Convento 4
Nota é a da primeira versão. Algumas das
referências ainda podem ser melhoradas (letristas e compositores devem ser
confirmados, nomes e datas de álbuns, etc.). A pouco e pouco irei acrescentando
esses dados (para o que peço, é claro, a colaboração dos autores das análises
ou de outros colegas).
Ana
Ana
(Bom(-)) || “Spaceman” (The Killers/The Killers), Day & Age, 2008 // José Saramago, Memorial do Convento, 38ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp.199-212
A música “Spaceman”, da banda The Killers, pode
ser interpretada de uma maneira que, em algumas partes, se aproxima da aventura
de Baltasar, de Blimunda e do padre Bartolomeu na concretização do sonho de
voar. Mais particularmente, alguns versos da música podem ser comparados com os
sentimentos do padre e por tudo o que passou para conseguir realizar o seu
sonho.
Fazendo então, alusão a toda a informação que
recolhemos ao longo da obra acerca do que o padre teve de fazer para conseguir
colocar em prática os seus projectos, o comentário será focado no episódio da
“descolagem” da passarola.
O padre Bartolomeu teve como sorte inicial o
apoio do rei D.Joao V, que lhe forneceu um local afastado onde pudesse praticar
e executar as suas ideias. À sua volta, mais ninguém acreditava que fosse
possível voar, não era algo que estivesse destinado aos homens. Para se ter
essa capacidade, ou se era anjo ou pássaro, tal como Baltasar disse ao padre da
primeira vez em que falaram. Nessa conversa, o tema do voo surgiu precisamente
porque o padre tinha a alcunha de “voador”, o que dá logo a perceber qual era a
opinião das outras pessoas, nomeadamente dos colegas do padre no clero e na
corte, acerca da passarola.
No início da aventura, já com a ajuda de
Baltasar e Blimunda, o padre procurou aperfeiçoar a máquina. Viajou até à
Holanda onde estudou as artes da alquimia e, posteriormente, passou um tempo em
Coimbra, também com o intuito de aumentar os seus conhecimentos. Durante este
tempo, começaram a surgir no padre dúvidas e perguntas às quais a religião não
conseguia responder e que a ciência também não esclarecia. Todas estas
confusões foram crescendo e, quando a passarola já se encontrava no ar, no
momento em que corriam o risco de chocar contra um monte, o padre ficou imóvel
e sem resposta (“O padre Bartolomeu Lourenço olha indiferente, está fora do
mundo, para além da própria resignação...”). Depois de tanto esforço, o padre
foi assaltado por tantas dúvidas que começou a entrar numa espiral de loucura
que culminou com esse momento dentro da passarola e com os eventos que se
sucederam quando ela caiu.
Toda a aventura teve consequências psicológicas
e levantou questões existenciais que foram para além daquilo a que o padre
conseguia dar resposta. Relacionando com a música: (“And you know I might have
just flown too far from the floor this time”/ Tu sabes, sou capaz de ter voado
demasiado longe do chão desta vez).
Quando conseguiram fazer aterrar a passarola,
perdidos, Blimunda tentou perguntar ao padre Bartolomeu o que deviam fazer
naquele momento. No entanto, o padre nada lhe conseguia dizer que a ajudasse
(“O padre Bartolomeu Lourenço não respondeu. Apertava a cabeça entre as mãos,
depois fazia gestos como se conversasse com um ser invisível, e o seu vulto
tornava-se cada vez mais impreciso na escuridão”). Na música, o sujeito
poético, depois de toda a experiência, acaba por sentir-se como o padre
Bartolomeu, (“But I hear those voices at night sometimes”/ Mas, às vezes, oiço
aquelas vozes à noite).
O resto da música não pode ser comparado
directamente com o padre Bartolomeu. Podemos apenas fazer uma analogia, se bem
que talvez um pouco forçada, como um homem que, ao passar por experiências, ou
aventuras, acaba por ficar afectado psicologicamente.
Miguel D.
Miguel D. (Muito Bom-)|| «Vem Libertar» (Ofra Haza), O Príncipe do Egipto, 1998 // José
Saramago, Memorial do Convento, 53.ª
edição, Lisboa, Caminho, 2013, pp. 325-361
A música «Vem Libertar», uma das cenas iniciais do filme O Príncipe do Egipto relaciona-se bem
com Memorial do Convento na sua
generalidade, mas também com um episódio em particular do romance.
A canção dá-nos o
testemunho de escravos hebreus durante a construção de grandiosas obras sob o
escaldante Sol egípcio, que, juntamente com o vídeo, nos transmite um
sentimento de pena perante a injustiça observada: trabalhos físicos extenuantes
aplicados a idosos e a qualquer homem em idade de trabalhar, todos eles de
saúde débil devido à inclemência do esforço realizado. Aliada à insensibilidade
dos opressores pelo simples facto de escravizarem concidadãos para a construção
dos seus monumentos, dos seus “caprichos”, está a crueldade de obrigar os
hebreus a sacrificarem os seus corpos para construção de monumentos relacionados
com uma religião totalmente diferente da sua. Em Memorial do Convento, está também presente a construção de uma
estrutura megalómana: o próprio Convento de Mafra. A escravidão não é tão
pronunciada nas obras ordenadas por D. João V, havendo condições mínimas de vida
para os trabalhadores (nomeadamente, a Ilha da Madeira) e carga horária de
trabalhos relativamente benevolente, sendo o trabalho dividido por diferentes
“companhias” (os pedreiros, os boieiros, os carregadores, os soldados); no
entanto, é importante ter em conta que, após a decisão do monarca português de
finalizar e inaugurar a obra do Convento num domingo dia de seu aniversário, acontecimentos
que coincidiriam em data muito precoce em relação às melhores expectativas de
finalização da obra, obrigou-se todos os homens sãos e capazes de trabalhar existentes
no reino a dirigirem-se à vila de Mafra para acelerar a construção do edifício
mastodôntico no tempo aprazado. Podemos então relacionar os trabalhos forçados
do Convento com os dos templos egípcios presentes no vídeo da canção.
Apesar do possível
relacionamento entre a construção do Convento de Mafra com a dos templos, penso
que os trabalhos a que os construtores hebreus são sujeitos mostram maior
semelhança com o transporte, desde Pero Pinheiro até Mafra, de “uma pedra muito
grande que lá estava” (p. 328), uma “brutidão de mármore rugoso” (p. 333), que
estava destinada a ser uma varanda da congregação, residindo a sua beleza no
facto de ser uma única pedra, que seria trabalhada com afinco para produzir das
mais impressionantes peças de cantaria da Europa. Com a passagem da construção
do monumento para o transporte da pedra, o esforço físico dos trabalhadores
intensificou-se, havendo agora uma clara parecença entre estes e os escravos
hebreus, que repetiam penosamente “Água... Terra... Água... Palha...”, havendo
aí mais uma vez uma relação entre as duas realidades: a água que se deitou
“para cima do barro que entretanto secara” (p. 337) e a palha que foi
necessária transportar para alimentar os “quatrocentos bois (...) que (...)
partir[am] para Pero Pinheiro” (p. 328). O caminho de volta a Mafra foi árduo,
com subidas íngremes e pronunciadas descidas ao longo de desfiladeiros, onde os
“mestres da manobra” (p. 337) gritavam, coordenando os seus homens “Êeeeeeiii-ô,
Êeeeeeiii-ô” (p. 338), tal como os capatazes egípcios “Iça! Levanta! Puxa!”.
Em Memorial do Convento está retratada uma
acercada perseguição, sensivelmente ao longo de todo o romance, ao povo judeu e
aos cristãos-novos (que aliás leva, no final da obra, à morte do próprio
Baltasar, acusado de Judaísmo). Na canção do filme da DreamWorks, esse é também
o povo escravizado, desprezado e perseguido, que culmina no abandono da
personagem principal por parte da sua mãe, numa tentativa desesperada para a salvar
(“Eu sei, nada tenho para te dar, vou lutar para te salvar”).
Por fim, podemos
fazer a ligação entre o que o povo das duas realidades sofre para a realização
dos desejos dos seus soberanos (D. João V, em Memorial, e o pai de Ramsés, criança que aparece no final do vídeo,
Faraó do Egipto).
Catarina
Catarina (Muito Bom(-))
|| «I see fire» (Ed Sheeran / Ed Sheeran), Hobbit
– Soundtrack, 2013 // José Saramago, Memorial do Convento, 3.ª
edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 164-177
«I see fire» (em português, «Vejo fogo»)
desenrola-se no tom resignado, mas impregnado de coragem e determinação, de
quem não sabe o que lhe reserva o futuro, estando, no entanto, preparado para
perder tudo, até a vida, em nome das suas crenças, em nome de uma epopeia. No
caso da canção, trata-se da história de um herói que parte em busca de vingança
para o seu povo, uma vez que esta canção foi escrita para integrar a banda
sonora do filme Hobbit – The desolation
of Smaug. Da mesma forma, em Memorial
do Convento, temos três heróis (Bartolomeu, Baltasar e Blimunda) unidos
numa irmandade cuja identidade vai muito além da letra inicial dos nomes das
personagens e que se prende com a concretização do sonho de voar do Padre
Bartolomeu, atividade herética que coloca em risco as vidas dos três.
“And
if we should die tonight/Then we should die together” (“Se estivermos
destinados a morrer esta noite/Então, morreremos todos juntos”). É esta atitude de
companheirismo e entrega ao destino, de ignorância face ao que se passará em
seguida, à forma como tudo acabará em contraste com a determinação e bravura de
quem não desiste e se mantém fiel àquilo em que acredita que vemos refletida
nos heróis de Memorial (“(…) é
preciso é fugir daqui. Baltasar e Blimunda olharam-se demoradamente. Estava
escrito, disse ele, Vamos, disse ela.”, p. 165; “Blimunda aproximou-se, pôs as
duas mãos sobre a mão de Baltasar e, num só movimento, como se só desta maneira
devesse ser, ambos puxaram a corda. (…) A máquina estremeceu (…) lançou-se em
flecha, céu acima”, p. 167 ). As personagens aceitam serenamente o desafio que
lhes é lançado e assumem que estão dispostas a sacrificar até a vida em nome de
um sonho e da salvação de um amigo que os salvara também a eles. Com prontidão,
dão um passo em frente para enfrentar os perigos do desconhecido (ainda para
mais, de voar, coisa impensável e nunca antes feita). Unidos por anos de
trabalho e esforço para a construção da passarola, pelo segredo de Blimunda,
que vê por dentro e, agora, pelo facto de estarem a ser perseguidos pela Santa
Inquisição devido às atividades heréticas a que se dedicaram, erguem-se no céu.
O que tiver de ser será.
“If this is to end in fire / Then we should all
burn together” (“Se tudo isto terminar em fogo / Então, arderemos juntos”).
Ironicamente, o casal e Bartolomeu Lourenço fogem de S. Sebastião da Pedreira
na passarola, para escapar à fogueira que os esperava enquanto hereges que
eram, e, no fim, a passarola quase arde, por mão do Voador e Sete-Sóis morre
numa Santa fogueira, por outros motivos, muitos anos mais tarde. De qualquer
forma, os três heróis estão juntos tanto nos melhores momentos como nos piores
e de mais perigo. São uma trindade de coragem que chegou mais alto do que
qualquer outra pessoa tinha chegado até então. São uma trindade movendo-se na
loucura dos visionários que se despenha em lugar desconhecido, sentindo a morte
passar muito perto e desviar-se por pouco. São, de forma nada ortodoxa, por
analogia, uma Santíssima Trindade: “ (…) Deus ele próprio, Baltasar seu filho,
Blimunda o Espírito Santo, e estavam os três no céu” (p. 168). Blimunda, dotada
de poderes sobrenaturais, Baltasar, o mais terreno dos três e a vera mão-de-obra, Bartolomeu de Lourenço, o
que sonha mais alto e o mais crente de todos.
“And I see fire burn auburn in the mountain
side” (“E vejo o fogo queimando, vermelho, na montanha”). Bartolomeu Lourenço,
tomado de um desespero cego, acreditando que morreria proximamente num fim
hediondo, tenta pegar fogo à passarola e é impedido de o fazer por Sete-Sóis e
Sete-Luas. O padre tenta apenas decidir como a sua vida teria fim: “Se tenho de
arder numa fogueira, fosse ao menos nesta.” (p. 176). E é este o ponto
fundamental em comum entre a canção e este momento da intriga de Memorial: o facto de ambos os heróis
quererem ter mão sobre o seu fim; o facto de, presumindo que morrerão, lutarem
para o fazer de forma digna e à sua maneira. Ambos querem escolher a fogueira
onde se queimarão, o fim que terão.
Inês M.
Inês (Muito Bom-) || «Da próxima vez» (Luís Represas / Luís Represas), Fora
de Mão, 2003 // José Saramago, Memorial
do Convento, 51.ª edição, Lisboa, Caminho, 2011, pp. 487-493
Depois do
acidente que arrasta Baltasar pelos céus dentro da passarola, Blimunda
procura-o incansavelmente (“Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, a
branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois
nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer”, p. 487),
percorrendo as terras de Portugal (“Portugal inteiro esteve debaixo destes
passos”, p. 491). «Da
próxima vez» descreve, de modo quase perfeito, a angústia e o desespero que
Blimunda sentiu nos nove anos em que procurou o seu homem, e até mais tarde,
quando o encontrou na fogueira e o viu ser morto pelo Santo Ofício. Durante
este último e trágico capítulo de Memorial
do Convento, uma corajosa Blimunda anda descalça (“a sola dos seus pés
tornou-se espessa, fendida como uma cortiça”, p. 491) perguntando a quem
encontra se viu um homem com “a mão esquerda de menos, e alto como um soldado
da guarda real, barba toda e grisalha” (p. 487). Com quantas mais pessoas se
cruza, menos sabe de Baltasar – “Ninguém sabia ao certo/Onde te procurar”.
Blimunda, que vê o grande amor da sua vida partir e nove anos passados ainda
não o encontrou – “Porque há muito, muito tempo/Não vinhas ao teu lugar” – vive
uma vida nómada, sem rumo nem direção, dominada pela ausência de Baltasar,
sonhando, todos os dias, tornar a vê-lo (“Cada Verão que passava/ [Sentia-te]
chegar”). O seu interior é assolado por uma tristeza vincada e tudo deixa de
fazer sentido (“não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter
significado”, p. 490). Várias vezes se sente derrotada e fatigada e não
consegue viver alegre e pacatamente, como vivia com Baltasar. Inconformada e
revoltada com o destino que a vida trouxe a este amor utópico – “Como era
possível que o Sol/Se atrevesse a brilhar” –, Sete-Luas não desiste e continua
percorrendo estrada após estrada, com a esperança de saber notícias de Baltasar
– “Deves ter tantas histórias/Tantas que algumas ficaram/Caídas por aí”.
Blimunda é, de certo modo, uma personagem paradoxal, simultaneamente fraca e
forte. Por um lado, é invadida pelo desespero do desaparecimento do seu “marido
de colher” e pela angústia de não saber onde este se encontra (“[Quis] saber como
estavas/Se a vida tinha tomado/Bem conta de ti”), mas, por outro, consegue
arranjar alento para continuar sempre a sua jornada.
Quando, por fim, encontra Baltasar, no
auto-de-fé, sente-se profundamente desiludida e desamparada. O reencontro com
que sempre sonhou não fora em nada similar à forma como se cruzara novamente
com Sete-Sóis. Condenado, humilhado e repudiado pelos que assistiam (exceto por
Blimunda, claro), a arder na fogueira, Baltasar deixa uma última recordação à
mulher com quem partilhou o verdadeiro sentido da existência – “Desprendeu-se a
vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra
pertencia e a Blimunda” (p. 493). O amor de Sete-Sóis e Sete-Luas permanece
eterno e verdadeiro e a essência de Baltasar – a sua vontade – fica armazenada
no interior de Blimunda como um espírito indestrutível (“Não existe mundo lá
fora/ Que te possa destruir”). Apesar de todas as peripécias, a grande paixão
deste casal é infindável e não há coisa alguma que os possa separar. Unidos agora
num só, Blimunda e Baltasar vivem este amor perfeito para a eternidade. Apesar
de tudo isto, Sete-Luas ainda desejava que a sua história tivesse ficado
escrita de forma diferente. Ansiava ter o seu amado de volta e viver o amor
silencioso e o companheirismo que conhecera antes – “Da próxima vez/Não vás/Sem
deixar destino ou direção”.
Inês B.
Inês B. (Bom-) || “Say Something” (A Great Big World e Christina Aguilera), Is There Anybody Out There?, 2014 // José Saramago, Memorial do convento, 38ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp.
371-373
A música “Say
Something” (“diz algo”) caracteriza perfeitamente, na quase totalidade da sua
letra, a relação que é estabelecida entre “Sete-Sóis” e “Sete-Luas”, na obra de
Saramago. Logo no início do romance, percebemos que desde o primeiro momento em
que se viram, Baltasar e Blimunda ligaram-se logo de uma maneira inexplicável,
mesmo não se conhecendo, como se estivessem inevitavelmente destinados a
ficarem juntos (“i’ll be the one if you want me to”/ “serei o tal se quiseres
que o seja”). Estavam unidos para sempre, completavam-se, num sentimento de
parceria também evidenciado na letra da música “anywhere i would have followed
you” (“ter-te-ia seguido para qualquer lugar”).
É já no final de Memorial do Convento que Baltasar decide
ir sozinho a Monte Junto só para ver como estava a passarola e consertar
estragos que ela tivesse, dizendo a Blimunda que estaria de volta no dia
seguinte. Blimunda advertiu-o para os perigos caso fosse apanhado por causa da
inquisição (“Dizes-me sempre que me acautele, eu vou e venho, mais cuidados não
posso ter”, p. 342) e Baltasar partiu. Porém, não regressou mais, o que começou
a preocupar Blimunda. Baltasar era parte de Blimunda, num amor absolutamente
desinteressado e verdadeiro. Blimunda tinha de saber onde estava Baltasar,
tinha de achá-lo, custasse o que custasse (“Nove anos procurou Blimunda.
Começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o sentido.”, p. 371), não
sabia mais o que fazer (“não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter
significado”, p. 371), não sabia mais onde procurar Baltasar (“I know nothing at all”/ “eu não sei mais
nada”). Blimunda, apesar de maltratada por conta da sua
busca por Baltasar (“Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre
descalça.”, p. 372), continuava a imaginar inúmeras vezes o seu reencontro, mas
Baltasar não chegava nunca, fazendo-a regressar à dura e difícil realidade que
era a procura sem fim do companheiro, mesmo sentindo-se fraca e sem poder para
mudar a situação (“And I am
feeling so small”/ “And I will stumble and fall” // “e eu estou e sentir-me tão
pequena” / “ e eu vou tropeçar e cair”) recusou-se a desistir
ao contrário do que é dito na música “say something, i’m giving up on you”,
“diz algo, eu estou a desistir de ti”).
Após estes nove longos
anos, finalmente encontra o amor da sua vida, o homem por que tanto ansiava,
condenado a morrer queimado no auto-de-fé e sem nada que Blimunda pudesse fazer
para o ajudar. Tinha chegado tarde de mais (“I'm sorry that I couldn't get to you”,“lamento não
ter conseguido chegar a ti”) parece ser a descrição perfeita para este momento
da obra. De todas as antecipações que Sete-Luas tivera deste momento nenhuma se
assemelhava à realidade horrorosa que agora experienciava e, sem mais nada
poder fazer, quebrou a promessa que há tantos anos fizera de que nunca olharia
Baltasar por dentro (“Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de
Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a
Blimunda.”, p. 373), vendo nesta acção a sua oportunidade de dizer um último
adeus ao seu único amor (“You're the one that I love / And I'm saying goodbye”,
“ tu és aquele que eu amo / e eu estou a dizer-te adeus”).
Gonçalo N.
Gonçalo N. (Suficiente(+)/Suficiente) || «Here
without you/Aqui sem ti» (Three doors down), Away from the sun, 2003 //
José Saramago, Memorial do
Convento, 44.ª edição, Lisboa, Caminho, 1998, pp. 369-373
A canção “Here
without you” é ideal para descrever o último capítulo da obra, capitulo esse
que descreve a demanda de Blimunda para achar Baltasar que havia ido verificar
a passarola mas não tinha regressado, e caminhando por todo esse Portugal e,
uma vez ou outra, por Espanha, finalmente encontra Baltasar em Lisboa sendo
julgado (queimado) num auto de fé no rossio.
Tanto na música
como em Memorial do convento, o
leitor/ouvinte é confrontado com um sentimento de distância entre duas pessoas
durante muito tempo, (“Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar…” e, na
música,“A hundred days have made me older, since the last time that I saw your
pretty face/Cem anos fizeram-me mais velho desde a última vez que vi a tua bela
face”). Como também mudaram a maneira de ser do sujeito poético, no os romance
os anos tornaram Blimunda mais forte (“Conhecendo todos os caminhos de pó e de
lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina,
dois nevões de que só saiu viva porque não queria morrer”), e, na música, estes
anos mudaram o eu do texto mais mentalmente (“A thousand lies have made me
colder, and i don’t think I can look at this the same/ Mil mentiras deixaram-me
frio, e não consigo olhar isto do mesmo modo”).
Em Memorial do convento Blimunda caminha por
entre vales e estradas e aldeias, ouvindo histórias de famílias que perderam
pais e irmãos, maridos e filhos (“Milhares de léguas andou Blimunda…foi das
praias e das arribas do oceano à fronteira, depois recomeçou a procurar por
outros lugares, por outros caminhos… se tendo dito que viera de Mafra lhe
perguntavam se conhecera lá um homem com este nome e esta figura, era meu
marido, era meu pai, era meu irmão, era meu filho, era meu noivo”) e na musica,
há também uma sensação de percurso durante o qual se vai trocam e falando com
as populações de maneira geral (“The miles just keep rolling as the people leave
their way to say hello, I’ve hear this life is overrated but I hope that it
gets better has we go/As milhas continua enquanto as pessoas dizem olá, ouvi
dizer que esta vida e sobrevalorizada, mas espero que fique melhor.”) Na canção
parece haver o sentido de felicidade quando se alcança o destino (na obra, ao
encontrar-se Baltasar) e de que tudo ficará bem, o que na obra , fica
subentendido.
Há também um
sentimento de exaustão da procura. Na obra este está espalhado por todo o
capítulo (“aparição entre os moradores… por onde passava, ficava um fermento de
desassossego… apenas para descansar sentada no chão ou apoiada numa coluna”).
No entanto, apesar de Blimunda exausta, a busca continua e o amor perdura
(“Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça duma vila, a
pedir esmola, um homem se aproximaria e em lugar de dinheiro ou pão lhe
estenderia um gancho de ferro…”). Na música estes mesmos sentimentos podem ser
encontrados em (“Everything I know, and anywhere I go, it gets harder but it
wont take away my love, and when the last one falls, when it’s all said and
done, its gets hard but it wont take away my love/Tudo o que sei, seja onde for,
está cada vez mais difícil mas continuarei a amar-te, quando o último cair,
quando tudo estiver dito e feito, é cada vez mais difícil mas continuarei a
amar-te”).
Para finalizar, o
refrão lembra novamente a distância e a forma como a simples memória da face de
Baltasar mantém Blimunda na sua busca durante tanto tempo: (“I’m here without
you baby, but you’re still with me in my dreams, I think about you baby and I dream
about you all the time, I’m here without you baby, but you’re with me in my
dreams, and tonight girl its only you and me/Estou aqui sem ti, mas continuas
nos meus sonhos, penso em ti e sonho contigo constantemente, e esta noite sou
apenas eu e tu.”).
Mar
Mar (Suf+/Bom-) || «O amor é mágico» (Expensive Soul), Utopia, ?// José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª
edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 63-74
A canção “O amor é mágico” pode ilustrar o amor
entre Blimunda e Baltasar. Nesta canção o amor é descrito como mágico (“e o
amor é rápido, sádico, às vezes é trágico, mágico”), e o amor entre Blimunda e
Baltasar foi um amor à primeira vista que tem algo mágico pois Baltasar até
disse “Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto…” (p. 74).
Baltasar disse que Blimunda o olhara por dentro e que algo nele não queria sair
dali (“Olhaste me por dentro”, p.74), e foi nesse momento que ia crescer um
grande amor.
Na música também se fala de amor à primeira
vista, tal como o do casal em questão: “Não dei por começar mas aconteceu”;
“tentei mostrar-te o louco que sou por ti desde esse dia”. Estas frases podem
ser interpretadas como se a pessoa da canção estivesse apaixonada pela outra,
desde o dia em que a viu, tal como Blimunda e Baltasar.
Também no amor de Baltasar e Blimunda existe dor
e sacrifício, ambos fazem tudo um pelo outro e amam se mais do que tudo. Neste
caso, o amor pode ser igual ao amor descrito na canção pois diz-se aí que o
amor é trágico e sádico, ou seja, que, para além de felicidade, também traz
dor. Por exemplo, todo o tempo que Blimunda passou à procura de Baltasar foi
muito difícil e trouxe-lhe imensa dor, pois ela sem ele não era ninguém, tal
como é dito numa frase da canção. Os versos “sinto falta de ti” e “desejava tanto
que estivesses aqui” podiam descrever a falta que Baltasar faz a Blimunda.
O
amor de Blimunda e Baltasar também tem a ver como aceitação pois Baltasar antes
queria saber porque Blimunda comia pão todas as manhãs de olhos fechados depois
de acordar, e, quando acabou por perceber o seu dom, acreditou nela e respeitou-o.
Na canção, também se fala de aceitação nas frases “não, sei que não sou
perfeito nem nada que se
pareça mas eu respeito o que vai na tua cabeça”,
pois o sujeito poético diz que, apesar de terem mentalidades diferentes,
respeita a outra pessoa, tal como Baltasar respeita o dom e as capacidades de
Blimunda, sem a julgar e acreditando nela, sem nunca a chamar “feiticeira” nem
outros nomes.
A
canção refere de vários temas, avultando o amor à primeira vista, como o de
Blimunda e Baltasar, que quando se conheceram, sentiram logo uma enorme ligação
um pelo outro, o que levou a que Baltasar seguisse Blimunda e quase que como
por um acto de magia, não quisesse ir embora e estivesse realmente apaixonado.
Refere ainda que o amor também traz dor, o que pode ser aplicado ao tempo em que
Blimunda esteve sem Baltasar e ao que ela sofreu por estar longe dele e o que
ela fez para o tentar encontrar durante tantos anos. E, por fim, aborda o facto
de que o amor também é aceitação, tal como sucede com Baltasar e Blimunda (Baltasar
aceitou e não contestou os dons de Blimunda e sempre a apoiou).
Com
isto tudo, a canção pode identificar se com o amor de Blimunda e Baltasar em
vários aspectos, mostrando que o amor é realmente mágico.
Núria
Núria (Bom-/Bom(-)) || “Linhas
Cruzadas” (Nuno Figueiredo e Jorge Benvinda / Nuno Figueiredo e Jorge Benvinda
com participação de Manuela Azevedo), Virgem
Suta, 2009 // José Saramago, Memorial
do Convento, 20.ª edição, Lisboa, Caminho, 1982, pp. 53-68
“Linhas cruzadas” recai
sobre o primeiro encontro entre Baltasar e Blimunda em Memorial do Convento.
Fala sobretudo das sensações e do desconhecido, a curiosidade e a atracção
entre duas pessoas que se encontram ou trocam impressões uma primeira vez. O
que se vê à primeira vista e o que se conhecerá mais tarde. Assim se encontram
semelhanças com os primeiros momentos entre as duas personagens na obra. Pode encontrar-se
ainda um pequeno olhar sobre os sonhos e objectivos da vida de cada um, como é
o de padre Bartolomeu, a passarola.
Embora em “Linhas
cruzadas” se olhe primeiro e só depois se dialogue, na obra, Blimunda,
reparando simplesmente no homem alto que estava a seu lado, pergunta-lhe, “Que
nome é o seu.”, aliviando a dor que sente pelo que acabou de ver, dor que não
pode ainda expressar. Baltasar responde sem problema. Só depois se olham Baltasar
e Blimunda. Sete-Sóis olha-a mas, cada vez que Blimunda o olha, sente “uma
aperto na boca do estômago” (p. 55) que, como vemos também sente o sujeito
poético (“só de imaginar que te vou encontrar me sobe à boca o coração.”). Algo
comum neste primeiro encontro.
“Perdido no teu olhar”
faz lembrar Sete-Sóis quando, sem saber o que fazer ou dizer, fica. Deixa-se
ficar, deixa-se levar por Blimunda, diz ele que ela lhe deitou o encanto. (p.56).
Assim se vê que tanto o sujeito poético como Baltasar se deixaram levar pela
atracção deste tão referido olhar, não oferecendo resistência; Baltasar
simplesmente ficou e Blimunda simplesmente o quis. Embora não saibam o que o
futuro lhes espera (“pode até nem passar de um capricho sem valor”), não têm o
que os prenda (“Mas porque raio hei-de evitar”). Também nesta estrofe se fala
do “calor”, o calor que Blimunda parece sentir no sangue que lhe corre “sobre a
esteira” (p. 57).
No poema há referência
aos quereres e aos poderes de cada um. É certo que a canção se refere à relação
ou encontro entre as duas pessoas faladas anteriormente, o querer e o poder
estar um com o outro — a dúvida que ainda existe sobre a atracção que sentem,
será só passageira ou realmente verdadeira? É comparável com o caso de Baltazar
e Blimunda; no entanto, o amor e o sonho de padre Bartolomeu pela passarola
também se encaixa aqui (“do querer ao fazer vai um enorme esticão [mas] querer
é poder e o nunca é uma invenção”), o tempo e dedicação que Bartolomeu gasta no
seu trabalho que ainda é recente, é pouco mais que um desenho (p. 67), mostra
que, para ele, o “nunca” está fora de questão e está disposto a ir até ao fim
com a ajuda de Sete-Sóis e Blimunda.
Na primeira estrofe
consegue-se sentir a grande semelhança com as sensações criadas e transmitidas
pela obra aquando dos primeiros momentos em que estão juntos Sete-Sóis e
Blimunda. De certa forma, revela o que na obra não é dito, mas que está
subentendido. No refrão vemos nitidamente a ponte para o que Baltasar sente no
momento em que estão ambos sentados em frente à lareira (p. 56) e, sem nada
dizer, ou não falando do que estão a sentir, ele se sente atrapalhado e confuso,
“perdido no [seu] olhar.” Só depois do refrão podemos pensar de forma
abrangente, tanto na relação entre os dois como na passarola. Ambos querem
satisfazer a atracção embora com medo e não sabendo se o que sentem não passará
“de um capricho sem valor”; no entanto, “querer é poder”. Assim pensava padre
Bartolomeu que, mesmo sabendo que poderia nunca vir a voar, achava que, com o
seu esforço e dedicação, um dia seria possível fazer subir a passarola. Tinha
confiança em si, pois até el-rei acreditava nele. Para além de revelador das
sensações de Sete-sóis e Blimunda na obra, este poema também nos fala dos
quereres e poderes que podem ser aplicados em muitos momentos da vida de cada
um e, neste caso, no grande feito de padre Bartolomeu.
Rita
Rita (Bom+) || «Não desistas de mim» (Pedro Abrunhosa/Pedro Abrunhosa), Longe,
2010 // José Saramago, Memorial do
Convento, 53.ª edição, Lisboa, Caminho, 2013, pp. 465-493
A
música, lançada no álbum Longe, de Pedro Abrunhosa, espelha os
sentimentos de Blimunda na madrugada em que, inquietada pela ausência de
Baltasar, parte para Monte Junto, «pelo caminho que ele traria», na expetativa
de o encontrar. "Leva-me para onde vais", soa o timbre rouco de Pedro
Abrunhosa, como pediu várias vezes Blimunda a Baltasar, quando este partia para
«remediar os estragos do tempo» da máquina de voar, entregue às trepadeiras,
escondida nas «ramagens altas», na Serra do Barregudo, contrariando-lhe sempre
a vontade, por considerar que o seu «dia ainda não» tinha chegado.
Chegada
ao «ninho de uma grande ave que levantou voo», e depois de por ele gritar e não
obter resposta, percebe «que desde o princípio soubera que viria encontrar
deserto» aquele lugar. Assim, e nos nove anos que se seguiram, percorreu
Portugal à procura de Sete-Sóis, conhecendo «todos os caminhos do pó e da
lama», perguntando, por onde passava «se tinham visto por ali um homem» com «a
mão esquerda de menos» e «barba toda e grisalha». Apesar da «sola dos seus pés»
se encontrar cansada, «espessa, fendida como uma cortiça», não perde a
esperança, e continua por «milhares de léguas» a apregoar o que viera dizendo
caminho fora, há tantos anos, que lhe perdera a conta, como se Baltasar lhe
suplicasse que não desistisse dele, como é, aliás o título e refrão da música
escolhida: "Não desistas de mim".
Os
primeiros dois versos da canção, "A porta fechou-se contigo/Levaste na
noite o meu chão", poderiam ser facilmente desabafos desolados de
Blimunda, marcados pela profunda tristeza de perda e de fracasso na procura do
seu homem. Reencontram-se em Lisboa, num
Auto-de-fé da Inquisição, ironicamente nas mesmas circunstâncias em que se
conheceram, e é desta forma que Blimunda recolhe a vontade que lhe pertence,
impedindo que se perca para sempre: ("Não te percas agora"), tornando
eterna a história de amor que protagonizaram e a vida quotidiana que
partilharam.
"Eu
sei que houve um tempo em que tu e eu/Fomos dois pássaros loucos", escreve
Pedro Abrunhosa, adivinhando as lembranças de um "passado deserto" de
Blimunda, fazendo aqui também referência ao projeto de vida que, sendo a
princípio do padre Bartolomeu, passa a pertencer, igualmente, ao par, que tudo
faz para o tornar tangível. "Voámos pelas ruas que fizemos céu", é
outro verso que, invertido, está em clara sintonia com Memorial do Convento.
O casal ergueu-se nos ares, de facto, voando pelos céus, de que fizeram
estradas, a bordo de um engenho de nome passarola, «espírito santo» para o povo
atónito que o observou, pouco crédulo do que via.
A união
pura entre Baltasar e Blimunda revê-se, mais uma vez, na voz de Abrunhosa, que
afirma: "Somos a pele um do outro. Somos metades iguais". Como
adverte a canção, "Ainda sei de cor o teu ventre... e o teu corpo por
dentro" (curioso aqui, por Blimunda conseguir «ver por dentro dos corpos»).
A promessa que faz a Sete-Sóis no dia em que se conheceram «Nunca te olharei
por dentro», é cumprida religiosamente durante toda a vida, até ao momento em
que o vê, queimado na fogueira, "e a pele na pele de quem se quer
tanto", que figura o amor sobrenatural destes dois seres, que quebra todas
as barreiras do físico e concreto, face aos limites que a sociedade impõe ao
mais belo sentimento que o coração humano suporta.
Francisco D.
Francisco (Suficiente+) || “Aqui ao luar” (Resistência/Resistência), Noite, 1985 // José Saramago, Memorial do Convento, 16.ª edição, Lisboa, Caminho, 1986, pp. 56-57 e pp.
205-224
Em “Aqui ao luar”, música
da autoria dos Resistência, encontram-se várias semelhanças com Memorial do Convento, de José de Saramago. O narrador faz referência
ao sonho da passarola e ao amor entre Blimunda e Baltasar, os quais estão também
evidenciados de certa forma pelos Resistência, na sua canção. Estes dois
clássicos portugueses, música e literatura, conjugam-se em certos pontos na perfeição,
como iremos verificar.
Após o grande evento
que era o auto de fé, no qual Blimunda e Baltasar se conhecem, os dois vão para
casa dela, deixando ela a porta aberta para que o recém-conhecido possa entrar.
Eles estão acompanhados pelo padre Bartolomeu de Gusmão. “Ela sorriu e ele foi
atrás”, na letra da música. A referência converge com o amor vivenciado pelas
personagens de Saramago, que acabam por se envolver nessa mesma noite. Ao
jantar, Blimunda serve Baltasar e Bartolomeu e espera que Baltasar acabe para
comer pela sua colher (“Esperou que Baltasar terminasse para se servir da
colher dele” [cap. V]). Então o padre Bartolomeu deita bênção em tudo o que os
rodeia e declara-os unidos (“(...) declaro-vos casados." [cap. V]; “Deitou-lhe bênção,
com ela cobrindo a pessoa, a comida e a colher, o regaço, o lume na lareira, a
candeia, a esteira no chão, o punho cortado de Baltasar” [cap. V]). Em seguida,
Bartolomeu deixa-os e eles vão dormir juntos. Blimunda era virgem e entrega-se
a Baltasar (“Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda
persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração” [cap. V]). Por
sua vez, na canção é também referido o amor, que podemos comparar ao de Baltasar
Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas (“ela despediu e ela o satisfaz”, refere-se na
música).
Por outro lado, o
sonho de construir e elevar a passarola foi conseguido pela tríade, constituída por Bartolomeu, Baltasar e Blimunda. Sobrevoaram Lisboa e aterraram
em Monte Junto. Com o enlouquecimento do Padre Bartolomeu de Gusmão (“era o
padre com um ramo inflamado que pegava fogo à máquina” [cap. XVI]), este foge. Blimunda e Baltasar ficam ao luar à espera de
que Bartolomeu voltasse (“Aqui ao luar ao pé de ti”). Após uma longa noite,
decidem tapar a passarola, para que não voltasse a voar (“Se não estenderes a
vela, se não tapares bem tapadas as bolas de âmbar, a máquina vai-se sozinha” [cap.
XVI]) e voltaram para Mafra pelo mesmo sítio por onde o padre fugira para ver
se o encontravam, mas sem sucesso (“Passa a noite/Passa o tempo devagar/Já é
dia/Já é hora de voltar”), ficando o sonho, a passarola, estendia e coberta de
ramos (“Só o sonho fica só ele pode ficar’), referência ao sonho construído ao
longo de vários anos, tendo de ficar por ali para não serem acusados pelo Santo
Ofício. Mais tarde, vem-se a saber pelo músico Domenico Scarlatti que o Padre
Bartolomeu de Gusmão foi encontrado sem vida em Toledo, localidade espanhola (“padre
Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha, para onde tinha
fugido, dizem que é louco” [cap. XVII]).
Sara
Sara (Bom(-)/Bom) || «Run»
(Daughter/Daughter), Run, 2012 //
José Saramago, Memorial do Convento,
53.ª edição, Lisboa, Caminho, 2013, pp. 258-264
A música “Run” dos Daughter, ou grande parte
dela, enquadra-se numa parte do enredo de Memorial do Convento, a fuga de
Baltasar, Blimunda e Bartolomeu Lourenço na passarola (“the fire is coming, So
I think we should run”/”O fogo está a aproximar-se, então acho que devemos
fugir”). O “fogo” pode ser considerado metáfora do problema que começa a aproximar-se
dos três, a Inquisição (na obra: “Temos de fugir, o Santo Ofício anda à minha
procura […] Vamos fugir na máquina”).
Apercebemo-nos de que o enunciador, na música,
se aparenta com Blimunda, que narra detalhadamente, e à medida que acontece, a
fuga aérea. Existe, porém, uma pequena diferença na música. O sujeito
identifica-se apenas a si e a outra pessoa como fugitivos enquanto sabemos que
na obra de Saramago os fugitivos são três.
“While I powder my nose, He will powder his
guns”/”Enquanto passo pó no meu nariz, ele carrega as suas armas”, em analogia
com o livro, pode corresponder ao momento em que se preparam para sair. Em vez
das armas “ele”, que parece ser Baltasar, não carrega arma alguma, mas prepara
a passarola para o voo. No livro, esta passagem corresponderia a “a arca já não
está, transportaram-na para dentro da passarola, que mais nos falta, os
alforges, alguma comida […]”. Também a passagem “While
I put on my shoes, He will button his coat and we will step outside. Checking
out the coast is clear on both sides. We don't wanna be seen”/”Enquanto eu
calço os sapatos, ele abotoa o casaco e saímos para a rua. Vemos se a costa está
livre, de ambos os lados. Não queremos ser vistos” se pode relacionar com esse
momento, embora, ao invés de saírem para a rua, Baltasar, Blimunda e Bartolomeu
subam para a passarola.
O
refrão (“Run, run, run, run... Oh run,
run, run, run… Run, run, run, run.. Ooh and run, run, run, run… Run, run, run,
run… Run, run, run, run”/”Fugir, fugir, fugir, fugir… Oh fugir, fugir, fugir,
fugir… Fugir, fugir, fugir, fugir… Ooh e fugir, fugir, fugir, fugir… Fugir,
fugir, fugir, fugir… Fugir, fugir, fugir, fugir…”), marcado pela repetição
expressiva da mesma palavra, “fugir”, mostra a incontrolável e urgente
necessidade de fugir, de se afastar o mais possível daquele lugar, de modo a
não serem presos (“Aonde vamos, e o padre respondeu, Lá aonde não possa chegar
o braço do Santo Ofício, se existe esse lugar”).
Ao longo da música são apresentadas constantes
reflexões acerca do que se passa (“I don't know what we're doing, I don't know
what we've done”/”Não sei o que estamos a fazer, não sei o que fizemos”, “I
think we should run”/”Acho que devíamos fugir”, “So we'll just keep each other
as safe as we can. Until we reach the border, until we make our plan”/”Então manter-nos-emos
o mais seguros que pudermos. Até chegarmos à fronteira, até traçarmos o nosso
plano”), uma delas que evidencia o amor entre Blimunda e Baltasar (“Will you
stay with me my love? Till we're old and grey”/”Ficarás comigo meu amor? Até
sermos velhos e grisalhos”).
Existe também uma passagem na música que parece
referir-se ao estado em que o padre Bartolomeu se encontrava (“I don't know
where he's going I don't know where he's been. But he is restless at night, He
has horrible dreams.”/”Eu não sei onde ele vai, não sei por onde ele tem
andado, mas ele está inquieto à noite, tem sonhos horríveis.”), como se adivinhasse a aproximação do Santo
Ofício (no livro: “Padre […] de que é que tem medo, e o padre […] estremece,
levanta-se agitado […] e tendo voltado responde em voz baixa, Do Santo Ofício”)
e demonstrando as constantes dúvidas acerca da sua fé em Deus.
A canção acaba com os mesmos quatro versos com
que começa (e outros quatro também do início) como que a relembrar-nos,
resumidamente, do que se está a passar, reforçando-se, no último verso, a ideia
de que têm desesperadamente de fugir (”So I think we should run”/”Então acho
que devíamos fugir”).
Miguel B.
Miguel B.
(Suficiente+) || «Promised land» (Joe Smooth), Rejoice, 1990 // José
Saramago, Memorial do Convento,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1984, pp. 57-69
Esta canção de Joe Smooth pode ser associada a
vários momentos de Memorial do convento, de José Saramago, pois a este
está ligada à ideia da capacidade imaginária de o Homem voar de algum modo,
mais precisamente, de passarola.Imagino com muitas cores e voz o padre
Bartolomeu a virar-se para Baltasar e Blimunda e dizer, em português, é claro: “Sisters,
brothers, we'll make it to the Promised Land”.
Neste cenário, a “terra prometida” não seria de
facto uma terra: as próprias nuvens e o céu azul constituiriam este paraíso de
que nos falam. E, visto que os padres têm o habito de tratar todos como se da
sua família fossem, não custa acreditar na possibilidade de esta frase ter sido
dita pelo padre Bartolomeu em inglês.
No VI capítulo, o padre Bartolomeu conversa com
Baltasar sobre os céus, sobre os pássaros e sobre os anjos, e acaba por
convencer Baltasar de que não são apenas os pássaros e anjos que conseguem voar
e que o homem o vai conseguir também eventualmente. Este momento de comparação
entre o voo de pássaros, anjos e pessoas pode, por sua vez, ser relacionado com
os anjos caídos que abrirão as asas como pombos, nos agarrarão a mão e nos
levarão com eles para a “terra prometida” da canção de Joe Smooth.
Podemos também pensar nos ritmos inovadores para
a época desta música de house e ver uma ligação com a inovadora passarola, que
agora foi banalizada nos tempos atuais pela TAP e companhia, tal como o house
foi banalizado em milhares de versões modernas do mesmo estilo.
Em Memorial
do convento, as personagens principais têm o trabalho pré-destinado de
construir a passarola e fazê-la voar, não só para provar à humanidade que
conseguem voar, mas para afirmar que tudo é possível, quando se está
determinado. Uma mensagem semelhante pode ser tirada desta música “funky”: a de
que, se acreditarmos, é possível chegar à terra prometida e que o espírito de
amizade é um fator que não pode ser substituído nem desvalorizado e que é uma
força muito poderosa.
O eu poético mostra descontentamento com a
violência, com as lutas dos humanos e com a tristeza que reina onde o dinheiro
manda e todos obedecem. Para ele, voar até com os anjos para a terra prometida
é a solução. Blimunda, Baltasar e Bartolomeu também se ressentem do mundo em
que estão, seja pela guerra que tira membros, a igreja que tira conhecimento e
familiares, persegue e tira tudo a todos os suspeitos do fora do normal e os que
não seguem Deus e a sua palavra; obriga a trabalhos escusados, por caprichos,
por inveja, só causa ilusões, lágrimas e revoltas, nos reis, no povo e… no povo
outra vez. Para eles, não há solução, apenas uma vida de segredos, corridas e
desgostos. Mas são estes segredos divulgados, estas corridas ganhas e estes
desgostos ultrapassados que, realmente, elevam a raça humana para patamares
semelhantes aos dos anjos com asas às costas e das passarolas com pioneiros nos
seus controlos.
Alexandre C.
Alexandre C. (Bom+/Muito Bom-) || “Há Tanto Tempo (Espero Por Ti)”
(Jorge Palma), Norte, 2004 // José
Saramago, Memorial do Convento,
Lisboa, Caminho, 24.º e 25.º capítulos
Esta música de Jorge
Palma, observando-a da perspetiva de Memorial
do Convento, pode ser encarada como uma carta escrita por Blimunda durante
as noites que passou acordada à espera do regresso de Baltasar.
Baltasar tinha ido a
Monte Junto, a fim de ver o estado da passarola e perceber se seria possível
reparar o engenho e, sendo-o, quanto tempo levaria. Chegado ao local onde
haviam deixado a máquina de voar, Baltasar sentiu-se aliviado ao ver que
ninguém a tinha roubado ou destruído. Lá estava ela, “no mesmo lugar, de asa
descaída, o seu pescoço de ave confundido com as ramagens mais altas.”
Distraído, ao andar pela máquina de forma a analisar que materiais seriam
necessários para a consertar, pisou duas tábuas em mau estado, que cederam.
Tentando amparar a queda, colocou o gancho do braço na argola que servia para
afastar as velas, acabando por levantar os panos. A máquina ergueu-se no ar e,
com ela, Baltasar voou.
Blimunda, nessa
noite, não tendo qualquer notícia, não dormiu. Estava preocupada. Ansiosa.
Angustiada. Passou toda a noite, “na solidão do seu lugar”, a pensar no que
poderia ter acontecido, à espera de que Baltasar voltasse e lhe “fosse aquecer
a cama”. Sentia um vazio. Não estava habituada à ausência do amado (“Sempre
habitaste o meu coração. / És a razão do meu fervor. / Mas não te vejo a cara,
/ Não sinto o teu calor”). Decidiu, portanto, ir para um valado observar toda a
gente que ia para Mafra, na esperança de avistar Baltasar. De nada serviu,
tendo, por isso, regressado a casa a tempo de cear.
Mais uma noite
passada em branco sem sinal de qualquer novidade. “Na primeira claridade”,
decidiu prontamente ir buscar algum alimento e partir em busca do marido. E é
aqui que identifico a maior e mais significativa diferença entre a trama de Memorial do Convento e a música da
autoria de Jorge Palma. Esta música fala sobre alguém que está numa espera já
duradoura, que parece já quase eterna (“Há tanto tempo espero por ti / Na
solidão do meu lugar”). E eu não diria que esse seja o caso de Blimunda. Ela
não aguentou a espera e, ao fim de apenas duas noites, partiu de imediato à sua
procura, apesar dos conselhos em contrário (“Que desassossego é este, mulher,
ainda não estamos fora do que Baltasar prometeu, talvez aí chegue pelo
meio-dia, tinha muito que consertar na máquina, tão velha, à chuva e ao vento,
ele preveniu”).
Blimunda não perdeu a esperança e nunca desisti u de o procurar. A sua demanda era mais importante que tudo
o resto. Este aspeto está também expresso no poema (“Podes contar ao mundo /
como eu te procurei. / Quando me for embora, / Diz que te encontrei”), apesar
de os protagonistas da obra de José Saramago terem tido um desfecho claramente
mais desafortunado que o sujeito poético de “Há Tanto Tempo (Espero Por Ti)”.
Daniel
Daniel (Bom) || “Momento”
(Pedro Abrunhosa/Pedro Abrunhosa), Momento,
2002 // José Saramago, Memorial do
Convento, 43ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 369-373
A canção “Momento”, de Pedro Abrunhosa,
apresenta-nos uma lista descritiva de momentos comuns à vida de cada um de nós:
uns, mais felizes e positivos, como aproveitar “Um Domingo perfeito” depois de
uma semana de trabalho desgastante; e outros momentos que nos deixam tristes ou
aborrecidos por acontecerem na pior altura possível (por exemplo, estar “Um
café a fechar” quando nos preparávamos para lá ir comer ao fim da tarde). Por
isso, não será surpreendente a descoberta de vários pontos de contacto entre
esta música e Memorial do Convento.
A letra desta canção apresenta um paralelismo
evidente com o último capítulo da obra, uma
vez que é possível relacionar os vários momentos da viagem de Blimunda em busca
de Baltasar, que desapareceu no dia em que tinha ido verificar o estado da
passarola (máquina conceptualizada pelo Padre Bartolomeu Gusmão com o objectivo
de concretizar o seu sonho de conseguir fazer o ser humano voar), “durante nove
anos” (p. 369) por todos os lugares de Portugal – trilhos de terra, florestas,
montanhas praias, cidades e igrejas (“Conheceu todos os caminhos do pó e da
lama, a branda areia, a pedra aguda”, p. 369).
A viagem de Blimunda foi, certamente, a mais
longa da sua vida por nunca saber se um dia encontraria Baltasar vivo ou morto
em algum lugar (“Uma estrada infinita”), mas também a mais perigosa, visto que
ultrapassou várias adversidades climatéricas como “geadas” e “nevões” que não a
mataram porque “não queria morrer” (p. 369), sobreviveu às vagas de calor e ao
sol que lhe queimavam a pele e o corpo, deixando-a “como um ramo de árvore
retirado do lume antes lhe chegar a hora das cinzas”. Tornou-se numa entidade
popular conhecida como a “Voadora” (p. 369), por vezes causando medo e apreensão
nos locais onde passava – “aparição entre os moradores das vilas, susto nos
pequenos lugares e nos casais perdidos.” (p. 369).
Um pormenor importante desta viagem de Blimunda
é o facto de ter evitado a entrada em igrejas se estas tivessem pessoas lá
dentro. Esta decisão advém, em parte, da memória do frade que matou quando ele
a tentava violar, mas também dos próprios princípios de respeito com que teria
sido educada (“entrei por um momento, vou-me já embora, esta não é a minha
casa”, p. 370).
O momento em que Blimunda encontra Baltasar,
morto ou quase morto numa fogueira da Inquisição, é o que melhor se relaciona
com a canção, pois é possível verificar que existem partes da letra que
representam várias sensações e sentimentos de Blimunda inferidos pelo leitor,
uma vez que a descoberta acontece ao longo de um único parágrafo em que o
narrador realiza uma descrição do aspecto físico de Baltasar (“Naquele extremo
arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida,
prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo”, p. 373). Blimunda parece não
se ressentir muito aquando do encontro com Baltasar, limitando-se a recolher a
vontade dele para si mesma, como memória da sua relação com a personagem
(“Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas
não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda”, p. 373). No
entanto, podemos ver que este comportamento funciona como um disfarce dos
verdadeiros sentimentos de Blimunda na altura em que encontra Baltasar na
fogueira, se recorrermos à letra da canção “Momento” (“Um choro escondido”, “Um
adeus para sempre”, “Uma ferida que dói”, “Um suspiro escondido/ Numa pele de
mulher”).
Marta
Marta (Muito Bom-) || «Solidão» (Caetano Veloso / António Carlos Jobim, Alcides
Fernandes), Totalmente Demais, 1986
// José Saramago, Memorial do Convento,
48ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp.460-493
Encontro em «Solidão» semelhanças com o estado
de espírito evidenciado por Blimunda e verificável em crescente intensidade nos
dois últimos capítulos de Memorial do
Convento. Este sentimento de solidão terá sido causado pelo involuntário
mas permanente abandono de Baltasar, especialmente decorridos os nove anos de
incansável procura sem resultados por parte de Blimunda.
A partir da noite que precede a ida de Baltasar
para junto da passarola, Blimunda fica inquieta com a situação, quase
pressentindo que aquela viagem seria diferente de tantas outras. O próprio leitor
fica com esta ideia apenas insinuada, que vai provocando em si um sentimento de
angústia, agravado pelo que se chega a entender como a derradeira despedida -
«Abraçaram-se os dois no recato de uma árvore de ramos baixos, entre as folhas
douradas do outono, pisando outras que já se confundiam com a terra,
alimentando-a, para reverdecerem de novo. […] Adeus Blimunda, Adeus Baltasar»
(pp. 460 e 461).
A partir
daí, Blimunda vai ganhando consciência da possibilidade de que Baltasar se
tenha deparado com alguma situação adversa, uma vez que anoitece e não há
sinais do seu homem («O dia passa», «A noite vem»), numa ansiedade partilhada com o leitor.
Quando se apercebe do sucedido, Blimunda parte
numa viagem, com o objetivo de encontrar o seu amado, nunca perdendo a
esperança. Esta viagem é rapidamente resumida no livro - «Durante nove anos,
Blimunda procurou Baltasar […]» -, talvez porque, apesar da diversidade de
caminhos percorridos e adversidades enfrentadas, a viagem baseara-se fortemente
num ciclo de perguntas em vão e respostas rotineiras - «Onde chegava, perguntava
se tinham visto por ali um homem com estes e estes sinais […]» (p. 487). A
frustração sentida por Blimunda pode ser traduzida por três versos da canção:
«Guardo comigo / A memória do teu vulto / Em vão».
Por nove anos Blimunda procura Baltasar, sofrendo
sozinha («Sofro calado», «Na solidão»), sem nunca obter notícias, boas ou más.
Dele, «nem de morte havia indício, quanto mais de vida» (p.490). Mal podemos
imaginar a dor sentida por Blimunda. Podemos porém inferir a sua força de
vontade, a sua coragem, a sua esperança, a sua bravura. Não nos é indicado, no
romance, o mais pequeno sinal de fraqueza ou de vontade de desistir, pelo que
talvez existam algumas discrepâncias relativamente à letra da canção, cujo
sujeito poético nos diz: «Cansei de buscar»; e tal não se verifica no caso de
Blimunda.
Entendo a letra desta canção como um possível
lamento ou desabafo, por parte de Blimunda, que, como ser humano que é, tem
fraquezas, apesar da sua coragem, e poderíamos supor que teria a necessidade de
descansar momentaneamente da própria força e verbalizar os sentimentos. Podemos
inferir que Blimunda se questionasse constantemente em relação ao paradeiro do
seu amado, desejando que este a continuasse a amar como outrora («Eu vou rezar
/ Pra você me querer / Outra vez / Como um dia me quis»). Poderia também
imaginar o bem-estar do seu homem, noutras condições, desejando apenas que ele
regressasse um dia para junto de si («Quando a saudade aperta / Não se acanhe
comigo / Pode me procurar”).
Por entre as suas infindáveis questões sem
resposta, a viagem de Blimunda chega ao fim, em Lisboa - «Encontrou-o. Seis
vezes passara por Lisboa, esta era a sétima» (p. 492) -, porém, contrariamente
ao que idealizara, depara-se com o amado ardendo na fogueira do Auto-de-Fé. E
então, num gesto de quem deseja perpetuar aquela união, chama a vontade de
Baltasar, que «não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda»
(p. 293). «Afinal o amor existe sobre todas as coisas» (p. 460).
Gonçalo V.
Gonçalo V. (Bom-) || «Tocando em Frente» (Almir Sater-Renato
Teixeira), 1991 // José Saramago, Memorial
do Convento, 48.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 487-493
Na canção composta por catorze estrofes, não há rima nem métrica regular. Podemos
estabelecer vários pontos de contacto entre o poema e Memorial do Convento. O sujeito poético, começando pelo título,
tenta passar a mensagem de que nunca devemos desistir dos nossos objetivos, indo
para a frente com eles e não ficando à espera de que as coisas aconteçam.
Blimunda, percorrendo quilómetros durante nove anos em busca de Baltasar
(“Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar”) nunca se deixou ir abaixo com
as tristezas nem com as dificuldades pelas quais teve de passar (“bosques”;
“meio de searas”; “pela longa estrada eu vou”), porque sentia a necessidade de
fazer avançar a sua vida (“Tocando em frente”) e, como tal, o seu único
objetivo era reencontrar Baltasar porque fora com ele que saboreara a vida (“O
sabor das massas/E das maçãs”) e com ele “partilhou o pão”, aprendeu o
verdadeiro sentido da vida e, com a sua ajuda, conseguiu pôr a passarola a
voar.
Muitos julgavam Blimunda doida por andar à
procura de Baltasar (“Julgavam-na doida, mas, se ela se deixava ficar por ali
uns tempos, viam-na tão sensata em todas as mais palavras e ações que duvidavam
da primeira suspeita de pouco siso”); contudo, esta busca incessante (“milhares
de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça”) representa para si a procura
de alcançar o seu principal objetivo (“por onde passava, ficava um fermento de
desassossego, os homens não reconheciam as suas mulheres, que subitamente se
punham a olhar para eles, com pena de que não tivessem desaparecido, para enfim
poderem procurá-los”). Baltasar era, para Blimunda, essencial, a sua presença
era fulcral em todos os instantes (“É preciso amor/Pra poder pulsar/É preciso
paz pra poder sorrir/É preciso a chuva para florir”) e, por isso, o reencontro
era o seu maior desejo, uma vez que não era capaz de o trocar por nenhum outro
homem, ao contrário das inúmeras mulheres que conhecera durante os nove anos de
intensa busca (“Olhos que água gerassem encontrou-os também, e tantos, se tendo
dito que viera de Mafra lhe perguntavam se conhecera lá um homem com este nome
e esta figura, era meu marido, era meu pai, era meu irmão, era meu filho, era
meu noivo, levaram-no forçado a trabalhar no convento, por ordem de el-rei, e
nunca mais o vi, não voltou mais, terá morrido por lá (…)”).
Quer na composição de Almir Sater quer na
sequência xv de Memorial se ilustram
dois desfechos cujo principal objetivo é ser feliz apesar de o desenlace ser
bastante mais cruel em Memorial do
Convento. No poema, o sujeito poético afirma que necessitamos de
experienciar coisas novas e percorrer novos caminhos porque cumprir a vida é
simplesmente desfrutá-la e compreendê-la (“Penso que cumprir a vida/Seja
simplesmente/Compreender a marcha/E ir tocando em frente”). Contudo, a vida
altera-se, os desafios que nos são colocados são novos e diversos e, por isso,
num dia as pessoas amam e, no outro dia, já não têm ninguém para amar, tudo
passa e, como tal, cabe a “Cada um de nós compor a sua história”. Blimunda, ao
ver que Baltasar desaparecera, sentiu que não poderia permanecer no mesmo
local, teve de percorrer uma “longa estrada” para procurar Baltasar que, para
si, era a essência da vida. O amor entre eles era infindável e, como tal,
Blimunda sentia-se na obrigação de partir em busca desse amor inspirador (“É
preciso amor/Pra poder pulsar”).
Quando, passados nove anos, Blimunda o encontra,
estava em jejum para poder ver. Em Lisboa, num auto de fé realizado no mesmo
lugar onde se conheceram (“São onze os supliciados. A queima já vai adiantada,
os rostos mal se distinguem.”) Blimunda chegou-se à frente e viu que Baltasar
estava a ser queimado (“Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão
esquerda”) e, no momento de ele morrer, Blimunda colheu-lhe a vontade. Ela
acabou por o procurar por amor. Encontrou-o por amor e, por isso, construiu a
sua história (“Cada um faz a sua história”) e só depois de o encontrar é que
realmente se sentiu realizada e feliz.
Alexandre A.
Alexandre A.
(Suficiente+) || «O capitão fantástico» (Miguel Araújo), ? // José Saramago, Memorial do Convento, ?, ?, ?
Em “O capitão
fantástico”, de Miguel Araújo, é possível interpretar uma mensagem da
impotência de uma figura de alta patente, um capitão. É possível identificar
semelhanças do comportamento do capitão com o comportamento do rei de Portugal
de que a obra de José Saramago, Memorial
do Convento, se ocupa, D. João V.
O rei de que a obra se
ocupa caracteriza-se como um rei vaidoso, egocêntrico e megalómano, que governa
consoante os deus desejos e sonhos (“Em rei seria defeito a modéstia”, p. 12),
semelhanças encontradas em “O capitão fantástico”, onde o capitão é sonhador
(“Já foi à lua e já voltou”; “Que é sempre tão difícil manter os pés no chão”).
No 1.º capítulo de Memorial do Convento, o autor fala-nos
de uma construção em réplica da basílica de São Pedro de Roma que o rei está a
construir (“(...) é a basílica de S.Pedro de Roma que el-rei está a levantar”,
p. 12 ; “A Basílica de S.Pedro já não tem segredos para D.João V (...) mas o
resultado final é sempre o mesmo, uma construção de madeira, uns legos, um
meccano (...)”, p. 287), mostrando assim ao leitor a criança que ainda existe
em D. João V, característica partilhada também pelo “capitão fantástico” (“O
capitão fantástico usa um revólver de plástico (...) e usa como capa a saia da
mãe”).
D. João V desejou
construir a Basílica em tamanho real em Portugal, mas tal decisão viria a
revelar-se extravagante, visto que a obra necessitaria de bastante tempo
(“talvez nem daqui a duzentos e quarenta anos o conseguíssemos (...)”, p.290),
o rei “caiu em melancolia ao ver, na imaginação, o mortuário cortejo dos seus
descendentes, (...) morrendo cada um deles sem ver a obra acabada, para isto
nem vale a pena começar” (p. 291).
D. João V, não podendo
realizar o seu sonho de possuir uma basílica com a capacidade que a Basílica de
Roma tem, ordenou então aos seus homens que a construção do convento fosse feita com o intuito de lá
viverem 300 frades, alteração que iria ter custos agravados na fortuna portuguesa,
partilhando assim com o “capitão fantástico” sinais de óbvio egoísmo (“Sozinho
num fantástico móbil, e nesse vai e vem”).
D. João V protege o
padre Bartolomeu da inquisição, dando-lhe abrigo na quinta do duque de Aveiro,
em São Sebastião da Pedreira, para poder construir a passarola longe da vista
de curiosos. Esta proteção, possivelmente, justifica-se com o gosto pela
construção de brinquedos extravagantes que se demonstra ao longo desta epopeia.
Nesta possível
comparação, talvez um pouco forçada, podemos encontrar a história de dois homens
cuja função é representarem e comandarem pessoas, mas que apresentam nas suas
características pessoais sinais de egoísmo.
Maria Inês
Maria Inês (Suficiente+/Bom-)
|| “Pedra Filosofal” (António Gedeão / Manuel Freire), Pedra Filosofal, 1993 // José Saramago, Memorial do Convento, 3ª ed., Lisboa, Caminho, 1983, pp. ?-?
Em “Pedra Filosofal”, poema de António
Gedeão, cantado por Manuel Freire, celebra-se o valor e o poder do sonho na
vida. O sonho é uma coisa não material, mas que se torna “Tão concreta e definida / Como outra coisa qualquer” e é ele
que “comanda a vida”, tal como toda a magia subentendida em Memorial faz que “a passarola voadora”
voe e haja um amor absoluto como o de Blimunda e Baltasar. Para mim, o sonho
pode então ser comparado com o sonho de voar de Bartolomeu que conseguiu
convencer um Baltasar duvidoso de que os homens também voassem, quando sonham,
e conseguissem concretizar esse sonho:
“Agora me
disse aquele meu amigo João Elvas que tendes apelido de Voador, padre (…)
porque eu voei, e disse Baltasar (…) só os pássaros voam, e os anjos, e os
homens quando sonham, mas em sonhos não há firmeza.”; “Mas voou em pessoa, ou
só voaram balões, foi o mesmo voador que eu, voar balão não é voar homem, o
homem tropeça, depois corre, um dia voará, responde padre Bartolomeu Lourenço” (p.
65). Percebemos, então, que, dentro de Sete-Sois, vai crescendo um desejo de
voar, vai acreditando cada vez mais que conseguirão voar, literal e
metaforicamente sonhando com o “Mapa do mundo distante” – “alguma alma
impaciente por voar, apenas à espera de que a aliviassem do lastro corporal e a
pusessem de frente para o vento que vem do mar largo, ou do fundo do universo,
ou do último lugar de além. Sete-Sóis também se ajoelhara, (…) enquanto se
persignava”.
Claro que
Blimunda vai tendo um papel importante nas crenças de Baltasar com os seus
poderes peculiares e com os seus olhos mágicos (“Sete sóis está calado, apenas
olha fixamente para Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um
aperto de boca de estômago”) e assim fica como encantado por ela— “deitaste-me
um encanto” (pag 56) —, como se ela tivesse a magia de um alquimista para
encantar Baltasar ou recolher vontade para mais tarde voarem, não só no amor,
mas no ar dentro da passarola, “tal como magia, / Que é retorta de alquimista”,
que exemplifica toda a ambição e o espírito crítico que se estavam a
desenvolver no povo nesta época de mudanças em Portugal, época em que os sonhos
e a coragem dos Portugueses se materializam pelas mãos dos mesmos, tal como
aconteceu nos descobrimentos (“Caravela quinhentista, / Que é Cabo da Boa-esperança”).
A uma
certa altura na obra, uma quarta pessoa também sabe o segredo da passarola, o
músico Domenico Scarlatti. Tal como Baltasar duvida no início, o único sonho
para ele é aquilo que se pode pôr a voar, a música e a arte (“Parecem jogos de
palavras, as obras, as mãos, o som o voo, Disseram-me padre Bartolomeu de
Gusmão, que por obra dessas mãos que se levantou ao ar um engenho e voou (…)
gostaria de entender melhor (…) quanto imagino, só a música é aérea”, p. 166).
Quase que conseguimos imaginar o italiano “Escarlate” no seu piano, a cantar “Eles
não sabem que o sonho / É tela, é cor, é pincel, / Base, fuste ou capitel, /
Arco em ogiva, vitral, / Pináculo de catedral,/ Contraponto, sinfonia”. Por
simbolismo e indiscretamente Saramago põe o músico a tocar, enquanto que os
três amigos vão dentro da passarola a voar.
Os próprios
Sete-luas, Sete-sois e Bartolomeu podem personificar esta coisa tão bela na sua
complexidade e incerteza que é o sonho e tudo o que tem uma força inexplicável
e invisível na vida prática. Eles têm a curiosidade de uma criança, são
considerados loucos e obscuros pelo Santo Ofício, pelo clero e pela nobreza, mas
são eles que fazem o mundo evoluir e que representam até onde o homem pode ir,
ao contrário do convento, que é grandioso por fora mas pobre na alma que
esconde a morte e vida injusta de milhares de trabalhadores explorados. Enquanto
o rei esbanjava dinheiro e construía o convento, havia maravilhosas e misteriosas
histórias a fazer o homem, o sonho, a poesia, a música, a magia e a fantasia: “Eles
não sabem nem sonham, / Que o sonho comanda a vida, / E que sempre que o homem
sonha / O mundo pula e avança / Como bola colorida / Entre as mãos duma
criança”.
João
João (Suficiente) || “Hey Brother” (Avicii / Avicii), True, 2013 // José Saramago, Memorial
do Convento, 3.ª edição, Lisboa, Caminho, 1982, pp. 353-357
A canção “Hey
Brother” retrata o amor incondicional entre duas pessoas que fariam qualquer
coisa uma pela outra e também o companheirismo presente nessa relação. Essa é
exatamente a situação de Baltasar e Blimunda (Sete-Sóis e Sete-Luas) que,
apesar de tudo o que passaram, continuaram a amar-se incondicionalmente. Mesmo
quando Baltasar descobre as capacidades sobrenaturais de Blimunda, não a
abandona. Mesmo depois de
perderem tudo (“What if I lose it all? Oh, sister I will help you out!” / “E se eu perder tudo? Oh irmã eu irei ajudar-te”) devido à perseguição
da inquisição por causa da construção da passarola, mantêm-se juntos. Até que
Baltasar, acidentalmente, desaparece com a passarola. Aí começa a aventura de Blimunda,
a sua busca incessante por Baltasar (“Durante nove anos, Blimunda procurou
Baltasar”, pp. 353).
Durante o último
capítulo de Memorial do Convento é
descrita esta incansável busca por parte de Blimunda, que viaja por Portugal (e
até passa a fronteira para Espanha retornando a Portugal quando ouve pessoas a
falar outra língua que não o Português) descalça (“A sola dos seus pés
tornou-se espessa, fendida como uma cortiça”, pp. 356) à procura de Sete-Sóis
(“Oh, if the sky comes falling down, For you, There’s nothing in this world I
wouldn’t do” / “Se o céu se desmoronar, por ti, não existe nada neste mundo que
não faria”) e “perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e estes
sinais, a mão esquerda de menos, e alto como um soldado da guarda real”(pp.353);
contudo, a resposta era sempre negativa.
Vários anos
passam sem receber sinais de Baltasar, mas, mesmo assim, continua o seu caminho
com esperança de o encontrar, sonhando todos os dias que o voltaria a ver
(“What if I’m far from home? Oh, brother I will hear you cal” / “ E se estiver
longe de casa? Oh irmão eu ouvirei o teu chamamento”). Até que, certo dia, na
sua sétima passagem por Lisboa, esfomeada, sentiu um sinal que a impedia de
comer (“cada vez que ia levá-lo a boca, parecia que sobre a sua mão outra mão
se pousava. E uma voz lhe dizia, Não comas, que o tempo é chegado”, pp. 356) e,
sentindo depois o cheiro a carne queimada, deparou-se com um auto-de-fé onde se
encontrava Sete-Sóis já em fogo (“e disse Vem. Desprendeu-se a vontade de
Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a
Blimunda”), ficando assim junto da sua amada como um só, podendo este amor
viver eternamente no corpo de Blimunda.
Gonçalo C.
Gonçalo C. (Suficiente -) || «Encosta-te a mim» (Jorge Palma), ?, ? //
José Saramago, Memorial do Convento, 44.ª edição, Lisboa, Caminho, 1998
A canção «Encosta-te
a mim», de certo modo, conta um pouco a vida de Baltasar, também conhecido como
Sete-Sóis, e a de Blimunda, desde que estes se conhecem até ao seu desencontro
devido à partida de Baltasar para ver se a passarola que ele, Blimunda e o
padre Bartolomeu construíram ainda estava intacta depois da aterragem que
fizeram.
Numa fase inicial da
canção, em «Nós já vivemos cem mil anos», sabemos que não viveram cem mil anos,
mas o primeiro encontro entre ambos levou a que eles se ficassem a desejar um
ao outro como se já se conhecessem há muito tempo. Mas não só, a canção “fala”
também de Baltasar ter ido para a Batalha de Jerez de
los Caballeros em Espanha a lutar por Portugal («Chegada da guerra, / Fiz
tudo p´ra sobreviver, em nome da terra»). Numa fase mais final da canção é dito
«às vezes entender o teu olhar», que pode aplicar-se à paixão que Baltasar
tinha pelos olhos de Blimunda como nos é contado no capítulo V. O capítulo
seguinte fala-nos ainda da reflexão que Baltasar faz sobre qual seria a cor dos
olhos que ele tanto amava.
Em Memorial do Convento fala-se do dom que
Blimunda tem e de esta conseguir ver o interior das pessoas, mas só quando se
encontra em jejum. Ora, em «Não queiras ver quem eu não sou», reflete-se um
pouco a promessa que Blimunda fizera a Baltasar de que não iria ver o interior
de Baltasar e que, para tal, Blimunda antes de Baltasar acordar comia sempre um
pouco de pão para não ver o interior dele, uma vez que o seu dom só funcionava
quando esta estava em jejum.
Como já referi, na
obra é-nos contado que é construída uma passarola, projeto que era do padre
Bartolomeu, mas que fora construído pelos três. Como nos é contado também, o
padre Bartolomeu descobre que, para a passarola levantar voo necessitava de
vontades, vontades essas que conseguiriam recolher com o dom de Blimunda. Essas
vontades foram descritas como uma nuvem fechada, pelo padre Bartolomeu. Todo
este procedimento de recolher vontades para que a passarola levantasse vou
ilustra-se em «Tudo o que eu vi, / Estou a partilhar contigo». Tudo isto acabou
por dar resultado, tendo a passarola levantado voo após Blimunda ter recolhido
mais de mil vontades. Mas o trabalho de Blimunda não se restringia a recolher
vontades, como nos é contado no capítulo IX, onde se nos diz que Blimunda,
quando estava em jejum, aproveitava o seu dom para encontrar todas as
fragilidades que a passarola poderia conter. Mais uma vez, se pode aplicar a
este passo a frase da canção «Tudo o que eu vi, / Estou a partilhar contigo»
(se Blimunda encontrasse algum problema, partilhava-o com Baltasar).
Manel
Manuel (Suficiente-) || «Sabes melhor que eu» (Disney), José, o Rei dos Sonhos // José Saramago, Memorial do Convento, 41.ª edição, Lisboa, Caminho, 2007
A música escolhida,
“Sabes melhor que eu”, do filme José, o
Rei dos Sonhos, pode ser encarada como uma possível reflexão do Padre
Bartolomeu Lourenço aquando da sua morte. Até o título do filme do qual a
música foi retirada se vincula ao Padre, de tal maneira que se poderia fazer um
filme com o título Padre Bartolomeu, o
Rei dos Sonhos.
A primeira quadra da canção
(“Pensei que estava bem / Pensei ter as respostas / Pensei ter ido mais além / Mas
vim parar aqui”) é facilmente associada ao possível pensamento do Padre ao
reflectir no que fora a sua vida, visto que este sempre acreditou que, mesmo
estando a desafiar a igreja e todos os seus dogmas, a passarola era um bem
maior, mas, no final, este acabou por arruiná-lo. O Padre Bartolomeu Lourenço
viveu tão obcecado com a concretização do seu grande sonho (o voo da passarola)
que acabou por perder tudo o que tinha (Baltasar, Blimunda e a própria
passarola). A passarola foi aquilo que os uniu aos três mas também foi aquilo
que, tragicamente, os separou. Muito provavelmente, dada a sua história, o Padre
questionou-se em relação a tudo isto, pensando se valera a pena ter deixado
para trás tudo aquilo que o poderia fazer feliz para a simples realização de um
capricho pessoal (deixou para trás os amigos, desafiou Deus). Podemos
relacionar esta reflexão com os seguintes excertos da canção: “E sem ter mais
ninguém / Na luta e na demanda / Agora que eu desisti / Vem a verdade assim”;
“Sabes melhor que eu / Deixei de querer saber porquê / Pois sabes melhor que
eu”.
A parte final da
música (“Eu confundi a nuvem com o céu / Tentei seguir a ave que voava / Mas
percebi que tudo era teu / E que se eu quisesse talvez visse”) pode associar-se
a uma possível reflexão de Padre Bartolomeu Lourenço momentos antes da sua
morte, visto que tudo aquilo que este ambicionara fora alcançar o inalcançável,
aquilo que não lhe pertencia, o céu (“ambição de elevar-se um dia no ar, onde
até agora só subiram Cristo, a Virgem e alguns santos eleitos.”).
A diferença entre o
Padre Bartolomeu Lourenço e o que nos diz a música é que o Padre apenas seguiu
a sua vontade e desafiou aqueles que supostamente deveria tomar como mestres (a
igreja e Deus), enquanto, na canção, o sujeito lírico tenta seguir e confiar no
seu superior (“Tentei seguir o mestre / Ter esperança fez-me tão bem / Pensei
que o melhor para mim / É confiar em ti”).
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