-lo ouvido que sorri»
(p. 354).
Num dado momento, na música o “eu” lírico
apercebe-se de uma nova realidade, conclui que já não pode encontrar quem
procura, mesmo assim não deixa de ir em busca «por quem já não volta». No fim
do Memorial do Convento,
analogamente, Blimunda encontra Baltasar; no entanto, as circunstâncias são as
piores, o procurado está a ser queimado num auto de fé («Naquele extremo arde
um homem a quem falta a mão esquerda», p. 373). A recolha da vontade de Baltasar
por parte de Blimunda faz dar como terminada a busca, contrariamente à canção,
onde a procura nunca parece terminar.
Neste episódio da obra literária é demonstrada a
força do amor e revela-se o que se chega a fazer por quem se ama. Blimunda,
para encontrar o seu amado, correu grandes perigos, chegando mesmo a matar,
como aconteceu quando o frade a tentou violar enquanto descansava da busca do
dia anterior («Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a
pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só
saiu viva porque ainda não queria morrer», p. 369). Para além disso, o estilo
de vida que Sete-luas levou após o desaparecimento de Baltasar foi
absolutamente nómada, demonstrando que um lar não é onde se vive mas onde se
ama.
Yara
Yara
(Suficiente +) ||“All of me” (John Legend),
Love in the Future, 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, 45.ª edição, Caminho, 2009, pp. 72-74
“All
of me” (tradução: “tudo de mim”), composição de John Legend, retrata o amor
profundo e incondicional (“Cause all of me / Loves
all of you / Love your curves and all your edges / All your perfect
imperfections” — tradução: “Porque tudo de mim / Ama tudo em ti / Ama as tuas
curvas e todos os teus limites / Todas as tuas perfeitas imperfeições”) entre
dois indivíduos que estão dispostos a arriscar tudo para estarem juntos (“Cards
on the table, we're both showing hearts / Risking it all, though it's hard” —
tradução: “Cartas na mesa, estamos mostrando os nossos corações / Arriscando
tudo, apesar de isso ser difícil”). Esta composição musical retrata, de certa
forma e por outras palavras, a história de Blimunda Sete-Luas e Baltasar
Sete-Sois, personagens do livro de José Saramago Memorial do Convento, e, em particular, no capítulo V, da página 72
até à página 74. Este momento da obra de Saramago, tal como a composição
musical acima referida, refere uma relação de cumplicidade e um amor profundo
entre duas almas (no texto de Saramago é isso visível em “Aceitas para a tua
boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu,
agora tornando o ser teu o que foi dele” e, na letra da composição de John
Legend, em “Cause I give you all of me / And you give me all of you” —
tradução: “Porque eu dou te tudo de mim / E tu dás-me tudo de ti”.)
O texto de Saramago, pág. 74, corresponde ao início de uma
relação que surgiu da entrega mútua e espontânea de dois indivíduos (“se eu
ficar onde durmo, comigo”, situação de Memorial
do Convento) e não por obrigação ou porque uma terceira entidade já os
tivesse prometido um ao outro (como aconteceu com o rei D. João V e D. Maria
Bárbara).
O momento em que Blimunda “com a ponta dos dedos médio e indicador
humedecidas neles, (…) persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre
o coração” representa o instante em que ambos se entregam completamente um ao
outro. Na composição de John Legend também verificamos um momento análogo a
este quando o eu poético afirma “Give your all to me / I’ll give my all to you /
You’re my end and my beginning” — tradução: “Dá me tudo de ti / Eu darei tudo
de mim / Tu és o meu final e o meu princípio”.
Pedro M.
Pedro
M. (Bom -) || «Sonata em F menor K.466» (Domenico Scarlatti / Pierre Hantaï), Sonata em F menor K.466, 17?? // José
Saramago, Memorial do Convento, 53.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp.
215-254
Giuseppe Domenico Scarlatti foi um compositor
italiano que viveu no século XVIII (contemporâneo, portanto, de Memorial do Convento). A sua música tem
influência ibérica (pois fez parte das cortes portuguesa e espanhola, acompanhando
Maria Bárbara), clássica e barroca, correspondentes ao período que se vivia.
Ficou conhecido, principalmente, pelas suas sonatas para cravo.
Em Memorial
do Convento, de José Saramago, Domenico é o quarto e silencioso membro da
santíssima trindade (se é que isso se pode dizer) formada pelo padre Bartolomeu
Lourenço de Gusmão e constituída também por Baltasar e Blimunda, com o
objectivo de construir a passarola.
Scarlatti tinha sido convidado pelo rei de
Portugal, D. João V, para ser professor da infanta D. Maria Bárbara. É curioso
que, fora do Memorial, seja sabido
que o nosso monarca da época tenha pedido a Domenico para avaliar um músico da
sua corte, Carlos Seixas, a respeito de quem o prestigioso italiano disse não
ter nada a ensinar-lhe, podendo o português muito bem ter sido o professor da
princesa e provando que nesta altura havia um preconceito de que o melhor é só
o que vem de fora, sendo também prova disto o facto de a maioria dos materiais
e até o arquiteto para a construção do Convento de Mafra terem sido importados.
Depois de uma das aulas encontra-se com o padre
Bartolomeu que tinha sido seu convidado, sendo estabelecida uma empatia entre
os dois, que filosofam sobre a importância do erro e a obtenção da verdade,
quer a partir da música quer do discurso (“Se a música pode ser tão excelente
mestra de argumentação, quero já ser músico e não pregador, Fico obrigado pelo
cumprimento, mas quisera eu, senhor padre Bartolomeu de Gusmão, que a minha
música fosse um dia capaz de expor, contrapor e concluir como fazem sermão e
discurso, Ainda que, reparando bem no que se diz e como, senhor Scarlatti, se
exponham e contraponham, as mais vezes, fumo e nevoeiro, e se conclua coisa
nenhuma.”, p. 220).
Depois de uma conversa entre Scarlatti e
Bartolomeu nada inocente por parte do narrador, falando de obras e mãos, em que
se pode, subtilmente, depreender que se está a falar da importância de realçar
os trabalhadores pois são eles que fazem as obras e não devem ser esquecidos, o
italiano finalmente vai ao assunto onde tinha a sua mira (“Disseram-me, padre
Bartolomeu de Gusmão, que por obra dessas mãos se levantou ao ar um engenho e
voou”, p. 225).
O padre acabou por levar o senhor Escarlate
(como se passou a chamar, embora não seja bem assim o nome com que foi
batizado) a S. Sebastião da Pedreira, onde estava a ser construída a máquina
voadora e apresentou-o aos outros dois membros da trindade. O músico não
acreditou que aquele engenho conseguisse levantar voo e o Voador acabou por lhe
“revelar o segredo” (“Não é mineral, nem vegetal, nem animal, Tudo é mineral,
ou vegetal, ou animal, Nem tudo, há coisas que o não são, a música por exemplo,
Padre Bartolomeu de Gusmão, decerto não quer dizer-me que estas esferas vão
conter música, Não, mas quem sabe se com ela não subiria também a máquina,
tenho de pensar nisso, afinal pouco falta para que me erga eu ao ar quando o
ouço tocar no cravo, É um gracejo, Menos do que parece, senhor Scarlatti.”, p. 231).
Domenico decidiu trazer o seu cravo para tocar para eles e para a passarola, o
que fez várias vezes (“…talvez a minha música possa conciliar-se dentro das
esferas com esse misterioso elemento…”, p. 232), chegando até a dizer “…gostaria
de ir nela e tocar no céu…”(p. 241). Também foi a sua música e persistência que
fez que, ao tocar o cravo diariamente para a doente Blimunda, depois de esta
ter recolhido as vontadas (o tal elemento estranho), lhe salvasse a vida. É a
música que nos acorda da doença, é ela que nos liberta.
O autor dá um poder à música, e até mesmo às
artes, semelhante ao da ciência, sendo ambas necessárias para o progresso, para
a modernização, ambas capazes de inovação através da criatividade, mas também
capazes de lembrar o passado, e, assim, alcançar o futuro, o céu, ultrapassando
o errado fumo e nevoeiro, e chegando a algo mais próximo da verdade. Um sítio
onde somos mais livres.
A música de Domenico Scarlatti foi essencial,
assim como a ciência de Bartolomeu, o trabalho de Baltasar e o poder da visão
herético de Blimunda para fazer voar o sonho do padre, e alcançar o céu “…Voando
a máquina, todo o céu será música…” (p. 241).
Em Memorial
do Convento, o Músico e o Voador são personagens que questionam e
ultrapassam a sua época, não devendo ser esquecidos.
Luís
Luís (Bom, mas atrasadíssimo) || “O primeiro
dia” (Sérgio Godinho/ Sérgio Godinho), Pano-Cru,
1978 // José Saramago, Memorial do
Convento, 46ª edição, Lisboa, Caminho, 2009, pp. 465-493
Na segunda faixa do seu quinto álbum, Pano-Cru,
Sérgio Godinho apresenta “O primeiro dia”, composição musical enquadrada nas
alterações sociais dos meados da década de 70, no entanto, não
intervencionista. A procura de uma nova vida, na sequência de um acontecimento
doloroso e inesperado, retratada na canção, aparenta-se com os dois capítulos
finais de Memorial do Convento, quando
Blimunda se vê separada de Baltasar.
Nos versos de Godinho, o sujeito poético, adoptando
uma postura reflexiva descritiva, discorre sobre as atitudes e acções
resultantes da ruptura com a sua vida anterior. No princípio, é simples lidar
com a adversidade empregando a descrença pessoal como defesa emocional (“A
princípio é simples, anda-se sozinho, / passa-se nas ruas bem devagarinho /
está-se bem no silêncio e no burburinho / bebe-se as certezas num copo de
vinho”). Gradualmente, com a aceitação do sucedido, o sujeito lírico cai no
desespero e na decadência (“Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo / dá-se a
volta ao medo e dá-se a volta ao mundo”), mas, ajudado pelos amigos, “[luta]
por tudo o que [leva] a peito”, sobressaindo a perseverança (“duma escolha
faz-se um desafio / enfrenta-se a vida de fio a pavio”).
Analogamente, no romance de José Saramago,
Blimunda, inicialmente, recusa sucessivas vezes o desaparecimento do seu homem
(“Baltasar (…) chegará tão tarde que o receberei deitada, ou então estará cá
amanhã, se teve muito para consertar, foi o que ele disse”, ”entrou-lhe no
coração o convencimento de que vai encontrar lá em cima Baltazar, trabalhando e
suando”, ”quem sabe se, lá chegando (cume do Monte Junto), veria Baltasar
acenar-lhe com o braço”, “ocorreu-lhe a ideia (…) de que Baltasar a final
estaria em Mafra, à sua espera, tinham-se desencontrado no caminho, se calhar à
máquina de voar subira sozinha, depois Baltasar viera-se embora, por
esquecimento deixara ficar o alforge e a manta, ou talvez tivesse largado a
fugir de susto”— p. 466, p. 469, p. 471 e p. 480), acabando por aceitar o
infortúnio de ter perdido o marido (“sentou-se no degrau de pedra, deixou cair:
os braços, e ia abandonar-se ao desespero quando pensou que não poderia
explicar como estavam na sua posse a manta e o alforge de Baltasar, se
justamente teria de dizer que fora por ele e não o encontrara”— pp. 480-481).
Motivada pelo amor que nutre por Baltasar, procura-o durante nove anos,
caminhando por Portugal inteiro. Incansável, acaba por encontrá-lo em Lisboa,
num auto-de-fé, a ser queimado.
Tanto na composição de Godinho como no romance
saramaguiano abordam-se traços característicos da espécie humana. A força e a
persistência ao enfrentar-se o desconhecido. Em “O primeiro dia”, “navega-se
sem mar, sem vela ou navio/ bebe-se a coragem até de um copo vazio” e no
romance, Blimunda conhece ” todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia,
a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só
saiu viva porque ainda não queria morrer”.
A existência, nos textos de Godinho e de
Saramago, remete para uma viagem/procura de reencontro pessoal. No primeiro,
“enfrenta-se a vida de fio a pavio”, visando uma vida nova — “Hoje é o primeiro
dia do resto da tua vida!”. No segundo, a viagem é mais complexa. Os anos de
procura por Baltasar retratam não só a empresa física da reunião do casal como
a viagem espiritual do reencontro da plenitude de ser. Blimunda não se conforma
com a perda, procurando Baltazar No final recolhe a vontade do homem que lhe
pertencia.
Assim, tanto na música do autor português como
nos XXIV e XXV capítulos da obra de Saramago, transmite-se o poder da força de
vontade na superação e procura humana aquando do inesperado e, sobretudo, do
emocionalmente doloroso.
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