Convento 6
Nota é a da primeira versão. Algumas das
referências ainda podem ser melhoradas (letristas e compositores devem ser
confirmados, nomes e datas de álbuns, etc.). A pouco e pouco irei acrescentando
esses dados (para o que peço, é claro, a colaboração dos autores das análises
ou de outros colegas).
Karim
Karim (Bom) || «Pássaro
de Fogo» (Paula Fernandes), Pássaro de
Fogo, 2009 // José Saramago, Memorial
do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho,
1984, pp. 353-357
“Pássaro de Fogo” é um bom nome para a passarola
construída pelas personagens Baltasar “Sete-Sóis”, Blimunda “Sete-Luas” e
Bartolomeu de Gusmão. Porquê? Porque, no momento em que é referida na obra a
primeira experiência de voo destes aventureiros, o Padre Bartolomeu temeu pela
sua segurança e a dos seus compatriotas, já que, a uma certa altura, a
passarola subiu tão alto que ameaçava queimar como o fogo, pelo Sol, tal como
Ícaro que, voando tão próximo do mesmo, acabou com as asas derretidas.
“Vai se entregar pra mim” é um verso da música
que carateriza bem o amor entre Baltasar e Blimunda, um amor sincero, genuíno,
sentido, real, completo, em que ambos entregam o coração ao outro, de uma forma
natural, como se de duas peças de lego se tratasse, ao encaixarem uma na outra.
“(…) apesar do padre ter acabado primeiro de comer, esperou que Baltasar
terminasse para se servir da colher dele (…)” é mais um trecho, desta vez do
início da obra, que demonstra a entrega de Blimunda a Baltasar, uma absoluta
declaração, correspondida pelo destinatário.
A parte da obra que focarei com mais afinco diz
respeito ao último capítulo, a demanda de Blimunda pelo seu amado “(…) Durante
nove anos, Blimunda procurou Baltasar (…)”. Confesso que esta é uma das partes
mais bonitas e emocionantes da obra que pode ser caraterizada por certos versos
da música “(…) Minha alma viajante /
Coração independente / Por você corre perigo (…)”, um pequeno trecho que
carateriza a jornada de Blimunda para procurar o seu marido, fator que
demonstra amor, persistência, força, “vontade” e crença, correndo certos
perigos, como, por exemplo, a tentativa de violação por parte do frade
dominicano.
“(…) Onde chegava, perguntava se tinham visto
por ali um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto como
um soldado da guarda real, barba toda e grisalha, mas se entretanto a rapou, é
uma cara que não se esquece, pelo menos não a esqueci eu (…)”. Apesar de terem
passado nove anos desde o desaparecimento de Baltasar, Blimunda continuava a
conhecê-lo como a palma das suas mãos, não esquecendo os mais ínfimos
pormenores. Passaram por muita coisa juntos, era normal conhecerem-se tão bem.
Por onde passava, “Sete-Luas” repetia sempre o mesmo discurso, acabando por se
tornar uma autêntica monotonia e, em certa parte, um autêntico monólogo, muitos
não lhe ligavam, achavam-na uma louca que andava por ali a deambular.
“(…) e tanto pode ter vindo pelas estradas de
toda a gente, ou pelos carreiros que atravessam os campos, como pode ter caído
dos ares, num pássaro de ferro (…)”,
“(…) Julgavam-na doida (…)”,
“(…) Por fim já era conhecida de terra em terra, a pontos de não raro a
preceder o nome de Voadora, por causa da estranha história que contava (…)” são
excertos da obra que, mais uma vez, estabelecem uma ligação entre a mesma e a
música “Pássaro de Fogo”.
Apesar da sua tormenta, Blimunda, ao longo da
sua jornada, teve sempre o cuidado e a paciência de ouvir as lamentações das
pessoas, nomeadamente, as das mulheres que, ao ouvi-la, mudavam drasticamente a
maneira de estar com os seus maridos, valorizando-os mais, fator que provocava
admiração nos homens: “(…) Por onde passava, ficava um fermento de
desassossego, os homens não reconheciam as suas mulheres, que subitamente se
punham a olhar para eles, com pena de que não tivessem desaparecido, para enfim
poderem procurá-los. Mas esses mesmos homens perguntavam, Já se foi, com uma
inexplicável tristeza no coração (…)”.
Com isto, identificamos, mais uma vez, não só o
amor que “Sete-Luas” nutria pelo seu “Sete-Sóis”, mas também a sua humildade,
paciência e caridade para com os outros. Por onde passava, Blimunda deixava a
sua marca.
Na sétima vez que passara por Lisboa, a nossa
querida “Voadora” encontrou Baltasar no auto de fé, como um dos condenados.
“(…) Não comia há quase vinte e quatro horas. Trazia algum alimento no alforge,
mas, de cada vez que ia levá-lo à boca, parecia que sobre a sua mão outra mão
se pousava, e uma voz lhe dizia, Não comas, que o tempo é chegado (…)”. E
chegara mesmo. Blimunda, ao reparar em Baltasar, que ardia na fogueira, viu a
sua “vontade”, olhou o seu amado por dentro “(…) E uma nuvem fechada está no
centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem”, ou, como se diz na canção, “Se
entrega para mim”. Então, “desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas
não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda”.
Sofia R.
Sofia R. (Bom+/Muito
Bom-) || «One and Only» (Adele), ?, ? // José Saramago, Memorial do Convento, ?, ?, ?, p. 53 & passim
Adele remete‐nos
para o género músical pop, tendo esta música, «One And Only», um registo
bastante calmo e, ao mesmo tempo, forte. Assim forte mostra‐se também o amor que nasceu entre as personagens
Blimunda e Baltasar de Memorial do
Convento. A forma como se encontram pela primeira vez não foi dentro das
melhores circunstâncias — recordemos o auto de fé
que se realizou em plena baixa lisboeta, logo no segundo capítulo, no qual Sebastiana Maria de
Jesus, mãe de Blimunda, seria condenada a ser “açoitada em público e a oito
anos de degredo no reino de Angola” (p. 53) — mas, e apesar da sua
diferença de sete anos de idade, não houve forma de não se apaixonarem no
momento em que Blimunda entendem que aquela seria a vontade da sua mãe
(“Blimunda, olha só, olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver, e
aquele homem quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe (...)
quem é ele, de onde vem, que vai ser deles poder meu” — p. 53) e perguntou ao
homem que era “pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado”
(p. 53) qual seria o seu nome.
De novo a cantora inglesa fala sobre o amor
destas personagens indiretamente (“I dare you to let me be your one and only”),
o que relacionamos com o momento em que Blimunda deixa a porta de sua casa
aberta para que, não só o Padre Bartolomeu Lourenço possa entrar, mas também
Baltasar Sete Sóis.
“Forgive your past and simply be mine”, pensaria, talvez, Blimunda, pois fica a
conhecer o passado guerreiro e triste do seu futuro marido, sem nunca se
importar nem se afastar dele, como nos é apresentado no sexto capítulo.
Depois, muito depois, de ter sido demonstrada a
grande amizade do casal principal do romance para com o padre Bartolomeu de
Lourenço, que os casara anos antes, através da demorada construção da passarola
que daria ao padre forma de realizar o seu —
para a época — estranho e mal visto
sonho de voar, chegou a altura de o casal guardar e cuidar da passarola do
padre, já depois de a terem experimentado juntos, pois o padre não o pôde fazer
mais, já que fugira para Espanha, atordoado com a queda da passarola e com a
perseguição da Inquisição. Acaba o padre por falecer em Toledo, Espanha. Num
dos momentos em que Baltasar iria ver como se encontrava o engenho por que
ficara de cuidar, segundo sugestão de Domenico Scarlatti, o protagonista masculino da história desaparece por
acidente, voando na passarola, o que levou a nove anos de uma procura
incessante por parte da sua mulher. Esta acaba por se sentir perdida e fraca
por várias vezes, mas, em certos momentos de certeza e lucidez, entende “I
don’t know why I’m scared, / Because I’ve been here before, / Every feeling,
every word, / I’ve imaginated it all. / You never know if you never try” e a
procura pelo seu amado prolonga‐se com bastante força de
vontade, apesar de continuar sem qualquer notícia sua por parte de quem vivia
nos locais por onde passou durante aqueles demorados nove anos e das
dificuldades que encontrou ao longo do caminho, como quando um franciscano a
tentou violar, tendo‐lhe, anteriormente,
indicado um local onde ela poderia passar a noite em paz e, acabando por ser
assassinado por quem tentara seduzir e violentar.
Para Blimunda, ela mesma seria, literalmente,
“the one who can walk that mile”, ou miles, já que foi enorme a distância que
percorreu à procura do marido, além de ser a única que alguma vez amou Baltasar
desta forma, ao ponto de persistir na sua caminhada por tanto tempo e a
acreditar que o iria encontrar — mesmo que não pudesse voltar a estar com ele — pois essa era a sua vontade, já que, afinal de
contas, ao contrário do paradeiro do seu grande amor, as vontades humanas não eram, de forma alguma, um mistério para
Blimunda.
Sol
Sol (Bom-) || “All You Need Is Love” (John Lennon-Paul McCartney), The
Beatles, Yellow Submarine, 1969 // José Saramago, Memorial do
Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 11 e 265 (& passim)
Nesta música, o título
(“All You Need is Love”/Tudo o Que Você Precisa é de amor) diz tudo sobre do
que trata a letra.
O “eu” do poema afirma
que "There's nothing you can make that can't be made"/não há nada que
você possa fazer que não possa ser feito e que
“Nothing you can sing that can't be sung"/nada que você possa
cantar que não possa cantar, pois “o amor é tudo o que você precisa...”. Ou
seja, quer transmitir a mensagem de que, quando há amor, nada é impossível.
No entanto, há quem dê
demasiada importância à riqueza, ao seu estatuto, entre outras coisas, e deixe
para trás elementos essenciais e importantes na vida, como é o caso do amor.
Em Memorial do Convento,
a mensagem da letra da música remete-nos para o bom exemplo do uso do amor de
Baltasar, o Sete-Sóis e, Blimunda, a Sete-Luas, e para o mau exemplo por parte
do rei D. João V e de D. Maria Ana Josefa.
O amor dos reis era como
se fosse um contrato, em que nem sequer se amando e tendo relações sexuais com
o único objectivo de procriar um herdeiro. Este acto era até encarado como uma
obrigação, não era realizado por vontade própria e por amor.
Este amor, se assim se
pode chamar, nada tinha a ver com o de Blimunda e de Baltasar, pois era amor
verdadeiro o que sentiam um pelo outro e ambos completavam-se. Mesmo sabendo
que devido aos poderes de Blimunda, tanto ela como Baltasar corriam o risco de
serem perseguidos pela Inquisição e de este os levar às suas mortes, nada houve
que os separasse, pois era, de facto, amor verdadeiro e, por isso, resistente
aos obstáculos que se lhe colocassem.
Fazem parte do povo, do
mais baixo nível da sociedade, são alvos de injustiça, não têm uma vida
luxuosa, vivem com dificuldades, mas tudo isto é “apagado” pelo amor.
Uniram-se de livre
vontade e não precisaram da bênção da igreja para estarem juntos. Até mesmo a
forma como dormiam era diferente, pois dormiam juntos e agarrados, ao contrário
dos reis, que dormiam em quartos separados e, quando tinham relações sexuais,
faziam-no em nome do amor e de livre vontade.
Inclusivamente depois da
morte de Baltasar, queimado no auto-de-fé, o amor entre eles não acabou, pois a
sua amada observou que a vontade deste ainda se encontrava dentro do corpo e
recolheu-a, para que pudessem permanecer juntos.
Esta música permite-nos
ainda falar sobre o Padre Bartolomeu, e do amor que ele tinha em voar. Também
neste caso, o amor falou mais alto, pois, como a letra da música diz, “There's
nothing you can do that can't be done “/não há nada que você possa fazer que
não possa ser terminado.
O padre Bartolomeu,
também conhecido como o voador (“Aquele que ali vem é o padre Bartolomeu
Lourenço, a quem chamam o Voador”, p. 78) sabia que, se fosse descoberto pela
Inquisição, iria ser queimado na fogueira e o mesmo acontecia com Baltasar e Blimunda,
pois partilhavam o mesmo sonho, mas, mesmo assim, lutaram pela realização dos
sonhos, todos unidos, pois, como o Padre Bartolomeu disse, “o que seria de nós
se não sonhássemos” (p. 250)”
Finalmente, viram todo o
seu trabalho realizado: ”A máquina estremeceu, oscilou como se procurasse um
equilíbrio subitamente perdido, ouviu-se um rangido geral, eram as lamelas de
ferro, os vimes entrançados, e de repente, como se a aspirasse um vórtice
luminoso girou duas vezes sobre si própria enquanto subia, mal ultrapassara
ainda a altura das paredes, até que, firme, novamente equilibrada, erguendo a
sua cabeça de gaivota, lançou-se em flecha, céu acima” (pp. 264-265).
Em suma, a vida com amor
tem muitas mais vantagens, traz mais felicidade e é uma grande ajuda para
concretizarmos o que desejamos e sonhamos.
Carolina
Carolina (Bom+) ||
«Talking to the Moon» (Bruno Mars), Doo-Wops
& Hooligan, 2010 // José Saramago, Memorial
do Convento, 40.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 351-373
A canção de 2010 “Talking to the Moon” (“Falando
com a lua”), co-escrita e interpretada pelo cantor americano Bruno Mars,
encaixa na perfeição num dos principais momentos da acção do romance Memorial do Convento, de José Saramago.
Aquando da ida de Baltasar Sete-Sóis ao Monte
Junto, para verificar o estado da passarola, como aliás já vinha sendo hábito
fazer, sucedeu que este estava dentro do engenho, a fazer algumas reparações,
quando, de repente, a máquina levanta voo. Blimunda, que estranhava já a demora
do seu homem, decide ir até ao lugar onde havia ficado a passarola desde o seu
primeiro voo; quando lá chega, apercebe-se da ausência da máquina e de Baltasar.
Faz-se a sagração do Convento de Mafra e está Blimunda Sete-Luas no meio da
Serra do Barregudo, gritando, desesperada, pelo seu Baltasar, num tom que era
«apenas uma explosão sufocada, como se as tripas lhe estivessem sendo
arrancadas» (p. 354).
Os anos passam e Blimunda, inquieta e
angustiada, corre todas as partes do país à procura de «um homem com estes e
estes sinais, a mão esquerda de menos» (p. 369), ganhando a alcunha de
“voadora”, devido à sua história incomum. Tal como Blimunda, também o cantor
está longe de alguém (“I know you’re somewhere out there/ somewhere far away” /
“ Eu sei que estás em algum sítio/ Nalgum
sítio longe”). Mesmo não estando explícito na obra de José Saramago, podemos
fantasiar que Blimunda falaria com a lua, nas noites sombrias e solitárias que
passou, como se com Baltasar estivesse falando, porque, na verdade, quase todos
já o fizemos, assim como faz o eu lírico em “Talking to the moon/ Trying to get
to you/ In hopes you’re on the other side talking to me too” (“Falando com a
lua/ Tentando chegar a ti/ Na esperança que me respondas do outro lado”).
Todo este desespero que invade Blimunda só vem
realçar a natureza verdadeira e genuína do seu amor por Baltasar, base de uma
relação alicerçada na completude e aceitação mútua, que lhes havia permitido
manterem-se alheios ao meio que os rodeava, protagonizando uma história de
amor, envolta em misticismo, magia, ternura e espiritualidade. Ao percorrer
Portugal, as pessoas com quem contactava «julgavam-na doida» (p. 369), por há tanto
tempo procurar o seu homem, mas sobretudo pela bizarra história, sobre uma
passarola, que conta. Também do mesmo sofre o cantor, que afirma “They say I’ve
gone mad” (“Dizem que fiquei louco”), mas neste caso, por falar com a lua, na
esperança de que do outro lado o oiçam.
Em 1739, isto é, passados nove anos desde que
pela falta de Baltasar deu Blimunda, e durante a sua sétima visita a Lisboa,
Blimunda depara-se com uma cerimónia do Santo Ofício, em que eram queimados os
suspeitos de “culpas de judaísmo”, de fazerem “comédias de bonifrates” e mais
outros de quem nunca se tinha ouvido falar, no total, eram onze os supliciados.
Numa das extremidades do auto de fé encontrava-se «um homem a quem falta a mão
esquerda» (p. 373), que, talvez pelo adiantar da queimada, ou pela barba que
tinha agora na cara, só fora reconhecido, porque há muito era procurado: era
Baltasar. Blimunda observa a sua nuvem fechada, esta desprende-se do quase
falecido Baltasar Sete-Sóis e é prontamente recolhida, como tantas outras haviam
sido para que tivesse voado a passarola. Porém, esta era diferente, «à terra
pertencia e a Blimunda» (p. 373).
Tiago
Tiago (Suf+/Bom-) || «It
will rain» (Phil Pinto / Bruno Mars), Unorthodox
Jukebox, 2013 // José Saramago, Memorial
do Convento, 53.ª edição, Lisboa, Caminho, 2013, pp. 487-493
O grande amor de Blimunda e Baltasar é traçado
desde o auto-de-fé em que se conhecem, até à partida de Baltasar e à sua
execucão pelo Santo Ofício. Blimunda amara incondicionalmente Baltasar. Este
parte em busca do Padre Bartolomeu Lourenço, sendo esta a última vez que se
reúne com Blimunda. O sentimento que Blimunda nutriu ao esperar, já sem
esperança por Baltasar poderá identificar-se com este trecho da canção “If you
ever leave me, baby / Leave some morphine at my door / ‘Cause it would take a
whole lot of medication / To realize what we used, / We don’t have it
anymore” (Se algum dia me deixares, amor
/ Deixa um pouco de morfina na minha porta / Porque iria precisar de muitos
medicamentos / Para me aperceber que já não temos / O que costumávamos ter).
Blimunda ainda parte em busca de Baltasar, perguntando a vários aldeãos sobre o
seu paradeiro ou se o haviam avistado, mas sem sucesso. Acaba por encontrar um
padre que a tenta assediar sexualmente, mas acaba por fugir, matando-o
Blimunda desespera sem conseguir encontrar
Baltasar, passando vários anos à sua procura. Acaba por encontrá-lo uma última
vez, ao chegar a Lisboa, avistando-o no mastro onde iria ser queimado vivo,
pelo Santo Ofício. Poderemos relacionar o que Blimunda sentiu com outro trecho
da canção: “‘Cause there’ll be no sunlight / If I lose you, baby / There’ll be
no skies / If I lose you, baby / Just like the clouds my eyes will do the same
/ If you walk away / Everyday it will rain, rain, rain” (Porque não haverá luz
do sol / Se eu te perder, amor / Não haverá céu limpo / Se eu te perder, amor /
Assim como as nuvens, os meus olhos farão o mesmo / Se fores embora / Todos os
dias vai chover, chover, chover).
O amor de Blimunda e Baltasar surgira no dia da
execução da mãe de Blimunda, Sebastiana Maria de Jesus, e foi fixado,
religiosamente, contra a Igreja, pelo Padre Bartolomeu Lourenço, em São Sebastião
da Pedreira. Com o episódio do desaparecimento de Baltasar até à sua execução é
posto um termo à história de amor verdadeiro, contrastada na obra pela história
de amor contratual de D. João V e D. Maria Ana de Áustria, de Blimunda e
Baltasar, um com o seu poder de ver por dentro das pessoas, e outro maneta, respectivamente. A única coisa que
Blimunda pôde guardar do seu cônjuge foi, através do seu poder de ver por
dentro, a sua vontade, acabando assim
por salvaguardar parte de Baltasar, de forma a eternizar o sentimento (“Então
Blimunda disse, Vem, desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não
subiu à terra, se à terra pertencia e a Blimunda.”). A cena da recolha da
vontade de Baltasar, por Blimunda, poderá identificar-se com o trecho da canção
“Oh don’t just say goodbye / Don’t just say goodbye / I’ll pick up these broken
pieces ‘til i’m bleeding / If that’ll make it right” (Oh, não digas
simplesmente adeus / Não digas simplesmente adeus / Recolherei esses cacos até
sangrar / Se isso fizer com que tudo fique bem). Neste caso, poderemos criar
uma analogia entre as palavras do compositor “broken pieces – cacos” e a
vontade de Baltasar, que foi uma das alternativas que Blimunda encontrou para,
mesmo sem a presença de Baltasar fisicamente, se sentir mais perto dele, com a
presença da sua vontade, que o narrador afirma pertencer a si e à terra.
No geral, assim como na canção, Blimunda perdeu
alguém que para ela significava tudo, tendo-se como foco principal o momento da
despedida, um dos que fica mais marcado em qualquer relação amorosa.
Francisca
Francisca
(Bom-) || «Say Something» (Ian Axel, Chad Vaccarino, Mike Campbell), A Great
Big World,
Anybody Out There?,
2013 // José Saramago, Memorial do Convento, 52.ª edição, Lisboa, Caminho, Setembro 2012, pp. 465-493
"Say
Something" é uma canção da dupla A
Great Big World, lançado como o primeiro-single do seu
álbum de estreia, Is There Anybody Out
There?, lançado em 2013. A música aproxima-se, a meu
ver, da narrativa de Memorial do Convento,
mais propriamente na busca incessante de Blimunda por Baltasar desde que este
parte certa manhã para Monte Junto a fim de ver como estava a passarola. Há uma
identificação, como já referido anteriormente, com a obra uma vez que
representa, também, o sofrimento de Blimunda.
Tudo se inicia quando
Baltasar, após a ceia, quando já todos dormiam, leva Blimunda a ver as
estátuas. Juntos, vêem a lua nascer, enorme e vermelha – “A noite estava clara
e fria. Enquanto subiam a ladeira para o alto da vela, a lua nasceu, enorme,
vermelha.” –, quando Baltasar anuncia à amada “Amanhã vou ao Monte Junto ver
como está a máquina”, referindo a passarola e acrescentando, “saio cedo, se não
tiver muito que remendar estarei cá antes da noite”. A notícia não agrada muito
a Blimunda, que fica preocupada com Sete-Sóis: “Tem cuidado (...) Tem-nos todos
[referindo-se aos cuidados], não te esqueças”.
Na manhã seguinte, quando Sete-Luas acordou, levantou-se e juntou comida para o
farnel que o marido levaria para a jornada até ao Monte Junto – “ela
levantou-se, entrou em casa, na meia escuridão da cozinha procurou e encontrou
algum alimento (…) dentro dele [do alforge] meteu a comida e as ferramentas”.
Acompanhou-o até fora da vila - "Adeus Blimunda, Adeus Baltasar”- e
separam-se.
Nessa noite, como
Baltasar não voltasse para casa, Blimunda não conseguiu dormir. Esperava que
ele voltasse ao cair do dia, quando aconteceriam os festejos da sagração da
basílica, mas ele não voltara – “Em toda essa noite, Blimunda não dormiu.
Pusera-se a esperar que Baltasar regressasse ao cair do dia (…) e, durante
muito tempo, até fechar-se por completo o crepúsculo, se deixou estar sentada
num valado, vendo passar a gente que ia para Mafra, que romaria à sagração”.
Voltou para casa, ceou com os cunhados e com o sobrinho, mas não conseguiu
dormir. Sete-Luas não ficou para ver o rei de Mafra – “Desencontro, sim,
haverá, mas com el-rei, que precisamente entrará hoje na vila de Mafra” –, uma
vez que foi procurar a sua cara-metade, tentando desesperadamente encontrá-lo:
“e Blimunda continua a andar, agora já fora dos caminhos principais, atalhando
como na viagem fizeram ambos, aquele monte, aquela mata, quatro pedras
alinhadas, seis colunas em redondo, vai o dia adiantado, de Baltasar nem
sombra.”. Já desesperada, chorou sem saber se ele estaria morto ou vivo. É
neste momento que se pode fazer uma analogia entre os sentimentos de Blimunda e
a música – “And I / Am feeling so small / It was over my head / I know nothing
at all” // “E eu / Sinto-me tão pequeno / Estava além do meu alcance / E eu
nada sei” –, uma vez que esta se sentia realmente insignificante por não saber
de Baltasar, quando gritava por este e não obtinha resposta – “por causa disto
[pensamentos] gritou, Baltasar. Não houve resposta” –, quando andava e andava e
perdia as forças – “Parou para descansar, porque lhe tremiam as pernas,
fatigadas do caminho”; “And I / Will stumble and fall” // “ E eu / Tropeçarei e
cairei”, representando a força de vontade de Blimunda de não desistir,
nomeadamente quando esta encontra o frade, que a tenta violar, e o mata (a
violação e a morte representam as quedas) – “O vulto cobre toda a luz da
fresta, é de homem alto e forte, ouve-se-lhe a respiração. Blimunda puxara o
alforge para o lado, e, quando o homem se ajoelha, meteu rapidamente a mão na
bolsa, segurou o espigão pelo encaixe, como um punhal. Já sabemos o que vai
acontecer”. Foi após ter morto o frade que Blimunda partiu novamente à procura
do amado. Voltou a Mafra, por pensar que se haviam desencontrado, mas, para
grande tristeza, ele também não estava lá.
Durante nove anos,
Blimunda andou pelos caminhos de sempre à procura de Baltasar que continuava
desaparecido. Perguntava por ele em todo o lado – “Durante nove anos, Blimunda
procurou Baltasar. (...) Onde chegava, perguntava se tinham visto por ali um
homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto como um soldado
da guarda real (…).”
Várias e várias vezes
voltou aos lugares por onde passara anteriormente, sempre perguntando por
Baltasar. Seis vezes já passara por Lisboa, sendo esta, a de agora, a sétima.
Sem comer, o tempo era chegado para ela. No Rossio, finalmente encontrou
Baltasar. Havia lá um auto-de-fé. Eram onze os condenados à fogueira, estando,
entre eles, António José da Silva, o Judeu, comediógrafo autor das Guerras de
Alecrim e Manjerona, e Baltasar – “De três sei eu, aquele além e aquela são pai
e filha que vieram por culpas de judaísmo, e o outro, o da ponta, é um que
fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da Silva, dos mais não
ouvi falar.”. Ela, Blimunda, olhou-o, recolheu a sua vontade, porque a ele lhe
pertencia – “Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar
Sete – Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.
“I’m sorry that I
couldn’t get to you / Anywhere I would’ve followed you” // “Desculpa-me por não
ter conseguido encontrar-te / Ter-te-ia seguido para qualquer lugar”
representaria o último pensamento de Blimunda, uma vez que só encontrou
Baltasar no leito da morte…
Inês
Inês (Bom(-)/Bom-) ||
“Vem Libertar” (Ofra Haza), banda sonora de O Príncipe do Egipto, 1998 //José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição,
Lisboa, Caminho, 1984
A letra da música pode ser relacionada com dois
momentos da obra: a exploração dos trabalhadores na construção do Convento de Mafra
e a despedida de Sebastiana Maria de Jesus (mãe de Blimunda) de Blimunda.
A letra inicia-se com a expressão dos escravos
da construção das Pirâmides do Egito: “Lama, Terra, Água, Palha, força!/ Lama,
puxa! Terra iça!/ Água, levanta! Palha, força!”, processos comparáveis aos da
construção do Convento (“Já andam os lavradores lavrando, vão para o campo
mesmo debaixo de chuva” – cap. VII, pág. 72, “Quando a chuva se afasta ou se
tornou aturável, voltam os homens e tudo recomeça, carregar e descarregar, puxar
e empurrar, arrastar e levantar, hoje não há tiros de pólvora por causa desta
geral humidade, melhor para os soldados que gozam a folga debaixo dos
telheiros” – cap. XVII, pág. 232).
Mesmo que a letra relativa à parte dos escravos
seja dramatizada pela religião em causa e pela invocação ao seu Deus, as
queixas, os processos e a falta de higiene na exploração realizada e expressa
na letra (“Dor a arder no meu ombro/E o sal do suor sob o Sol/Elohim, nosso
Deus/Porque sofro?”) são identificáveis com os trabalhadores do Convento,
igualmente sacrificadores, explorados e oprimidos a favor da ostentação régia:
“daqui a pouco os homens poderão ajoelhar-se sem temer demasiado pelas
joelheiras dos calções, ainda que esta gente não seja da que mais cuida de
limpezas, lavam-se com o próprio suor.”. São aliás comparados às formigas: “Vão
as formigas ao mel, ao açúcar derramado, ao maná que cai do céu, são quê,
quantas, talvez umas vinte mil, todas para o mesmo lado viradas (…)” – capítulo
XVII.
Seguidamente, a música transita para a despedida
da mãe do seu filho. Para o salvar tem de o abandonar no rio, visto que os
egípcios assassinavam os hebreus recém-nascidos, de forma a controlarem a
população (“Vamos, meu filho/ Não chores mais/ Dorme na água ao luar/ Dorme e relembra
esta minha canção/ Contigo estarei a sonhar”). Esta situação pode relacionar-se
com a Inquisição retratada na obra, visto ter havido igualmente uma perseguição
e, mesmo, assassínio daqueles considerados não-crentes ou respeitadores do
Catolicismo. Com efeito, a mãe de Blimunda, considerada feiticeira, é
assassinada pela Inquisição e tem de, igualmente, despedir-se de Blimunda.
Blimunda, também com poderes sobrenaturais (ver o interior das pessoas) tem de
assistir à morte da mãe sem nada fazer ou dizer, de forma a salvar-se: “e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus (…)
não ouvi que se falasse da minha filha, é seu nome Blimunda, onde estará, onde
estás Blimunda, se não foste presa
depois de mim, aqui hás-de vir saber da tua mãe, e eu te verei se no meio dessa
multidão estiveres, que só para te ver quero agora os olhos (…) ó coração meu,
salta-me no peito se Blimunda aí estiver, entre aquela gente que está cuspindo
para mim e atirando cascas de melancia e imundícies (…) enfim o peito me deu
sinal, (…) vou ver Blimunda (…) filha
minha, e já me viu, e não pode falar, tem de fingir que não me conhece ou me
despreza (…)” – cap. V, págs. 51 e 52.
Mariana L.
Mariana
L. (Bom) || «All of me» (John Legend / John Legend), Love
in the Future, 2013 // José Saramago,
Memorial do Convento, Linda-a-Velha,
Biblioteca Visão, 2000, pp.29-192
«All of me», de John Legend, poderia muito bem
ser a música de eleição da relação entre o casal Baltasar Sete-Sóis e Blimunda
Sete-Luas.
A história deste par nasce no dia em que,
tristemente, Sebastiana de Jesus, mãe de Blimunda, é condenada num auto de fé,
pela Inquisição, por ter visões. A união de ambos, que teve a bênção de
Sebastiana, é uma história de verdadeira paixão, entrega, de um grande amor.
Desde o início é vivida com grande intensidade, sendo evidente a maneira como
ambas as personagens se completam e, independentemente das suas
características, bastante próprias, se aceitam por completo. O refrão da música
de John Legend reflecte essa mesma intensidade com que duas pessoas se podem
completar tornando-se numa só («Cause
all of me loves all of you / Love your curves and all your edges/ All
your perfect imperfections» / «Porque tudo de mim ama tudo em ti / Amo as
tuas curvas e todas as tuas arestas / Todas as tuas imperfeições perfeitas»).
A química e confiança entre ambas as personagens
é bastante forte desde início e é transmitida aos leitores através de simples
atos como o acompanhar até casa, a utilização da mesma colher e até o convite,
por parte de Blimunda, para Baltasar permanecer em sua casa: «Porque queres tu
que eu fique, Porque preciso (…) Se eu ficar, onde durmo, Comigo.» (p. 39).
Desde o início que Baltasar olha para Blimunda
como uma mulher muito especial, pelo mistério em seu torno, face à sua
aproximação e ao seu olhar. Talvez até tenha sido esse o ponto fulcral da sua
atracção. Baltasar não consegue descobrir esse mistério até que Blimunda lhe
revele que pode ver mais além do que os seus olhos podem alcançar. De igual
forma, existe uma passagem na letra da música que nos revela a mesma atracção
sentida em relação a uma mulher: «What’s going on in that beautiful mind/ I’m
on your magical mystery ride/ And I’m so dizzy, don’t know what hit me, but
I’ll be alright» / «O que está acontecendo naquela mente bonita? / Estou na tua
jornada misteriosa e mágica / E eu estou tão tonto, não sei o que me atingiu,
mas eu vou ficar bem».
Apesar de Blimunda ter a capacidade de ver mais
além do que o comum dos mortais, no primeiro dia em que conheceu Baltasar
prometeu-lhe nunca ver o seu interior e, por isso, todas as manhãs, antes de
olhar para ele, comia pão (já que só tinha esta capacidade em jejum). Mas era
algo que não a incomodava, até preferia que assim fosse porque, na verdade,
amava-o e confiava conhecê-lo indiscutivelmente («[…] quando me dás a mão,
quando te encostas a mim, quando me apertas, não preciso ver-te por dentro» [p.
98]).
E o que seria uma verdadeira história de amor
sem as provas que uma união realmente pede como «prometo ser-te fiel, amar-te e
respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da
nossa vida»? Não seria uma relação testada a todos os níveis, como foi a de
Sete-Sóis e Sete-Luas.
Tal como tiveram muitos momentos de alegria
(«Blimunda foge da água rindo, ele agarra-a pela cintura, ambos caem, qual de
baixo, qual de cima, nem parecem pessoas deste século» [p. 192]), tiveram
também momentos em que o amor foi posto à prova, como quando Blimunda adoeceu e
Baltasar teve de cuidar dela. Mas Baltasar não se limitou a cuidar, ele viveu
nesse momento apenas para Blimunda - «Baltasar não saía de junto dela, a não
ser para preparar a comida ou para satisfazer necessidades expulsórias do corpo
(…).» (p. 129) – e sofreu só de pensar em perdê-la: «(…) um suspiro assim, como
de quem morre ou de quem nasce, debruçou-se Baltasar para ela, temendo que ali
se acabasse quem afinal estava regressando.» (p. 130).
Na composição de John Legend a mesma prova é
dada, ainda que em contextos diferentes. O companheiro permanece ao lado da
amada independentemente de tudo («The world is beating you down, I’m around
through every move / I can’t stop singing, it’s ringing, I my head for you» / «
O mundo está a derrotar-te, eu estou por perto vendo cada movimento / Eu não
posso parar de cantar, está a tocar, eu a minha mente em ti»).
Ainda na canção está também presente a
importância da partilha entre um casal: «Give your all to me / I’ll give my all
to you» / «Dê o seu melhor para mim / Dar-te-ei tudo de
mim». O que também acontece na paixão entre os dois, em Memorial do Convento: «(…) Ah , e Baltasar gritou, Conseguimos,
abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar, parecia uma criança perdida (…) e
agora soluça de felicidade abraçado a Blimunda, que lhe beija a cara suja (…)»
(p. 138).
Já no último capítulo, depois do desaparecimento
de Baltasar, Blimunda procura-o, insistentemente, por longos nove anos até o
encontrar num auto de fé (tal como da primeira vez) a ser queimado. Blimunda
estava em jejum e, por isso mesmo, conseguiu ver o seu interior que tanto
prometera nunca ver. Disse então “Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar
Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.»
Também em «All of me» se afirma que verdadeiras
histórias de amor nunca terminam: «You’re my end and my beginning / Even when I
lose I’m winning» / Tu és o meu fim e meu começo / Mesmo quando eu perder
estarei a ganhar». Assim, Blimunda nunca poderia perder Baltasar porque este
era, simultaneamente, o seu fim e o seu começo e, por isso mesmo, lhe
pertenceria para sempre.
João Almendra
João Almendra (Bom(-))
|| “Se eu fosse um dia o teu olhar” (Pedro Abrunhosa/Pedro Abrunhosa), Tempo, 1996, //José Saramago, Memorial do Convento, 53ª edição,
Lisboa, Caminho, pp. 53-89
“Se eu fosse um dia o teu olhar” representa
alguns momentos que aconteceram, entre duas personagens principais, em Memorial
do Convento. Uma das personagens é Baltasar Sete-Sóis, que viera para
Lisboa depois da guerra e, a outra, Blimunda, companheira de Baltasar, uma
pessoa fora do comum, com um certo poder.
No poema da música, o sujeito poético mostra-se
fraco e frágil de tanto lutar. Pode-se adaptar este sujeito poético a Baltasar,
na medida em que a personagem chega a Lisboa, numa barqueta, ao atravessar o
rio Tejo, fraco, exausto e ferido («fraco de lutar») de uma guerra que durou
vários anos. Depois da chegada a Lisboa, Baltasar ficou uns tempos, até poder
regressar a Mafra, terra onde nascera. Passou várias noites ao relento, noites
longas, em que as histórias macabras eram as conversas mais pretendidas.
Conheceu gente de diferentes tipos, cada um com o seu estilo de vida e as suas
histórias.
Quando a mãe de Blimunda foi condenada a ser
açoitada em praça pública, Baltasar esteve presente, e foi aí que Blimunda o
conheceu, a pedido da sua mãe. Foi nele que viu que a filha iria ficar em paz e
iria ser bem cuidada («pede-me a paz», «dou-te o mundo»). Depois de se
conhecerem, Blimunda levou Baltasar para sua casa, onde lhe deu de comer e
abrigo. Baltasar aceitou o convite da jovem e aceitaram unir-se. Eram um casal
livre, sem compromissos e muito feliz, que deu entrada a um novo ciclo na sua
vida.
Deitaram-se juntos, juntaram-se os corpos,
consumou-se o amor. O sangue da virgindade escorreu. Blimunda desenhou uma cruz
no peito de Baltasar, na zona do coração, e foi como um significado de união e
de eternidade («Sangue», «Ardente», «Fermenta e torna», «Aos dedos de papel»).
Depois de tais atos, quando acordaram, Baltasar
reparou que Blimunda comia pão de manhã, de olhos fechados. Aquela atitude não
era normal de se ver, o que lhe despertou curiosidade. Vendo aquele ato todos
os dias, Baltasar ganhou coragem para perguntar a Blimunda por que razão fazia
aquilo. Ela explicou-lhe que, se estivesse de jejum, veria as pessoas por
dentro e, por essa razão, tinha feito a promessa de que nunca olharia Baltasar
por dentro («Quero que saibas», «Que ainda não te disse nada»). De início, foi difícil para Baltasar
acreditar, mas Blimunda demonstrou-lho ao dizer o que via nas pessoas,
descobrindo uma moeda numa parede, para que ele acreditasse.
Baltasar e Blimunda, ele maneta de uma mão,
substituída por um gancho de ferro, ela com o poder de ver as pessoas por
dentro e de recolher vontades, foram os escolhidos para dar início a um projeto
do padre Bartolomeu Lourenço: a construção de uma máquina voadora, um género de
pássaro gigante, que realizaria o seu sonho e os levaria ao céu.
«Se eu fosse um dia o teu olhar», «e tu as
minhas mãos também», «E tu perfume de ninguém» são versos que representam o
amor entre Baltasar e Blimunda, mostrando a sua união, e por se completarem
tanto um ao outro. Fica a pairar a questão: o que faria Baltasar se um dia
tivesse o olhar de Blimunda? E o que faria Blimunda se um dia tivesse as mãos
de Baltasar, tendo ele um gancho no braço esquerdo?
Marta
Marta (Bom-)
|| “A Thousand Years” (Christina Perri) / ?
Ao princípio, quando vemos o título
da música – “A Thousand Years/ Mil Anos”– podemos achar difícil que esta se
enquadre na obra Memorial do Convento, de
José Saramago. Porém, de certa forma, a música transmite a intensidade de um
amor que podemos comparar ao de Blimunda e Baltasar. O amor entre estes os dois
jovens surgiu de uma visão da mãe da jovem, no momento em que estava a ser
julgada pelo facto de ser considerada uma feiticeira, o que na época era
fortemente mal visto pela Inquisição (“e aquele homem quem será, tão alto, que
está perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem, que
vai ser deles, poder meu, pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo
pulso cortado, adeus Blimunda que não te verei mais”, p.69).
Assim, tanto na obra como num excerto da música – “How can I love when I'm afraid to fall (Como posso amar
quando eu estou com medo de me apaixonar) / But watching you stand alone (Mas
ao ver-te na solidão) / All of my doubt suddenly goes away somehow (Todas as
minhas dúvidas se vão de repente de alguma maneira)” – podemos ver que há uma semelhança entre a relação entre os
jovens da obra com a relação que a cantora expressa na sua música, pois em
ambos os casos se mostra a insegurança das raparigas (no caso de Blimunda, o
facto de esta ficar sozinha no mundo, sem a sua mãe que fora exilada e que lhe
transmite que vai ser feliz com Baltasar, que está ao seu lado e que nunca vira
antes – contudo esta insegurança e medo irão
desaparecer devido à calma que a mãe lhe transmite através do pensamento).
Ao longo da obra, vemos também que o
sujeito poético caracteriza o amor entre Blimunda e Baltasar como um amor
diferente de todos os outros da época, pelo facto de estes se ajudarem e
apoiarem mutuamente, de partilharem a vida, por mostrarem que não é necessário
ter-se filhos para poderem ser felizes, e igualmente, por juntos ajudarem o
Padre Bartolomeu Lourenço a realizar o seu sonho de voar, ao construírem a
passarola (Baltasar colaborava com o seu saber prático e Blimunda com o seu
poder de ver por dentro, recolhia vontades humanas de modo a fazê-la voar.
Baltasar e Blimunda nunca se largaram, iam juntos para todo o lado (como Mafra,
Lisboa e S. Sebastião da Pedreira).
Porém, no desenrolar da história
surgiram alguns percalços tal como na história de amor da música. Ambas as
heroínas perderam o seu amado. Baltasar desapareceu depois de ter voado na
passarola e de esta ter dado problemas quando ele foi a Monte Junto para a
reparar da queda que havia sofrido. “Não tardes por lá, Baltasar, Dorme tu na
Barraca, posso chegar já de noite, mas, se houver muito que consertar, só venho
amanhã, Bem sei, Adeus Blimunda, Adeus Baltasar” (p. 461): estas foram as
últimas palavras do casal antes de Baltasar ter desaparecido por nove anos.
Durante estes anos todos, Blimunda não descansou enquanto não o encontrou,
andou dias e dias e mal se alimentava. Ao fim dos nove anos, foi encontrá-lo,
já sem vida, na fogueira da Inquisição pois fora preso e condenado por ter
construído a passarola e ter voado nela, o que na época não era aceite pois
defendiam que o Homem não nasceu para voar (“A queima já vai adiantada, os
rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem lhe falta a mão
esquerda”, p. 493).
A obra termina com Blimunda a recolher
a vontade de Baltasar, o que faz com que eles não se separem e o seu amor não
acabe (“E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse,
Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as
estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda”, p. 493), tal como acontece na
música, em que o sujeito poético promete nunca deixar de amar o seu companheiro
(“I'll love you for a thousand more/ Eu vou amar-te por mais mil anos”).
Miguel G. (aka
Bruno)
(Bruno) Miguel G. (Suficiente+)
|| «Love of My Life» (Freddie Mercury/Queen), A Night at the Opera, 1975 // José Saramago, Memorial do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 53-56,
332-357
Pelo título da canção podem já perceber que irei
abordar a história de Sete-Sóis e Sete-Luas, heróis do pé descalço. Presente em
todos os capítulos, à excepção dos três primeiros, a história do casal Baltasar
e Blimunda constitui o nó principal que une os fios da intriga. Protagonista de
entre as figuras populares, Sete-Sóis e Sete-Luas, alcunhas simbólicas que
permitem observar que se completam e relembrar que a alcunha de Blimunda foi
dada pelo Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, personagem que, para além de
apoiar a relação, era grande amigo dos dois. O casal popular vive uma história
exemplar de amor, aventura e realização humana que nem a inquisição pode
quebrar.
Baltasar começa por ser um soldado da guerra de
sucessão espanhola, na qual fica maneta, enquanto Blimunda é filha de
Sebastiana Maria de Jesus, que é culpada para a inquisição de feitiçaria e de
judaísmo disfarçado, essa também desenvolve poderes metafísicos, consegue ver o
interior das pessoas e as suas vontades. A sua história começa da procissão do
auto-de-fé, onde a mãe, desfila, a caminho do degredo para Angola. Devido aos
seus poderes Sebastiana consegue falar com a filha. Desse diálogo resulta a
vontade de Blimunda conhecer Baltasar pois sua mãe interroga-se «e aquele homem
quem será, (..) e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem que vai ser
deles, poder meu(..)» (p. 53) «Por que foi que perguntaste o meu nome, e
Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o
soubesse (...)»(p. 56).
Após terem-se conhecido nunca mais se afastaram
um do outro, numa paixão imensa que os atraiu logo ao primeiro olhar, que faz
Blimunda entregar-se por completo a Baltasar, («E agora, Se não tens onde viver
melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma
irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres
tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres
ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem
daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te
toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que
não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por
dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo», p. 56). Promessa que Blimunda sempre
cumpriu. O seu poder metafísico é outra prova de amor, entre muitas, pois
Blimunda conta a Baltasar o seu poder, um segredo íntimo que poucos conheciam.
Baltasar não acredita no início mas Blimunda prova-o, com receio de perdê-lo.
Ele aceita pois ama-a mais que tudo.
O enredo de Memorial
do Convento faz que Baltasar tenha que se despedir de Blimunda para ir a
Monte Junto arranjar a passarola (invenção científica que resulta entre o
trabalho do Padre com o casal, que por sua vez, os fez voar): «é somente
Baltasar que vai ao Monte Junto remediar os estragos do tempo, não é mais que
Blimunda impossivelmente tentando que o tempo pare.» (p. 332). Mas Baltasar não
volta e Blimunda procura-o em todo o lado, sem descanso, sem parar («Bring it
back, bring it back, don't take it away from me», «Because you don't know what
it means to me»; «Traga-o de volta, traga-o de volta, não o tire de mim»,
«Porque você não sabe o quanto é importante para mim»). Tanto Blimunda como o sujeito poético da
canção sofrem pela perda de alguém importante, alguém que faz com que a sua
vida ganhe sentido, já que, sem ela não tem importância viver.
A dramática procura de Baltasar por Blimunda
dura nove anos, o seu reencontro é cruel, realiza-se num auto-de-fé,
ironicamente é onde se encontraram pela primeira vez. Baltasar irá ser queimado
pela inquisição. Blimunda chora desesperadamente. A sua vida é Baltasar, ela
durante nove anos, não viveu, sobreviveu com a esperança de reencontrá-lo («A
queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um
homem a quem falta a mão esquerda. (..) E uma nuvem fechada está no centro do
seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar
Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.»,
p. 357).
Ambos os textos (Memorial e canção dos Queen) falam de um amor, o amor da sua vida,
que nunca irá morrer, que nunca se irá esquecer, um amor que sobrevive a tudo,
até à própria morte («How I still love you, I still love you», «Love of my
life»,«Love of my life»; «Como eu continuo te amando, eu continuo te amando»,
«Amor da minha vida», «Amor da minha vida»).
Pedro F.
Pedro F. (Bom(+)) || “A
cor” (Alexandre Carlo/Alexandre Carlo), Povo
Brasileiro, 1999 // José Saramago, Memorial
do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984
Em “A cor”, de Natiruts, consegui aperceber-me
de algumas possíveis analogias com Memorial
do Convento, de José Saramago, nomeadamente na relação entre os
protagonistas da obra, Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, e a relação
descrita pelo sujeito poético da canção.
Logo os dois primeiros versos (“Queria tanto te
falar/Das angústias desse meu viver”) poderiam ser referências à história de
Baltasar, que perdeu a mão esquerda em serviço militar ao país, em Espanha.
Contrariando todas as expectativas, apetrecha a mão com um gancho que lhe será
muito útil no dia-a-dia, para sua defesa, e nos trabalhos que desempenha, como
talhante, nas obras do Convento e da passarola (“A força que afugenta as ideias/E
tenta nos impedir de ser mais/Então a gente põe o pé na estrada/Coragem não se
sabe de onde vem”). Curiosamente, a seguir a este último verso, o coro da banda
canta que a coragem “vem do céu”, objetivo que Baltasar e Blimunda, juntamente
com o padre Bartolomeu, querem atingir com a construção da passarola.
Durante a obra, o casal e Bartolomeu de Gusmão
tentam manter o seu projeto o mais discreto possível e mostram-se preocupados
com a possibilidade de serem procurados pela Inquisição pelo facto de, por um
lado, Blimunda usar o seu segredo de ver o interior das pessoas para recolher
as vontades que farão a passarola voar, podendo ser condenada por bruxaria, e,
por outro, o padre Bartolomeu não abdicou do seu espírito crítico, anti
fanatismo católico e bruxaria na construção do objeto voador (“Mas ela sabe
muito bem dos seus segredos/E reconhece que isso tudo pode ter um fim (pode
terminar) / Mas ela busca a perfeição do espelho”).
Ao contrário do que era comum no século XVIII,
Baltasar e Blimunda ficaram juntos quase de forma instantânea, depois de se
conhecerem no Rossio, e não mais se separaram (“Mas se ela te beijou e disse
que vai ficar/Isso são mistérios não se pode explicar”).
Depois da aventura em Lisboa, Baltasar e
Blimunda rumam a Mafra onde ela conhece os pais e a irmã do parceiro,
aproveitando para ali se estabelecerem devido ao trabalho garantido pelas obras
de construção do Convento de Mafra. Baltasar, de vez em quando, sai por um dia
inteiro em direção à Serra de Monte Junto para verificar o estado da passarola
e fazer as reparações necessárias, prometendo à mulher que voltará, são e salvo
(“E deixa a promessa de um dia voltar/Para os braços daquela que te quer bem”).
O sonho de voar nos céus era algo tido por todos
como impossível mas que os fazia pensar mais além, para lá de tudo o que já
tinham presenciado ou sequer sonhado. Foi a ilusão de conseguir algo nunca
antes feito e a crença em ultrapassar todas as dificuldades que os guiou e
motivou a tantos esforços com um único objetivo: voar (“E vê nos astros coisas
que não se pode pensar (ela foi aos céus)”).
Salomé
Salomé
(Bom) || “Tears of an Angel” (RyanDan / Dan Kowarsky,
Ryan Kowarsky, Sandy MacKinnon), Tears of
an Angel, 2007 // José Saramago, Memorial do Convento, 53º edição, Lisboa, Caminho, pp. 492-493
A música de RyanDan, “Tears of an Angel”
(“Lágrimas de um Anjo”), encaixa-se perfeitamente no episódio final da obra Memorial do Convento, de José Saramago,
o episódio em que Blimunda reencontra Baltasar depois de tanto o procurar —
durante longos e duros nove anos.
O último parágrafo da obra foi o que mais me
marcou e é, sem dúvida, um excerto que nunca vou esquecer.
Interpretei a letra da música que escolhi como
se fosse os pensamentos e emoções que Blimunda quis transmitir a Baltasar antes
de este morrer queimado no Auto-de-Fé. Blimunda
estava em jejum — “Não comia há quase vinte e
quatro horas” (p. 192) — ao chegar a S.
Domingos, local e momento em que reconheceu o corpo queimado de Baltasar e a
sua vontade — “E uma nuvem fechada está no
centro do seu corpo” (p. 493) ao ver “um homem a quem falta a mão esquerda” (p.
493) — e é nesse preciso momento que podemos
encaixar o verso “Cover my eyes/Cobre os meus olhos”. É curiosa a analogia que podemos fazer quanto
aos versos “It can’t be true/Não pode ser verdade”; “That I’m losing you/Que te
estou a perder” e “The sun cannot fall from the sky/O sol não pode cair do
céu”, já que Blimunda estava a perder Baltasar Sete-Sóis, sol de nome e de
adjetivo, uma vez que ele era a luz da sua vida.
Através dos versos da música “Can
you hear heaven cry?/Consegues ouvir o céu chorar?” e “Tears of an
angel/Lágrimas de um anjo“, imediatamente recordei o passo em que o padre
Bartolomeu Lourenço afirma que na trindade terrestre Blimunda é o espírito — “É a trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito santo (…). Quanto
ao espírito, Esse seria Blimunda, talvez seja ela a que mais perto estaria de
ser parte numa trindade não terrenal” (p. 230) —,
o anjo que chora com a morte de Baltasar.
É nos versos “I won’t let you fly/Eu
não te deixarei voar”; “I won’t say goodbye/Eu não te direi adeus” e “I won’t
let you slip away from me/Eu não te deixarei escapar de mim“ que está o momento
da obra de José Saramago que mais me emocionou. Uma frase simples, não muitas
palavras, mas com um imenso significado que determinou toda a história. O
momento em que Blimunda “olha por dentro de Baltasar” (mesmo depois de lhe ter
prometido que nunca o faria na primeira noite em que dormiram juntos — “Juro que nunca te olharei por dentro”, p. 74) — e chama a sua vontade, que a ela pertence — “Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de
Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a
Blimunda” (p. 493).
À estrofe que se segue ao segundo
refrão, com os versos “So hold on/Então espera”; “Be strong/Sê forte”;
“Everyday on we’ll go/Todos os dias iremos”; “I’m here, don’t be afraid/Estou
aqui, não temas!” e “Little one, don’t let go/Pequenino, não partas!”, acabo
por associar os pensamentos que Blimunda teve para com a vontade que já se
encontrava na sua posse e não para com o corpo terrestre, queimado e sofrido do
seu homem, Baltasar Sete-Sóis.
Pedro S.
Pedro S. (Muito Bom) || «I don’t wanna
miss a thing» (Diane Warren / Aerosmith), Armageddon
Soundtrack, 1998 // José Saramago, Memorial
do Convento,13ª edição, Lisboa, Caminho, 1984
Traduzido, o título
da música significa «Não quero perder nada». Esta canção fala-nos dum amor
enorme, em que nada é melhor que a cara-metade do eu, nada se compara à pessoa
que ama e ao que sente quando está com ela. Todos os segundos a seu lado
fazem-no feliz como mais nada neste mundo consegue fazer.
Esta canção fala,
portanto, dum amor verdadeiro e imensurável. É fácil perceber a ligação com Memorial do Convento. Nesta obra, temos
um perfeito exemplo dum amor assim. Falo de Baltasar e Blimunda, cuja história
de amor nos surpreende, por poder resistir a todas as provações, inclusivé à
morte.
Este casal está
presente em praticamente todos os capítulos da obra, à excepção dos iniciais,
funcionando como ligação da intriga. Baltasar é um soldado da guerra da
sucessão espanhola, que lhe tirou a mão esquerda, e trabalha na passarola e nas
obras do Convento. Já Blimunda possui poderes sobrenaturais, que vão ser
fulcrais quer para a construção da máquina voadora quer para a própria história
de amor do casal, que permite que estes fiquem juntos para sempre.
Os dois conhecem-se
num auto-de-fé, e é num auto-de-fé que se despedem. No primeiro, a vítima da
Inquisição é Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda, condenada ao degredo
em Angola. A assistir estão Baltasar e Blimunda, bem como o padre Bartolomeu. É
a partir deste momento que as personagens se unem, ainda sem saberem a
importância que irão ter na vida um do outro (embora Sebastiana soubesse e
tenha compelido a filha a falar com aquele homem). Após as apresentações,
Baltasar segue Blimunda para sua casa, como que enfeitiçado, e acaba por ficar
a viver com esta. O casal acaba mesmo por ser unido pelo padre Bartolomeu
(embora duma forma pouco ou nada convencional).
Blimunda é uma mulher
enigmática, que intriga Baltasar. Após grande insistência deste, Blimunda acaba
por revelar a razão de tanto mistério: a sua capacidade de ver as pessoas por
dentro, embora se apresente mais como uma maldição do que como um dom. É então
que esta dá a Sete-Sóis uma das maiores provas de amor possíveis: promete nunca
o olhar por dentro (o que demonstra o respeito que tem pelo seu marido e pela
sua individualidade, mas também pela sua privacidade, uma vez que todos
escondemos algo de todos os outros).
O casal acaba por
adotar o sonho do padre, voar, e empenha-se na construção da passarola,
escondida de olhares indiscretos (e do Tribunal do Santo Ofício) numa quinta em
S.Sebastião da Pedreira, gentilmente cedida por D. João V. Sete-Sóis e Sete-Luas (assim batizada por
Bartolomeu). Estão juntos em tudo o que fazem, raramente separados. Juntos
trabalham com o padre na construção da passarola e juntos recolhem pelas ruas
de Lisboa as vontades necessárias a que o engenho possa elevar-se do solo e
voar.
Este desejo
(concretizado) das personagens de estarem sempre juntas evidencia a paixão
ardente que os une, tal como apresentada na música («'Cause even when I dream
of you /The sweetest dream will never do /I'd still miss you»/«Porque mesmo
quando sonho contigo, o sonho mais doce não basta, teria à mesma saudades
tuas»; «Every moment spent with you
Is a moment of treasure»/«Todos os momentos a teu lado são momentos de tesouro»)
Is a moment of treasure»/«Todos os momentos a teu lado são momentos de tesouro»)
Este amor que ambos
sentem parece resistir à passagem dos anos, sem nunca esmorecer. Nem quando
Baltasar desaparece Blimunda deixa de o amar, percorrendo o País à procura do
seu marido ao longo de nove duros anos, reencontrando-o em Lisboa – o local
onde tudo começou.
Quando, após este
longo período de separação, o casal se reencontra, é novamente num auto-de-fé
(como que num regresso ao ponto de partida), embora, desta vez, apenas Blimunda
se encontre no meio da multidão: Baltasar é um dos supliciados ao fogo da
Inquisição.
Ao ver o homem que
amou ao longo de vinte e oito anos no mesmo local onde perdera a sua mãe,
decide capturar a sua vontade, para conservar algo do seu marido, para não o
perder eternamente, para permanecerem unidos mesmo após a morte. («And I just
want to stay with you, in this moment forever, forever and ever»/«E só quero
ficar contigo neste momento para sempre, para sempre»). Isto ocorre já no final
do romance e tem uma forte carga trágica, embora acabe duma forma bela: «Então
Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não
subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.». Baltasar estaria
presente não de corpo mas através da sua vontade.
Baltasar e Blimunda
personificam a verdadeira definição do que é o amor, por todos desejado: o amor
capaz de resistir a todas provações – mesmo a separação e a morte, tal como a
música, personifica o amor verdadeiro, que venceu os males da Inquisição, mas,
sobretudo, o amor verdadeiro que venceu a própria morte.
João F.
João F. (Suf+/Bom-) ||
“O Capitão Fantástico” (Miguel Araújo), Cinco Dias e Meio, 2012 // ?
O Capitão Fantástico de Miguel Araújo pode e
deve ser equiparado com Baltasar Sete-Sóis, protagonista na ação do romance,
que é, de facto, uma das personagens mais pragmáticas do Memorial do Convento.
“Lá vai ele (…) sozinho nesse vai-e-vem”, saído
da guerra da sucessão espanhola com a mão esquerda mutilada. Baltasar encontra
grandes dificuldades para voltar a Lisboa, onde queria arranjar sustento para,
futuramente, voltar para Mafra, a “estação Mãe”, onde tinha a família que
ansiava notícias do corajoso soldado e que tanto poderia estar vivo ou morto.
Usando as palavras de Miguel Araújo e de Memorial, o revólver do Fantástico
Baltasar era um gancho e um espigão, que encomendara: («pedia esmola em Évora
para juntar as moedas que teria de pagar ao ferreiro e ao seleiro se queria ter
o gancho de ferro que lhe havia de fazer as vezes da mão. Assim passou o Inverno,
forrando metade do que conseguia angariar, acautelando para o caminho metade da
outra metade, e entre a comida e o vinho se lhe ia o resto»). Era algo a que
Sete-Sóis se acostumara dada a sua limitada condição física, mas que o
sustentava, e era apenas isso que importava. Rapidamente ganharam utilidade e
“atiraram com desdém”, ao matarem um dos dois homens que o tentaram assaltar
entre Pegões e Aldegalega, na sua jornada até Lisboa.
E de barca, via-Tejo, Baltasar chega ao seu
destino, Lisboa, onde se depara com o caos e confusão da cidade do comércio e
do pecado. Entre peixeiras e freiras, encontra o seu velho amigo João Elvas,
que o acolhe nuns «telheiros abandonados», no “frio e escuro e [n]o chão [que]
é duro”. Conhece Blimunda, a sua alma gémea, no auto de fé da mãe da mesma, que
o acolhe e se apaixona. Conhece também Bartolomeu, o padre, que abençoa a
relação de amor à primeira vista, revela o segredo por trás da alcunha de o voador. Bartolomeu já conseguira voar
anteriormente, por outras palavras: “Já foi à Lua e voltou”.
Neste diálogo, Baltasar é recrutado para a
importante tarefa de construir uma passarola. Baltasar, incrédulo e ingénuo,
afirma que o homem só voará quando nascer com asas e mostra-se inseguro quanto
à tarefa dada: («Eu não sei nada, sou um homem do campo, mais do que isso só me
ensinaram a matar, e assim como me acho, sem esta mão»), revelando o seu lado
modesto e humilde. “E nisso que o Capitão Fantástico é até muito pragmático”,
poderia Bartolomeu afirmar, que o encoraja: («Com essa mão e esse gancho podes
fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que um gancho faz melhor que a mão
completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame ou um ferro,
nem se corta, nem se queima, e eu te digo que maneta é Deus, e fez o universo.»).
Sete-Sóis acaba por aceitar construir aquela passarola, que ditará a sua
própria morte e a do padre Bartolomeu, dada a perseguição do Santo Ofício que
considerava tal máquina bruxaria.
Despede-se o casal pela última vez: («Adeus
Blimunda, Adeus Baltasar»), e “Lá vai ele a mais de 1000; Sozinho num[a] fantástica
[passarola]”. Baltasar abandona definitivamente o Monte Junto, começa assim o
seu desaparecimento e inicia-se a jornada da sua cara-metade em busca do amado:
“Ó se não é o Capitão outra vez em órbita; Será que volta ou não?”, pensaria
Blimunda, que não hesita em procurá-lo por toda a parte, apesar de todas as
árduas situações por que passara. Após nove
anos, Blimunda finalmente encontra-o, num auto de fé, em Lisboa, a ser julgado:
(«Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as
estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.»).
Gonçalo
Gonçalo (Suf+/Bom-) || “Por quem não
esqueci” (Sétima Legião / Sétima Legião), De
um tempo ausente, 1989 // José Saramago, Memorial do Convento, 22.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp.
337-357
Como
é sabido, a paixão de Blimunda e Sete-Sóis é como unha e carne, ou, se
preferirmos, Sete-Luas é a mão esquerda de Baltasar, o que o complementa. Isto
seria se no seu lugar não estivesse o espigão que acabara entalado entre
costelas de um frade dominicano, como havia sido escrito em Évora.
Foi
nessa noite que Blimunda iniciou a sua procura (“Procuro à noite, Um sinal de
ti.”), caminhando, primeiramente, até ao esconderijo da máquina voadora onde só
encontrou o alforge de Baltasar, após uma primeira noite em branco esperando-o
(“Eu peço à noite, Um sinal de ti.”), que, sem ela o saber, antes da sua busca
levantara voo – “ Em toda a noite não dormiu. Deitada na manjedoura, envolvida
nas mantas que cheiravam a corpo e ao surro das ovelhas, abria os olhos para as
frinchas do caniçado da barraca, por onde o luaceiro coava” (“Espero à noite,
Por quem não esqueci.”).
A
viagem que começou por ser pequena, até à serra do Barregudo, estendeu-se por
todo o território português (“algumas vezes atravessou a raia de Espanha porque
não via no chão qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá, só ouvia
falar outra língua, e voltava para trás”) e acabou por durar nove anos.
“Ainda
procuro, Por quem não esqueci.” Representa esse período da sua vida, em que
Blimunda “vai perguntando se viram um homem com estes sinais, assim, e assim, o
mais formoso do mundo“, sacrificando o corpo cansado das viagens por Sete-Sóis
– “A sola dos seus pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça” –, na
esperança de que este venha a iluminar novamente a sua vida (“Em nome de um
sonho, Em nome de ti.”).
“Por
sinais perdidos, Espero em vão.” Embora não tenha sido em vão a sua espera, a
Voadora, assim apelidada pela “estranha história que contava” por onde passava,
procurava sinais perdidos. Por onde passava, não havia memória de nenhum homem
maneta, alto e de barba grisalha que “se entretanto a rapou, é uma cara que não
se esquece”.
Finalmente
“encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima”. Não foi em
vão. Parece obra de feiticeiro(a) acabar onde tudo começou há vinte e oito anos
– “Meteu-se pela Rua Nova dos Ferros, virou para a direita na igreja de Nossa
Senhora da Oliveira, em direcção ao Rossio”.
“Por
quem já não volta, Por quem eu perdi”: Baltasar está na fogueira, todas as
lágrimas que Blimunda derramou de desejo de o ter de volta foram em vão, os
sonhos e pensamentos das conversas que teriam quando se encontrassem – “Assim
te encontro, Blimunda, Assim te encontro, Baltasar, Por onde foi que andaste em
todos estes anos, que casos e misérias te aconteceram, Diz-me primeiramente de
ti, tu é que estiveste perdido” – morreram. Apenas ficou a vontade de
Sete-Sóis, que das estrelas se desviou (“Para que eu lembre, Que a noite tem
fim.”). Assim como em Memorial do
Convento, também nesta música se acaba onde se começou. Estes dois últimos
versos citados remetem-nos para a última vontade recolhida no livro, que,
interpretando a “noite” como vida, pertence a Blimunda.
Maria
Maria (Suficiente) ||
«All of me» (Dave Tozer/John Legend),
Love in future, 2013//José Saramago, Memorial
do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984
«All of me» lembra-me o amor vivido por Blimunda
de Jesus e Baltasar Mateus, ou Sete-Luas e Sete-Sóis, pois representavam um
amor puro («Loves all of you» - ama tudo em ti), desejado. Completavam-se,
entregavam-se um ao outro, eram fiéis e amavam-se apesar de tudo. Blimunda
possuía um poder mágico, conseguia observar o interior das coisas, o que, para
Baltasar, era um enigma («What’s going o non that beautiful mind» - o que se
está a passar nessa bela cabeça), pois tinha dificuldade em acreditar que tal
coisa fosse possível. Mas aceitava-o, pois ele também não era perfeito
fisicamente, era maneta da mão esquerda («All your perfect imperfections» - todas
as tuas perfeitas imperfeições), que perdera numa guerra contra os espanhóis,
acabando por ser expulso do exército.
Conheceram-se num auto-de-fé, em que Sebastiana,
mãe de Blimunda, estava a ser julgada pela Inquisição, por ser suspeita de
praticar feitiçarias. Nesse dia, Baltasar e Blimunda conheceram-se com a ajuda
do padre Bartolomeu de Gusmão, que os apresentou. De seguida, foram para casa
de Blimunda, onde esta deu a entender que o desejava (“(…) apesar do padre ter
acabado primeiro de comer, esperou que Baltasar terminasse para se servir da
colher dele (…)”). A partir desse momento Blimunda entregou-se por completo a
Baltasar, alimentou-o, e convidou-o a ficar em sua casa, onde dormiram juntos e
se envolveram («I’ll give my all to you» - Eu te darei o meu tudo).
O padre Bartolomeu de Gusmão foi bastante
importante no relacionamento destas duas almas tão puras, pois apresentou-as e
pediu-lhes ajuda na construção da passarola, a Baltasar com a sua bruta força e
com a vantagem de no lugar da mão ter um gancho, e a Blimunda, que ficou
encarregue de recolher as duas mil vontades que fariam a passarola voar. Acabou
esta por o conseguir e ficar doente por ter visto o interior de tantas pessoas
numa altura de peste. Ainda assim, mesmo doente, tornou possível o voo da
passarola. Nessa altura, Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu voaram pela
primeira vez. A viagem prevista não correu da melhor maneira pois a passarola
acabou por cair: o padre Bartolomeu desapareceu sem ter deixado rasto, Baltasar
e Blimunda estão vivos e juntos. Frequentemente, Baltasar ia averiguar a
situação da passarola, na Serra de Montejunto, até que, certo dia, se perdeu.
«You’re crazy and I’m out of my mind» - Tu és
louca e eu estou fora de controlo. Blimunda, receosa de ter perdido o seu
grande e único amor, procurou-o durante nove anos sem parar, demonstrando todo
o seu amor, devoção e persistência. Ao fim de nove anos, sem nunca ter parado
de o procurar, (“(…)Não comia há quase vinte e quatro horas. Trazia algum
alimento no alforge, mas, de cada vez que ia levá-lo à boca, parecia que sobre
a sua mão, outra mão se pousava, e uma voz lhe dizia, Não procura comas(…)”).
Blimunda não comeu e continuou à procura, até que chegou a um auto-de-fé, e viu
Baltasar a ser queimado. Nesta altura, Blimunda olhou-o por dentro pela
primeira vez (“(…) E uma nuvem fechada, está o centro do seu corpo, Então
Blimunda disse, Vem”). E, assim, Blimunda e Baltasar continuaram um só, sem
nunca mais se separarem e o seu amor permaneceu eterno (“desprendeu-se a vontade
de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a
Blimunda”), demonstrando assim a sua grande paixão e cumplicidade, sem nunca
lhe pôr um fim.
Mariana C.
Mariana
C. (Bom(-)) || “The Man Who Can’t Be Moved” (Mark Sheehan/ The Script), The
Script, 2008 // José Saramago, Memorial do Convento, 53.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp.
465-488
Em “The Man Who Can’t be moved” (o homem que não
se pode mover), pode-se ver uma personagem que sente imensas saudades de uma
rapariga, possivelmente a parceira de uma relação anterior, e a procura. No Memorial do Convento, temos situação
semelhante com Blimunda e Baltasar. Quando Baltasar não regressou da sua viagem
a Monte Junto, com o intuito de verificar a passarola, Blimunda ficou
preocupada (“Em toda essa noite, Blimunda não dormiu”, p. 465). Decidiu ir
procurá-lo, na manhã seguinte, a Monte Junto, mas sabia que “viria a encontrar
deserto este lugar” (p. 470). Inicia, então, uma busca incessante pelo seu
amor, indo a todo o lado procurá-lo (“Durante nove anos, Blimunda procurou
Baltasar. Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, … dois nevões de que só
saiu viva porque ainda não queria morrer.”, p. 487).
Na canção, o eu procura, também, uma pessoa, só
que, em vez de ir a todos os lugares ver se a encontra, volta ao local onde se
viram pela primeira vez. Encontramos semelhanças com o caso de Blimunda no
facto de o cantor dizer que vai ficar naquele local o tempo que for preciso e
que vai lutar contra tudo e todos até ter de volta aquele de quem está à
procura (“There’s someone I’m waiting for if it’s a day, a month, a year” /
Estou à espera de uma pessoa, quer seja por um dia, um mês, um ano; “Gotta
stand my ground even if it rains or snows”/ tenho de ficar aqui mesmo que chova
ou que neve), que foi a atitude que Blimunda teve em relação a Baltasar, ao não
desistir de o procurar.
“Onde chegava, perguntava se tinham visto por
ali um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto como um
soldado da guarda real, barba toda e grisalha…” (p. 487) – Blimunda, onde quer
que passasse, fazia uma descrição física de Baltasar às pessoas, na esperança
de estas o terem visto em algum sítio. O sujeito poético também pergunta, às
pessoas que passam na rua, se viram a rapariga de quem está à procura só que,
em vez de lhes fazer uma descrição física, entrega-lhes uma sua foto, fruto de
tecnologias de que Blimunda não podia usufruir no seu tempo (“Got some words on cardboard, got your picture in my
hand/ saying: if you see this girl can you tell her where I am”/ Tenho
algumas palavras num pedaço de cartão, tenho a tua fotografia na minha mão e
digo: se virem esta rapariga, podem dizer-lhe onde estou).
Achavam Blimunda maluca
(“Julgavam-na doida…”, p. 488) e era assim que o cantor se sentia também (“I
know it makes no sense, but what else can I do”/ sei que não faz sentido, mas
que mais posso fazer) - mas Blimunda “é apenas uma desgraçada mulher que perdeu o seu
homem, levado por ares e ventos, que faria todos os bruxedos para que ele
regressasse, mas desses não conhece nenhum” (p. 473), e não se sentia preparada
para desistir dele quando ele era a pessoa mais importante da sua vida - tal
como o eu lírico não queria desistir de procurar a rapariga (“How can I move on
when I’m still in love with you”/ Como é que posso avançar se ainda estou
apaixonado por ti).
Ironicamente, após nove anos de buscas, Blimunda
encontra Baltasar no sítio onde o conheceu, o que podemos relacionar com a
música, visto que o cantor decidiu logo, como estratégia para procurar a
rapariga, ficar no local onde se tinham conhecido, o que teria sido, também,
uma boa estratégia para Blimunda, porque esta acabou por encontrá-lo aí (no
Auto de Fé).
Filipa
Filipa
(Suficiente)|| «I Believe I Can Fly» (Robert Kelly/Robert Kelly), R. ,
1996 // José Saramago, Memorial do
Convento, 49.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 81-89
A música “I Believe I Can Fly/
Eu acredito que posso voar” lembra-me a obra de José Saramago Memorial do Convento, mas, mais
propriamente, o sonho de voar do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Na linha
de ação que corresponde a esse sonho, Bartolomeu, com a ajuda de Baltasar e
Blimunda, faz tudo para construir uma máquina “a passarola”, que o faça voar.
Assim, quer na obra quer na
canção o cantor e a personagem possuem o mesmo acreditar de um dia poderem
voar. Na música o eu poético diz “If I just believe it, there’s nothing to
it”(“E se eu só acreditar, nada poderá me impedir”); no romance, Bartolomeu
afirma que “Assim como o homem, o bicho da terra, se faz marinheiro por necessidade,
e por necessidade se fará voador” (p. 83).
O que faz também a relação
próxima entre a canção e a obra é o facto de ambos – o eu lírico e Bartolomeu
—, pensarem só no facto de poderem voar, pois, como se pode ver na canção, o
cantor diz “I think about it every night and day” (“Penso nisto todos os dias e
noites”), e, na obra, a concretização do sonho de Bartolomeu Lourenço ocupa uma
grande parte, sendo a construção do convento e da passarola os dois centros de
atenção dados pelo escritor. A construção da passarola é explicada ao pormenor
e, seguidamente, pelo narrador, desde o papel até à sua construção propriamente
dita.
Com isto, e apesar de ambos
possuíram a mesma vontade, o eu lírico acredita só profundamente que um dia
chegará a voar e que para isso apenas tem que acreditar (“If I just spread my
wings, I can fly”/ “Se eu apenas esticar as minhas asas, eu posso voar”), ou
seja, se ele apenas quiser, ele pode voar. Já o padre Bartolomeu Lourenço tenta
construir algo que o faça voar e, com a ajuda de Baltasar e Blimunda, o
primeiro faz um desenho, e o Padre dá-lhe o nome de Passarola, que representa
basicamente algo parecido com uma ave, cujos materiais (velas, para cortar o
vento; leme, para dirigir a passarola; proa e popa, para caso falta de vento; e
asas, para equilibrar a barca voadora), o poderão fazer voar (“acreditou que
todos aqueles materiais, juntos e ordenados nos lugares competentes, seriam
capazes de voar”, p.87).
O que distingue também a canção
da obra é o facto de na canção apenas uma pessoa sonhar voar e acreditar nisso,
pensando que apenas a abrir os braços o poderá fazer “Spread my wings and fly
away” (“Abrir as minhas asas e voar”), enquanto, na obra, Baltasar segue também
as pisadas de Bartolomeu Lourenço e acredita que talvez com a construção da
passarola, poderá voar, apesar de não ter a mão esquerda (“Se Deus é maneta e
fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar”,
p.89).
Catarina
Catarina (Suficiente (+)) || «All of me» (John Legend / John Legend), Love in the Future, 2013 // ?
A música «All of me»
(«Tudo de mim») do cantor John Legend pode associar-se à obra Memorial do Convento, devido ao amor que
Baltasar e Blimunda sentem um pelo outro, o amor verdadeiro e eterno.
No refrão, «Give your
all to me, and I’ll give my all to you» / «Dá tudo de ti que eu darei tudo de
mim» pode simbolizar o facto de Blimunda e Baltasar serem considerados um só e
mesmo sendo Baltasar maneta e Blimunda possuir um dom considerado raro,
continurem a amar-se da forma como são («Love your curves and all your edges,
all your perfect imperfections» / «Amo todas as tuas curvas e arestas, todas as
tuas perfeitas imperfeições»).
Em «We’re both showing
hearts, risking it all, though it’s hard» / «Estamos ambos a mostrar os nossos
corações, a arriscar tudo, embora seja difícil» a letra pode representar o
início do conhecimento do casal, quando Baltasar pergunta a Blimunda porque
quer tanto ela que fique respondendo ela «Porque é preciso», revelando assim
que não sabia o porquê, apenas que sentia que aquele seria o seu amor eterno. Baltasar
não consegue perceber Blimunda e questiona-se sobre o que ela tanto esconde,
perguntando até ao Padre Bartolomeu o porquê de o destino os ter juntado
("what’s going on in that beautiful mind, I’m on your magical mystery
ride").
O verso «You’re my
end and my beginning» / «És o meu início e o meu fim» pode-se também associar
ao final da história, em que é o início, pois Blimunda vê Baltasar, prestes a
ser morto, no sítio em que o conheceu, no auto-de-fé onde viu também morrer a
sua mãe, retirando-lhe assim a sua vontade, para que possam ficar juntos “para
sempre”.
Baltasar e Blimunda
protegem-se bastante. Quando Blimunda teve de retirar as vontades dos homens em
tempo de peste, para a realização da construção da passarola, sentindo-se mal
de seguida, Baltasar ficou bastante preocupado, e nunca abandonaria a sua amada
(«The world is beating you down, I’m around through every move» / «O mundo está
a mandar-te a baixo, eu estou por perto a ver cada movimento»). Blimunda, que
esteve nove anos à procura de Baltasar, nunca perdeu a esperança, nem o amor
que sentia, sendo que este foi até ao ultimo suspiro do casal: «You’re crazy
and I’m out of my mind» / «És louco e eu estou fora de mim».
Sofia A.
Sofia A. (Suficiente+/Bom-) || «Solamente tú» (Pablo Albóran), Solamente tú, 2010 // José Saramago, Memorial do Convento, 25ª edição,
Lisboa, Caminho, 1998, pp. 52-57
A música «Solamente
tú», de Pablo Albóran, aborda o tema do amor, o que relacionei com o momento em
que Baltasar e Blimunda se conhecem no auto de fé, quando Sebastiana, mãe de
Blimunda, é condenada pela inquisição por ter visões («esta sou eu, Sebastiana
Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas
disseram-me no tribunal que era fingimento», p. 52). Blimunda assiste a tudo
com o padre Bartolomeu a seu lado, que a tenta acalmar e pede para que não fale
mas, nesse momento, surge um homem perto dela e Blimunda vira-se para trás perguntando
«Que nome é o seu, e o homem disse (…) Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis»
(p. 53).
De regresso a casa,
Blimunda chora pela sua mãe; no entanto, leva consigo o padre Bartolomeu e
deixa que Baltasar também entre. Em «O Sete- Sóis, está calado, apenas olha
fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca
do estômago» (p. 55), mostra-se que Baltasar começa a descobrir o amor que
sente por Blimunda tal como, na música, em «Tus ojos son destellos/ os teus olhos
são brilhos» e «Haces que mi alma se despierte con tu luz/ Fazes com que a
minha alma desperte com a tua luz», o eu se mostra apaixonado fazendo
referência aos olhos da sua amada como sendo algo muito especial (como Baltasar
se refere aos olhos de Blimunda).
Durante o
jantar, o padre Bartolomeu entende o amor que une Baltasar e Blimunda que,
mesmo só tendo trocado breves palavras, já se encontram apaixonados. Em «Aceitas
para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que
era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele (…) declaro-vos casados» (p.
56), mostra-se que Blimunda o aceita como seu marido porque já sente um grande
amor por ele. Podemos relacionar isto com a música, visto que o autor sente
também um grande amor pela pessoa que ama, não querendo que ela saía da sua
vida.
Blimunda
pede a Baltasar que fique a viver em sua casa até ir para Mafra («Fica,
enquanto não fores, será sempre tempo de partires, por que queres tu que eu
fique, porque é preciso», p. 56), Baltasar aceita ficar e demonstra o seu amor
por Blimunda tal como o autor da música pela sua amada («Haces que mi cielo/ fazes com que o meu
céu/ Vuelva a tener ese azul/volte a ter esse azul»). Ambos dão a entender que
querem ser felizes, após o sofrimento por que passaram. Em «Y te entregaré mi
vida/ e te entregarei a minha vida», podemo-nos reportar ao amor incondicional
de Baltasar e do autor da música pelas suas amadas, com quem querem ter uma
vida em comum, dando-lhes todo o valor que merecem.
Existe uma diferença entre o amor
vivido em Memorial do Convento e o
amor na música, já que o amor de Baltasar e Blimunda surgiu espontaneamente («
não disse uma palavra, não te toquei», p. 56), sem que tivesse havido uma
conversa, e o amor referido na música («Con solo una caricia/ com apenas um
toque») é um amor vivido e construído com tempo.
Já os versos «Que tu voz guarda un
secreto/ que a tua voz tem um segredo», podemos relacioná-los com Memorial, pelo facto de Blimunda
esconder um segredo que só será
desvendado mais tarde a Baltasar.
Mariana O.
Mariana O. (Bom(-)) || «Lanterna
dos afogados» (Herbert Vianna), Multishow
ao vivo – Maria Gadú, 2010 // José Saramago, Memorial do Convento, 50. ª edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 466-493
«Quando a noite desceu completamente,
acabaram-se os peregrinos, a estas horas já Baltasar não virá, ou chegará tão
tarde que o receberei deitada, ou então estará cá amanhã», Blimunda começará,
certamente, a sentir o “poço” fundo e escuro que acompanha o anoitecer de um
dia farto de procura e súplica. No contexto de Memorial
do Convento, é-nos imposta a própria dor e angústia, sentida desde o início,
que acompanha a personagem após diversos acasos e maus jeitos. «Lanterna dos
afogados» fará a ligação, ainda que de forma mais poética, da trajetória
traçada pelo autor, a Blimunda, que se depara sozinha, afogada, numa lanterna
sem fim.
Neste caso, a função do leitor é a de, através
de um sentimento de compaixão, e até pena, para com a personagem Blimunda, tentar
encontrar essa luz que espera ocupar as últimas páginas de uma história
interminável. O pormenor mais inimaginável situa-se nessa mesma procura, «Há
uma luz no túnel dos desesperados / Há um cais de porto pra quem precisa
chegar», que acabará por conferir a Blimunda importância chave no desenrolar
dos últimos capítulos da obra. Para a mesma, a mágoa permanece juntamente com o
desaparecimento de Baltasar, aquele que é a “lanterna” no meio dos “afogados”
que esperam por uma réstia de luz, (neste caso, Blimunda e os próprios leitores).
É-nos difícil distinguir um momento
objetivamente mais importante durante essa mesma procura, ainda que no momento
final – com a morte de Baltasar Sete-Sóis – consigamos dar essa procura como
finita. Ainda assim, para quem procura, a luta da espera acaba por se tornar
ainda mais importante, contradizendo a ênfase que nos é dada no final da obra.
Na verdade, Blimunda sofre da espera e da momentânea descrença, isto porque
«Baltasar prometeu» e a sua palavra de Homem seria tão valiosa que mereceria
cada ano de espera. O único interesse seria o engano da desistência e, assim
sendo, «não se sentou Blimunda para comer, ia andando e mastigando». «E são
tantas marcas que já fazem parte / Do que sou agora, mas ainda sei me virar» –
será esta a postura de uma mulher que espera o retorno em vão do seu homem?
Porque em vão ela será, mas mais em vão seria se a mesma não soubesse
encontrar-se e encontrar em si forças para se virar e fazer cumprir o seu amor.
Em momento algum nos é dito que o poder de
Blimunda, na verdade, é o seu amor incomparável por Baltasar, mas terá sido
isso que os terá unido naquele dia triste que foi o da condenação de sua mãe,
Sebastiana de Jesus. Seu amor era maior que qualquer passarola, ou noite sem
traços da passagem de uma lanterna salvadora: «acreditava confusamente que o
encontraria no dia seguinte, que portanto não ganhava nada em procurá-lo hoje»
e assim era, e assim se deu, que nem o olhar mais cansado e a expressão menos
esperançosa lhe ditaria o caminho de volta para casa sem a visão do brilho dos
olhos do seu Baltasar «levado por ares e ventos».
Se existem noites mais escuras «é uma noite
longa» e dias menos apetecíveis que assim vão passando «pra uma vida curta»,
nem mil frades despojados da humildade e do respeito, nem mil momentos de
franqueza, tornariam a caminhada mais lenta, porque a escuridão é muita mas a
luz dos desesperados é maior e «Assim acontece nas grandes esperas».
Tornava o sol, tornava a lua, tornava a dor,
tornava a esperança e assim era a sua boa viagem, boa porque tinha o propósito
de o encontrar, «basta poder te ajudar / vê se não vai demorar». Não será
despropositado dizer que tanta era a fé de Blimunda, tanta era a fé daqueles
que nela acreditavam, que Baltasar se apressara a fazer cumprir a sua promessa.
Ele estaria realmente na «Lanterna dos afogados» e não tardava a súplica para
que Blimunda, e só Blimunda, o ajudasse a cumprir aquele que foi o último traço
de amor entre ambos. Existirá certamente uma lanterna em que ambos se encontrarão
afogados, no escuro, no silêncio, na noite dos desesperados. Aquele seria o
«cais do porto» em que ambos esperariam um ao outro, «mas já não importa», «desprendeu-se
a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra
pertencia e a Blimunda.
Por vezes, nem todas as lanternas salvam um amor
de um afogamento, mas promessas, essas, até a mais ínfima luz atravessa.
Daniel
Daniel (Suficiente(-)) || «A
Thousand Years» (Christina Perri ft. Steve Kazee/
Christina Perri), A Thousand Years, 2011
// José Saramago, Memorial do Convento,
Linda-a-Velha, Biblioteca Visão, 2000, ?
A história
de Sete-Sóis e Sete-Luas, os heróis do pé descalço, quase presentes em todos os
capítulos, à excepção dos três primeiros, constitui o nó principal da intriga. Protagonistas, as figuras populares de Sete-Sóis e Sete-Luas (alcunhas
simbólicas) transmitem uma mensagem profunda, pois este casal vive uma história
de amor, aventura e realização humana que nem a fogueira inquisitorial destrói. Baltasar
e Blimunda percorrem meio mundo, separadamente ou em conjunto, no anseio de um
olhar, de uma busca, de uma alternativa, de uma satisfação.
A
apresentação de Baltasar começa no Cap. IV (p. 26) «Este que por desafrontada
aparência, sacudir da espada e desparelhadas vestes, ainda que descalço, parece
soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis.».
Ao
contrário de Baltasar, a apresentação de Blimunda é feita em monólogo, por sua
mãe (Sebastiana Maria de Jesus), no Cap. V (p. 37): «ai, ali está, Blimunda,
Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem de fingir
que não me conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrana ainda que apenas um
quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre Bartolomeu Lourenço, não fales,
Blimunda, olha só, olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver». Foi
também a mãe de Blimunda a dar o primeiro passo da relação de Baltasar e
Blimunda («e aquele homem quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não
sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem que vai ser deles, poder meu,
pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado» (p. 37).
É
neste auto de fé que começa a relação de Baltasar e Blimunda («The day
we met; Frozen I held my breath / No dia que nos conhecemos; Congelei e prendi
a minha respiração») com uma simples pergunta: «Que nome é o seu, e o homem
disse, naturalmente, assim como reconhecendo o direito de esta mulher lhe fazer
preguntas, Baltasar Mateus, também me chama Sete-Sóis» (p. 37). Num momento tão
dramático como o da perda da mãe, Blimunda estava sensível e insegura; contudo,
encontra essa segurança em Baltasar («Right from the start; I knew it I found
the home for my; Heart beats fast; But watching you stand alone; All of my
doubt goes away somehow/ Desde o início; Eu sabia que tinha encontrado uma
‘casa’ para o meu; Coração exausto; Mas ao ver-te sozinho; Todas as minhas
dúvidas desaparecem»).
Os anos
passam e Baltasar descobre o segredo de Blimunda e apresenta-a à família. Enfim,
passam por mil e uma aventuras, constroem a passarola em conjunto com o padre
Bartolomeu Lourenço e chegam a voar na mesma.
Um dia,
na primeira tentativa de busca de Baltasar — desaparecido depois de ter ido
verificar a passarola —, Blimunda depara-se com um franciscano que tenta
satisfazer os seus desejos mas que é esfaqueado por Blimunda, e acaba por
morrer.
Nove
anos passaram e Blimunda continua a sua busca persistente a Baltasar, o seu
amor (cap. XXIII, pp. 252 e 253): «Durante nove anos, Blimunda procurou
Baltasar», «Nove anos procurou Blimunda. Começou por contar as estações, depois
perdeu-lhes o sentido. Nos primeiros tempos calculava as léguas que andava por
dia, quatro, cinco às vezes seis, mas depois confundiram-se-lhe os números, não
tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter significado, tudo se media em
manhã, tarde, noite, chuva, soalheira, granizo, névoa e nevoeiro, caminho bom,
caminho do mar, ribeira de rios, e rostos, milhares e milhares de rostos,
rostos sem número que os dissesse, quantas vezes mais os que em Mafra se tinham
juntado, e de entre os rostos, os das mulheres para as preguntas, os dos homens
para ver se neles estavam a resposta, e destes nem muito novos nem os muito
velhos, alguém de quarenta e cinco anos quando o deixamos além no monte junto
quando subiu aos ares para sabermos a idade que vai tendo basta acrescentar-lhe
um ano de cada vez, por cada mês tanta rugas, por cada dia tantos cabelos
brancos.». Até que, finalmente, dá-se o último encontro entre Blimunda e
Baltasar, um golpe no coração de Blimunda (p. 254). «São onze os suplicados. A
queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um
homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio
cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do
seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar
Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda» («And all along I believed I would find you; Time has brought your heart to me;
I have loved you for a thousand years; I'll love you for a thousand more /E todo este tempo
eu acreditei que te iria encontrar; O tempo trouxe o teu coração até a mim; Eu
amar-te-ei milhares de anos; Amar-te-ei por milhares de anos»), assim se comprovando que, nesta
história, vence o milagre do amor.
Aurélio
Aurélio (Bom-) || «More Than Words» (Nuno
Bettencourt / Gary Cherone), Extreme II:
Pornograffitti, 1990 (Interpretado por Diogo, Factor X, Gala 06) // José
Saramago, Memorial do Convento, 48.ª
edição, Lisboa, Caminho, 2002, pp. 30-50
«More Than Words» ou, em português, «Mais que palavras» será o título
perfeito para descrever a relação de Baltasar e Blimunda ao longo da obra. O eu
lírico da música tenta mostrar-nos o efeito que o amor acaba por ter nele e
diz-nos como não são necessárias palavras para demonstrarmos sentimentos.
Precisamos apenas de senti-lo; sem sequer ser preciso falar.
Vou começar esta espécie de confronto, logo no início da história das
duas personagens principais do Memorial.
Quando Baltasar e Blimunda se conhecem, é transmitido ao leitor um clima de
atracão demasiado forte (''Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas
olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na
boca do estômago’’). Quando terminado o auto de fé em que a mãe de Blimunda
morre, esta sente que precisa de estar com Baltasar e acaba por convidá-lo para
ir a sua casa sem sequer ter de falar (''e quando Blimunda chegou a casa deixou
a porta aberta para que Baltasar entrasse''). E é esta também a mensagem mais
presente no primeiro verso da música que escolhi (''Saying I love you / Is not
the words I want to hear from you'' // '' Dizer que te amo / Não são as palavras
que te quero ouvir dizer''). Baltasar já se sentia atraído por Blimunda, mesmo
sem saber se o sentimento era recíproco, e mesmo sem saber para onde esta o
levava — pois nada lhe fora dito — seguiu-a incondicionalmente.
A música segue quase literalmente o caminho amoroso de ambos. Mais à frente,
na obra, temos a promessa de Blimunda a Baltasar de que nunca o olharia por
dentro (''Juro que nunca te olharei por dentro [...] Não sabes de que estás a
falar, não te olhei por dentro...'') e, tal como na música, Baltasar
pergunta-se qual terá sido a espécie de ''feitiço'' que Blimunda lhe deitara ao
coração para o conseguir dividir entre a família e ficar com ela (‘’What would
you do if my heart was torn in two? / More than words to show you feel /That
your love for me is real'' // ''O que farias se o meu coração fosse partido em
dois / Mais que palavras para te demonstrar o sentimento / Que o teu amor é
verdadeiro''); (''Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma
irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres
tu que eu fique, Porque é preciso'').
Blimunda acaba, então, por contar o segredo que Baltasar tanto
procurava. Depois de o ter marcado com uma cruz de sangue para garantir que
nunca o iria ver por dentro (''Com as pontas dos dedos médio e indicador
humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar,
sobre o coração''), acaba por lhe contar o tal segredo e explicar-lho (''Não
sabias o que estavas a dizer, nem soubeste que estavas a ouvir quando eu te
disse que nunca te olharia por dentro [...] Eu posso olhar por dentro das
pessoas.''). Na música que escolhi, acaba por acontecer um pouco ao invés do que
acontece no livro. Primeiro, o sujeito poético mostra que tenta conversar e
mostrar a verdade à outra pessoa (''Now that I've tried to talk to you and make
you understand'' // ''Agora que tentei falar contigo e fazer-te entender’’) —
tal como Blimunda teve de explicar a verdade, tendo Baltasar ficado incrédulo
(''Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso,
Não acredito, Primeiro, quiseste saber, não descansavas enquanto não soubesses,
agora já sabes e dizes que não acreditas, antes assim, mas daqui para o futuro
não me tires o pão'') e só depois é que acaba por lhe dar uma prova de amor — a
mesma feita quando Blimunda marca Baltasar para não o poder ver — nunca o
deixando partir (''All you have to do is close your eyes and just reach out
your hands / And touch me, hold me close, don't ever let me go'' // '' Tudo o
que tens de fazer é fechar os olhos e estender as mãos / E tocar-me, agarra-me
perto, nunca me deixes ir embora'').
Assim, esta música, mostra o amor profundo sentido por ambos, que acabavam
por se entender sem terem de falar. Decidi, por isso, não optar pela versão
original da música, pois o amor destes personagens não é um amor banal como
esta música pop que vendeu 10 milhões de singles. O amor deles é diferente,
interpretável tal como todas as músicas podem ser interpretadas, como mostra,
também, o seu vídeo.
Miguel T.
Miguel T. (Bom) «É
Terça-Feira» (Sérgio Godinho / Sérgio Godinho), Canto da Boca (1981) // José Saramago, Memorial do Convento, 21ª edição, Lisboa, Caminho, 1992, pp. 253-256
Debruçar-me-ei neste comentário sobre as últimas
páginas do romance de José Saramago, Memorial
do Convento. Blimunda passa nove anos da sua vida em busca do seu amor,
perdido numa aventura voadora, que inclui um padre, um compositor italiano, e um
casal do povo trabalhador, e fora do comum. Baltasar saiu uma noite para ir
arranjar a Passarola, e não voltou a casa, em Mafra, o sagrado local sobre o
qual o Espírito Santo “voara” e onde El-Rei, D. João V, ergue um extraordinário
convento.
Baltasar, nunca mais voltou. E nos nove anos
seguintes Blimunda dedicou-se à procura do seu marido: começou por ir a Monte
Junto, o sítio para onde ele se dirigiu (o local secreto da Passarola) e voltou
a Mafra, o último local onde o vira. A partir daí o narrador descreve a ação de
Blimunda como rotineira e habitual.
Também Sérgio Godinho, numa canção bem mais
recente do que o tempo em que se conta a história de Blimunda, nos fala de uma
rapariga, que todas as terças-feiras de desloca à Feira da Ladra, com estranhos
comportamentos e certas rotinas atípicas de um visitante comum desta feira. É
notável o recurso que o artista utiliza para sublinhar a repetição das ações da
rapariga. Utiliza os versos «É terça-feira / e a feira da ladra…» três vezes e
o verso «É terça-feira…» apenas se faz contar seis vezes ao longo dos dois
minutos e quarenta da canção.
Não nos deixa indiferente a minúcia com que
Blimunda descreve o seu homem, Baltasar, e, a certa altura, a Passarola
(«Pássaro de ferro e vimes entrançados, com uma vela preta, bolas de âmbar
amarelo, e duas esferas de metal baço que contêm o maior segredo do universo»).
Tal era a sua repetição de discurso e ações em todas as terras por onde
passara, algumas delas também repetidas (passa sete vezes por Lisboa), que
ganhou o nome de Voadora. A rapariga da canção do álbum «Canto da Boca» de
Sérgio Godinho não fica com nenhuma designação ou cognome. Contudo, todos a
conhecem por ser «a rapariga que… desce a escada quatro a quatro/ vende tudo o
que trazia/ deixou no chão um lamento». Apesar de ainda não ter como Blimunda («Voadora»)
um nome reconhecido, devido às suas ações rotineiras, ganha alcunhas.
Normal é que os comportamentos de ambas as
personagens (do livro e da canção) sejam estranhos aos olhos dos outros
personagens que contracenam com elas. Estas raparigas não são comuns. Blimunda,
que perde o seu marido numa noite, depois de uma vida inteira de partilha, e sem
saber se Baltasar está morto, vivo, consciente ou inconsciente à sua busca
desesperada por respostas, seu coração é «incapaz de dizer “tanto faz”». Para
além disso, viveu uma história fora do real para as pessoas mais simples do
século XVIII: da Passarola e de como voou. Esta procura desesperada começa a
ganhar contornos de loucura. A rapariga da canção de Sérgio Godinho não é uma
comerciante usual da feira da ladra. Ela vende «mágoas… juras falsas, amargura
e ilusões… contradições». «Troca tristeza, pela alegria», consegue escoar tudo
o que vende, talvez por vender «ao desbarato» tudo o que traz consigo.
As histórias têm um tronco comum: raparigas, que
sofreram traumas muito pessoais e utilizam a rotina como forma de escape à
realidade. Talvez um dia, talvez amanhã, que aparentemente é «quarta-feira, das
cinzas, talvez», Blimunda encontre Baltasar e deixe de precisar de vaguear
sozinha pela feira da ladra, e possam os dois partir, sempre «com os olhos na
paz».
Lara
Lara (Suficiente(-)) || “Não deixe de sonhar” (Rodrigo Panassolo), Chimarruts ao vivo, 2007 // José Saramago, Memorial do Convento,
26ª edição, Lisboa, Caminho, 1998, pp. ?-?
“Não deixe de sonhar”
transmite o mesmo sentimento do padre Bartolomeu Lourenço. Nunca parou de
sonhar, mesmo quando foi ridicularizado por todos na corte.
“Não abra mão dos
proprios sonhos” é, no fundo, a apologia de vida do padre Bartolomeu Lourenço,
a felicidade do seu dia-a-dia é o pensar no seu sonho, no seu trabalho. Para
ele,“não tem perdão” desistir, ao fim de tantos anos de trabalho e tanto
esforço.
Seguiu o seu sonho e
não desistiu: “Há doze anos que isso foi, desde então a verdade mudou muito…”
Na música dos Chimarruts e em Memorial do Convento podemos encontrar, na mensagem transmitida,
pontos convergentes. Vejamos: “Se alguém te perguntar por mim, pode dizer que
eu vim para falar o que ninguém mais fala nem quer acreditar” (“Não deixe de
sonhar”) refere-se a alguém verdadeiro, que mesmo com opiniões adversas, deseja
mostrar o que pensa; o mesmo se vê em Memorial
do convento de Saramago. Bartolomeu Lourenço deseja, mesmo contra as
diversas opiniões, construir algo que possa voar, tem em si um desejo de
aventurar-se pelos céus e com um engenho ser reconhecido por todos.
Contudo é desprezado
na corte, mas, apoiado por D. João V segue com o projeto. Vai para a Holanda, e
lá aprende os segredos da aeronáutica. Regressa a Lisboa convicto de saber o
segredo e vai para Coimbra, local onde estuda e se forma (“Já o padre
Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em cânones, confirmado de
Gusmão por apelativo onomástico e firme escrita”).
Ajudado por Baltasar
Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas e, por vezes, com a companhia de Domenico
Scarlatti, que ao som do cravo sonhava e ajudava a sonhar, assim o padre
Bartolomeu Lourenço construiu a sua obra.
Na canção insinua-se
alguém sincero, que diz a verdade sem medo, que segue os seus sonhos, o que não
se mostra propriamente com Bartolomeu. O apoio de D. João V neste projeto
megalómano permite a Bartolomeu Lourenço não desistir. No entanto este tem
plena consciência de que ainda não foi apanhado pela inquisição exatamente por
esta “proteção”, que se traduz, no fundo, por alguma amizade e esperança na
partilha do sonho da máquina voadora por parte do rei.
“Pois não vai
encontrar quem vai sorrir por ti” é algo que coincide em ambas as mensagens
transmitidas. No fundo, cada um é por si, há a necessidade de fazermos nós por
nós próprios. Saramago procura através do Padre Bartolomeu demonstrar a
necessidade da amizade, da aventura, dos estudos, dos riscos, afinal a
necessidade dos sonhos.
Rita
Rita (Suficiente (+)) ||
«Thousand years» (Christina Perri), Breaking Dawn, 2011 // José
Saramago, Memorial do Convento, 53ª edição, Lisboa, Caminho, 2013, pp.
487- 493
Primeiramente, importa descrever as personagens
Blimunda e Baltasar, que, nesta obra, enquadram-se no grupo do contra poder,
tal como o Padre Bartolomeu Lourenço e Domenico Scarlatti. Blimunda é uma jovem
mulher de dezanove anos e é imprescindível na construção da passarola, devido
aos seus poderes de “ver por dentro” e de “recolher as vontades”. Baltasar é um
ex-soldado tornado açougueiro em Lisboa, pois o gancho que lhe serve de mão
esquerda lhe facilita o trabalho, para mas tarde integrar, como boieiro, a
legião de operários na obras do convento
de Mafra. Quando o Padre Bartlomeu o conhece no auto-de-fé, em que a mãe
de Blimunda é exilada para Angola, fá-lo participante do seu sonho de voar,
sonho que será continuado, após a fuga e a morte do padre. Baltasar paga com a
sua própria vida a perseguição desse sonho, o que o transforma no herói do
romance, transcendendo, desta foma, a imagem do povo oprimido e espezinhado de
que faz parte.
A relação entre Baltasar e Blimunda
é uma lição de vida, pois ambos, ao longo do romance, são vítimas de injustiças, em nenhum momento
da história são possuidores de bens com valor, e vivem rodeadas das mais
diversas dificuldades. Mas há algo que vence e suporta todo o sofrimento vivido
neste romance, o amor que os une.
Mas falo de
amor verdadeiro, não é aquele que surge entre pessoas que têm relações por
interesse, como acontece também em Memorial do Convento entre D. João
V e D. Maria Ana, falo do amor que tem a capacidade de unir duas pessoas numa
só, aquele amor forte o suficiente para enfrentar qualquer tipo de obstáculo,
capaz de transmitir força nos momentos mais críticos. E é isso que acontece
neste romance: só sendo o seu um amor puro e verdadeiro é que este casal pôde
enfrentar os problemas e adversidades que enfrentou, sempre unido, e, mesmo
quando a morte ameaçava ser o destino irreversível de Baltasar, Blimunda retirou-lhe
a vontade, salvando-o: "Então Blimunda disse, Vem. desprendeu-se a vontade
de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a
Blimunda."
De acordo com Memorial
do Convento, de José Saramago, a personagem Blimunda, ao longo da história,
revela ser uma mulher muito frágil e sensível, mas também bastante determinada
e independente, de maneira que a música que achei que caracterizasse mais estes
traços que descrevi previamente desta personagem é “A thousand years”, de
Christina Perri.
Segundo
a letra desta canção, a cantora menciona, principalmente no refrão, “One step
closer / I have died everyday waiting for you / Darling don't be afraid, I have
love you for a thousand years (...) And all along I believed I would find you”.
Traduzindo esta parte da música para português fica da seguinte maneira: “Um
passo mais perto / Eu morri todos os dias à espera de ti / Amor, não tenhas
medo, eu irei amar-te por mil anos (…) Durante todo este tempo acreditei que te
iria encontrar”.
Para além desta música caracterizar o espírito
determinante e apaixonante de Blimunda, também quase parece referir-se a uma
parte específica desta obra, aquela em que a personagem procura por Baltasar, o
ex-soldado maneta por quem ela sente um grande amor e cumplicidade, durante
nove anos, sem saber se ele morreu na tentativa falhada de colocar a passarola
a voar e mesmo não se importando de ser considerada doida por todas as terras
que ia passando ao perguntar pelo paradeiro do seu amado.
Através da frase desta música “All along I
believed I would find you” (“Durante todo este tempo acreditei que te iria
encontrar”), na minha opinião, faz-se uma descrição completa, não só da
determinação de Blimunda, como referi anteriormente, mas também da confiança,
do amor puro e humilde e da união intensa que existe entre as duas personagens.
Esta união tão forte faz com que sejam, de certa forma, um só, por esta razão é
que Blimunda, o aceita tal como é e nunca o “vê por dentro”, sendo esse um dos
seus poderes. Dito isto, toda esta confiança que é notória em Sete-luas incentiva
mais a busca por Baltasar, apesar de todos os obstáculos e incertezas.
Em suma, penso que esta música, “A thousand years”, de Christina Perri,
se identifica com a busca incansável e com o amor eterno que Blimunda sempre
sentiria por Baltasar: “Darling don't be afraid, I have love you for a thousand
years / Amor, não tenhas medo, eu irei amar-te por mil anos”).
André
André (Insuficiente+) || «Here without you» (3 doors down), Here
without you, 2002 // José Saramago, Memorial
do Convento, 37.ª edição, Lisboa, Caminho, 1982.
A música “Here
without you” é um romance/drama, pois em cada verso cantado consegue-se
identificar o amor entre duas almas apaixonadas. Quando separadas, uma imensa
mágoa rodeada de tristeza apodera-se deles, mas, mesmo assim, nunca desistem e
continuam a pensar que um dia irão encontrar-se de novo para, finalmente, se amarem
e viverem sem contradições, até ao final das suas vidas. “Here without you” (“Estou
aqui sem ti”),” But you still in my only mine” (“Mas tu estás apenas na minha
mente”), “I think about you baby” (“estou a pensar em ti”) são versos que
exemplificam a tristeza sentida por não estar junto de quem se ama.
“Here without
you” está relacionada com uma parte de Memorial
do Convento que diz respeito à paixão entre Blimunda (Sete-luas) e Baltasar
(Sete-sóis), que já não conseguem viver um sem o outro.
Nas páginas 56 e
57 de Memorial dá-se primeiro
encontro amoroso, e, nas mesmas páginas, dá-se o casamento simbólico abençoado
pelo padre Bartolomeu Lourenço. A relação entre Baltasar e Blimunda é uma lição
de vida. Fazem parte do povo, do mais baixo nível da sociedade, são alvos de
injustiça, vivem as mais variadas dificuldades, mas tudo isto é suportado pelo
amor. É o amor que tem a capacidade de unir duas pessoas numa só, que é capaz
de ultrapassar os mais variados obstáculos. É isto que acontece neste romance:
só mediante do amor puro e verdadeiro é que este casal pôde enfrentar as
diversidades que ultrapassou, sempre unido, e, mesmo quando a morte ameaçava
ser o destino e irreversível para Baltasar, Blimunda retirou-lhe a vontade,
salvando-o: “então Blimunda disse, Vem desprendeu-se a vontade de Baltasar
(sete-sóis), mas não subiu para as estrelas, se á terra pertencia e a
Blimunda”.
Ana
Ana (Suficiente(-)) || “Anda comigo ver os aviões” (Os Azeitonas), Em boa companhia eu vou, 2010// José
Saramago, Memorial do Convento, 42.ª
edição, Lisboa, Caminho, 1994, pp. 68-69
A música “Anda comigo
ver os aviões”, dos Azeitonas, relaciona-se com Memorial do Convento, de José Saramago, em dois aspectos: a
intensidade do amor e a Passarola.
O amor entre Baltasar
Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas é uma história exemplar de nunca desistir da
pessoa de quem realmente amamos e do que esse amor nos leva a fazer (“Mas que
eu morra aqui / Mulher tu sabes o quanto eu te amo, / O quanto eu gosto de ti”).
No fundo, não é nesse
amor que nos vamos focar mas na Passarola. A Passarola inclui quatro
personagens fundamentais que tiveram um papel importante na sua história,
Baltasar–Sete Sóis, Blimunda–Sete Luas, o Padre Bartolomeu Lourenço e Domenico Scarlatti.
A construção da
passarola era um sonho “e porque à vista era o desenho um pássaro, acreditou
que todos aqueles materiais, juntos e ordenados nos lugares competentes, seriam
capazes de voar.”(p. 68), tal como a música é também um sonho (“Um dia (…)”).
A mensagem que se
pretende passar é de não de desistirmos
dos nossos sonhos, mesmo que pareçam ser difíceis de concretizar, neste caso de
os construir. Existem pessoas que estão do nosso lado e nos podem ajudar (“Ainda
não sei, respondeu o padre, falta-me quem me ajude, sozinho não posso fazer
tudo, e há trabalhos para que a minha força não é suficiente.”, p. 68).
O desejo de superação
de dificuldades também é aqui representado, pois Baltasar apenas tinha uma mão
e, no lugar da outra mão, tinha um gancho que não o impediu de construir a
Passarola, tornando aquilo que muitos consideram uma deficiência numa qualidade
(“Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que
um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de
segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima (…)”, pp. 68-69), enquanto
o autor da música dispõe-se a superar as dificuldades pela sua amada (“Um dia
eu vou jogar á bola / Ou vendo esta viola / (…) Se um dia eu não te levo à
América / Nem que eu leve a América até ti”).
O autor da música
revela intenções de “Um dia vamos ver os foguetões, / A rasgar as nuvens, / Rasgar
o céu…”, o que lembra certo dia em que a passarola levanta voo e atinge uma
altura tão elevada que o Padre Bartolomeu temeu o perigo.
Tanto a música “Anda
comigo ver os aviões” como Memorial do
Convento têm intenções positivas de atingir certos objectivos. Uma relação
amorosa positiva em que são capazes de ir até ao fim do mundo pelo seu
relacionamento, tal como o amor que é explícito na música em que o autor é
capaz de dar a sua própria vida pela sua amada: “Mas que eu morra aqui, /
Mulher tu sabes o quanto eu te amo, / O quanto eu gosto de ti”.
João R.
João R. (Suficiente+) ||
“I Believe I Can Fly” (R. Kelly), R.,
1998 // José Saramago, Memorial do
Convento, #, #, #
“I Believe I Can Fly” ou, em português, “Eu
Acredito Que Posso Voar”, partilha da mesma ambição de voar do Padre Bartolomeu
Lourenço de Gusmão. Podemos observar esta “ambição” de Bartolomeu, desde o capítulo
VI de Memorial do Convento de José
Saramago. Bartolomeu começou por ir ao encontro de D.João V, afirmando que tinha
descoberto “um instrumento para se andar pelo ar da mesma sorte que pela terra
e pelo mar”.Conseguindo o
interesse do Rei, este deu-lhe um espaço onde Bartolomeu pudesse desenvolver a
máquina. Esse espaço era uma quinta em São Sebastião da Pedreira, onde
permanecia a passarola e onde apenas três pessoas poderiam ir: Bartolomeu,
Baltasar e Blimunda.
Detentor de grande sabedoria e conhecimento, o padre era
“obcecado” não só por voar, mas também pela Ciência. Conhecido como o “Padre Voador”, “ Aquele
que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço, a quem chamam o Voador” (p. 61),
Bartolomeu sempre tivera o sonho e ambição de voar. Tendo o apoio do rei D.João
V, o padre sempre possuiu fé e acreditou que, algum dia, faria a passarola
voar. Apesar de o rei depositar confiança no padre, já o povo e o resto da
corte não teriam o mesmo pensamento, “troçando” mesmo das habilidades e
competências de Bartolomeu, não como padre, mas sim como inventor, “Tenho sido
risada da corte e dos poetas”. No capítulo VI, vemos que Bartolomeu já tinha
feito algumas experiências, mesmo antes de ter a ideia de criar a passarola: “Primeiro
fiz um balão, depois fiz outro, enfim outro”. Onde podemos reparar na grande
ambição e sonho de Bartolomeu é mesmo na página 64, quando nos diz: “O homem
primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará.”. Para corrigir os
erros da passarola, Bartolomeu viaja até a Holanda, onde irá estudar para saber
mais sobre os elementos a usar na passarola, para que esta voe. Voltando a Lisboa,
Gusmão arranja a solução para que a passarola voe, juntamente com a ajuda de
Baltasar e Blimunda. Bartolomeu, Baltasar e Blimunda formam um trio que vai pôr
em prática o sonho de voar, com as habilidades individuais de cada um. Ou seja,
para concluir, penso que não existe outra música que se identifique tanto com o
sonho de voar de Baltasar. Além de toda a canção fazer sentido quanto à personagem
do Padre Bartolomeu, existem duas frases que podemos destacar quanto á ambição
e á personalidade de Baltasar: A primeira frase seria o título da música (em
português: “Eu Acredito Que Posso Voar”). Esta frase, retrata todo o objetivo
de Bartolomeu ao longo da obra. Construir a passarola e conseguir voar.
Portanto, o título é o mais adequado possível, à ambição de Bartolomeu. A
segunda frase seria “Because I believe in me” (em português: “Porque eu
acredito em mim”), que mostra toda a personalidade de Bartolomeu. Ao longo da
obra reparamos que ele é bastante ridicularizado pelas pessoas e, mais tarde,
ele mesmo iria quase perder toda a sua ambição quando parece que a passarola
não conseguiria voar. Porém, nunca desistiu desse sonho e, acreditando nele e
nas capacidades dos que o rodeavam, a aventura tornou-se possível e a passarola
finalmente voou. Este personagem retrata
um personagem sonhador, ambicioso e determinado, não tendo desistido do seu
sonho até o concretizar.
Duarte
Duarte (Suficiente) || “Hope Of
Deliverance” (Paul McCartney), Off the
Ground, 1994 // José Saramago, Memorial
do Convento, 53.ª edição, Lisboa, Caminho, 1994.
“Hope Of Deliverance” interpretada por Paul McCartney,
é uma música com o ideal de esperança no futuro, de força de libertação face
aos difíceis e conturbados momentos do presente, podendo ser incorporada de
forma adequada em qualquer período histórico.
Analisando a letra da
música, é isso que acontece, constatando-se várias semelhanças com a obra de
José Saramago, Memorial do Convento.
Nos versos “And I
wouldn't mind knowing, knowing, / That you wouldn't mind going, / Going along
with my plan” (“Não me importaria de saber, saber, / Que você não se importaria
de ir, / Ir em frente com o meu plano”), está presente o sentimento de união mútua
entre Blimunda e Baltasar, estando ela, neste caso, disposta a apoiar e ajudar
Baltasar e Bartolomeu na construção da passarola, tendo a função de
recolher 2000 vontades, trabalhando arduamente. Mesmo doente devido à
peste, sacrificou-se para atingir esse fim: “E se a ele apeteceu, a
ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele.” (capítulo VIII, p. 99).
Nos versos “When it will
be right, I don't know, / What it will be like, I don't know, / We live in hope
of deliverance, From the darkness that surrounds us” (“Quando será certo, não
sei, / O que vai ser, eu não sei, / Nós vivemos com a esperança de libertação, /
Da escuridão que nos cerca”), está expressa a ideia de incerteza da realização
do sonho, de se ser bem sucedido, neste caso, no sonho de voar, que será
atingido através da construção da passarola. Mas, apesar dessa incógnita, o
ideal estará sempre na mente de cada um dos envolvidos, bem como a infinita
esperança para o atingir, embora estejam presentes medos,
contrariedades e regras impostas. Só através da sua quebra, contrariando
todas as opiniões e restrições defendidas na altura, é que se
conseguirá atingir a tão desejada liberdade: “Nem sempre se pode ter tudo,
quantas vezes pedindo isto se alcança aquilo, que esse é o mistério das
orações, lançamo-las ao ar com uma intenção que é nossa, mas elas escolhem o
seu próprio caminho, às vezes atrasam-se para deixar passar outras que tinham
partido depois (...) ” (capítulo VII, p. 95).
Por fim, e apesar de
serem os versos iniciais da música, resumem bem a parte final da obra “I will
always be hoping, hoping, / You will always be holding, holding, / My heart in
your hand” (“Sempre estarei com esperança, com esperança, / Você sempre estará
segurando, segurando / Meu coração na sua mão”). Está patente o amor
verdadeiro entre Blimunda e Baltasar, estando ela disposta a procurar incessantemente
o homem a quem jurou amor eterno aquando o seu desaparecimento, nunca
lhe faltando esperança e determinação ao longo de nove anos, apesar das
sucessivas dificuldades no caminho. Finalmente, quando o encontra num
auto-de-fé em Lisboa, recolhe a sua vontade, que considera pertencer-lhe,
havendo uma analogia entre 'coração' e ‘vontade': “A queima já vai
adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a
quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético
da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu
corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar
Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à Terra pertencia e a Blimunda” (capítulo
XXV, p. 493).
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