Convento 3
Nota é a da primeira versão. Algumas das
referências ainda podem ser melhoradas (letristas e compositores devem ser
confirmados, nomes e datas de álbuns, etc.). A pouco e pouco irei acrescentando
esses dados (para o que peço, é claro, a colaboração dos autores das análises
ou de outros colegas).
Gi
Gi (Bom) || “Power” (Kanye West ft. Dwele), My Beautiful Dark Twisted Fantasy, 2010 // José Saramago, Memorial do Convento, 53.ª edição,
Lisboa, Caminho, 1994
O que é ter poder? O que
é ser rei? O que é estar acima de todos, andar com arcas cheias de moedas de
ouro para distribuir como se elas não fossem nada (“É El-Rei um monarca
previdente que sempre leva arcas de ouro para onde vá”, p. 179)? Poucas pessoas
podem descrever tal sensação, mas, se alguém as experienciou, foi D. João V e,
se alguém fala hoje de similares poderes e riquezas, é Kanye West.
Em “Power”, West escreve
sobre si próprio, descrevendo a sua personalidade egoísta muito conhecida no
mundo do hip-hop (“I embody every characteristic of the egotistic” /// Eu
incorporo todas as caraterísticas do egoísta) e atacando os seus vários
críticos (“Fuck SNL and the whole cast / Tell them Yeezy said they can kiss my
whole ass” // Que se foda o SNL e todo o elenco / Digam-lhes que [West] disse
que podem beijar o seu rabo).
Esta mesma personalidade
egoísta, enraizada numa fonte de poder de proporções monumentais, que “nenhum
homem devia ter” (“No one man should have all that power”) pode ser comparada à
personalidade de D. João V, rei de Portugal durante o século dezoito. D. João e
Kanye West são homens imensamente diferentes, como é óbvio. Basta olhar para o
século em que nasceram, as suas posições sociais e a sua aparência para
determinar isto. Contudo, também apresentam várias semelhanças, como já foi
dito.
Olhando hoje para o
passado, qualquer um pode dizer que o período de maior prosperidade de Portugal
foi o dos Descobrimentos e, mais tarde ainda, o reinado de D. João V. O
dinheiro continuava a entrar como um rio dourado para o tesouro de Portugal,
vindo maioritariamente do Brasil, D. João não hesitava em gastá-lo como
desejasse. Este nosso rei queria marcar a sua posição no mundo, deixar algo por
que todos o relembrassem, e ao mesmo tempo, queria ele próprio apreciar as suas
construções e nadar no seu grande sucesso (“[esse medo] é sim o de que não
estejam abertos e luzentos os seus próprios olhos quando, sagradas, se alçarem
as torres e a cúpula de Mafra” p. 396). Para D. João, o mundo não era seu, mas
Portugal e as colónias certamente eram (“Till then, fuck that the world's ours”
// Até aí, que se lixe, o mundo é nosso”).
A prova disto é a
construção do convento de Mafra. Ao ler Memorial
do Convento, o leitor rapidamente se apercebe de que, embora D. Maria Ana,
mulher de D. João, seja uma católica devota, a mesma paixão por Deus não é
partilhada pelo seu marido, que não se conduz de acordo com as dez doutrinas e
só participa em cerimónias religiosas porque estas fazem parte do seu dever e
implicam um aparato que lhe agrada. Isto não quer dizer que D. João V não seja
religioso, tal é muito difícil de se afirmar com a informação que nos é
apresentada; pelo que deu a entender a obra de Saramago, simplesmente não era
um católico devoto.
Contudo, quando Frei
António de São José anuncia ao rei que vai ter o filho que tanto deseja se
construir um convento para os Franciscanos, o rei aceita a proposta sem muitas
hesitações (“É virtuoso este frade? [perguntou o rei e] o bispo respondeu, Não
há outro que mais o seja na sua ordem. Então D. João (...) levantou a voz
(...), Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de
franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho” p.15-16), não porque
tenha interesse em ajudar os franciscanos, mas porque precisa de descendentes e
porque a construção do convento vai deixar um legado de extraordinária
grandeza.
Todo o comportamento de
D. João reflete a sua natureza egocêntrica e egoísta, como também o estado de
Portugal na altura, quando os pobres só ficavam mais pobres e os ricos só
ficavam mais ricos. Este mesmo estado ainda predomina nos dias de hoje (“The
system broken, the school's closed, the prison's open” // O sistema está
partido, a escola fechada, a prisão aberta”) como evidencia a canção de West.
Ana Marta
Ana Marta (Bom+/Muito
Bom-) || «Não desistas de mim» (Pedro Abrunhosa/Comité Caviar), Longe, 2010 // José Saramago, Memorial do Convento, 53.ª edição,
Lisboa, Caminho, 2013, pp. 460-464 e pp. 470-475
“Adeus Blimunda, Adeus Baltasar” (p. 461) –
assim se despedem, pela última vez, Sete-Luas e Sete-Sóis, quando ele pretende
ir a Monte Junto concertar a passarola. É neste episódio do romance, situado no
capítulo XXIII, que Baltasar sobe aos céus pela segunda vez – agora apenas por acidente
– quando as esferas que aprisionavam as duas mil vontades são destapadas e
ficam em contacto com a luz solar. Por consequência, a “máquina rodopiou (…) e
subiu”(p. 464). Baltasar, porém, não regressou a casa nessa noite, nem nas
seguintes. Blimunda, cada vez mais inquieta com ausência prolongada do
companheiro, decide ir a Monte Junto ver se o encontra, mas, quando chega ao
local, não vê Baltasar nem a passarola (“desde o princípio soubera que viria a
encontrar deserto este lugar”[p. 470]).
O sujeito poético da música de Pedro Abrunhosa
“Não desistas de mim”, tal como Blimunda, perdeu alguém próximo, o seu amor e,
com isso, ficou desamparado, sem rumo. Com as devidas diferenças entre as duas
situações – na canção, a amada do “eu” desaparece de noite, e no Memorial, Baltasar parte para Monte
Junto de manhã (“Quando amanheceu, Baltasar disse, Vou ao Monte Junto” [p.
460]) – os dois versos que iniciam a canção refletem bem o
desamparo de Blimunda face
ao desaparecimento súbito do seu amor (“A porta fechou-se
contigo/Levaste na noite o meu chão”).
O par amoroso do romance mantinha uma relação
pouco ortodoxa, de igualdade. Faziam tudo juntos. Juntos construíram a
passarola, recolheram as vontades necessárias para elevar a máquina aos céus e,
por fim, sobrevoaram Lisboa e Mafra (“Eu sei que houve um
tempo em que tu e eu/Fomos dois pássaros loucos/Voamos pelas ruas/ Que fizemos
céu”). Esta rara cumplicidade, dependência um do outro, foi responsável pela longa procura
de Blimunda.
Os protagonistas da música de Abrunhosa tinham
uma relação semelhante à descrita no parágrafo anterior (“Somos a pele um do outro”, “Somos metades iguais”).
A música, para além
de ter pontos em comum com história, pode servir também como uma reflexão de
Blimunda. No início da sua procura por Baltasar, quando decide passar a noite
numas ruínas, num “bom lugar para passar a noite ao abrigo do frio e das
feras”(p. 475), um dos pensamentos possíveis da personagem seria “E agora neste
quarto vazio/Não sei que outras sombras virão”. O que veio não foram sombras,
mas um frade – precisamente o que lhe tinha recomendado aquele lugar para
passar a noite – que pretendia violá-la ([«Um vulto passou diante duma fresta,
a luz desenhou um perfil torcido na parede rugosa. Imediatamente Blimunda soube
que era o frade do caminho (…) a verdade é que o frade vem saciar a carne»[p.
476]).
Para além de servir
como uma reflexão de Sete-Luas, a música tem dois versos, “Não desistas de mim/Não
te percas agora”, que poderiam ser proferidos por Baltasar, encorajando
Blimunda a não desistir da sua procura intensiva. No romance, após o
desaparecimento de Sete-sóis, nada se sabe sobre a sua localização ou estado
emocional, mas presume-se que queria ser encontrado pela sua amada. Afinal,
quem não gostaria de ser encontrado pela pessoa que ama?
Ana Gisela
Ana Gisela (Bom-) || «O Homem do Leme» (Xutos e Pontapés), Cerco, 1985 // José Saramago, Memorial
do Convento, 53.ª edição, Lisboa, Caminho, 2013, pp. 155-181.
Podemos encontrar
semelhanças indiscutíveis entre Bartolomeu Lourenço, uma das principais
personagens do Memorial do Convento, e
o próprio Homem do leme, ao qual a canção se reporta.
Bartolomeu Lourenço
era um padre que tinha como maior desejo e objetivo de vida voar. Contou com a
ajuda de Baltasar e Blimunda para o realizar, um casal seu amigo, em quem ele
pôde confiar. Esta ajuda foi indispensável para Bartolomeu concretizar o seu
desejo. Uma pessoa sozinha não conseguiria construir nem levantar nos ares uma
"passarola", e, além disso, foi graças ao poder especial de Blimunda,
ver através das pessoas, o que lhe permitiu capturar “vontades”, que tornaram
possível fazer a passarola voar.
Após anos de trabalho
árduo e contínuo, finalmente chega o grande dia. Bartolomeu, procurado pelo
Santo Oficio, tal como na canção, em que «E mais que uma onda, mais que uma
maré... / tentaram prende-lo impor-lhe uma fé...», vê-se obrigado a fugir. Com
a passarola construída e pronta, pedem ajuda ao Anjo Custódio para aquela
"viagem". Assim, partem pelos ares, sacudidos pelos ventos, até aonde
o destino os quis levar… Como na canção, o Homem do leme não tem qualquer
destino, «Sozinho na noite / um barco ruma para onde vai.».
Lá do alto avistam
Lisboa, o Terreiro do Paço, as ruas, as pessoas... Passam por momentos de medo,
euforia, deslumbramento e felicidade, considerando-se loucos. («E uma vontade
de rir nasce do fundo do ser. / e uma vontade de ir, correr o mundo e
partir»).A noite chega. Sem sol, a máquina começa a perder altitude. Estão
extremamente assustados, Bartolomeu não sabe o que fazer, como que já tivesse
perdido a esperança («a vida é sempre a perder...»). No entanto, Blimunda
consegue controlar a máquina com a ajuda de Baltasar e evitam o pior.
Já em terra firme,
consideram esta viagem um milagre, o terem-se salvado sem um único ferimento.
Mas Baltasar e Blimunda estão preocupados com Bartolomeu: ele está doente e,
embora tenha realizado o seu grande sonho, encontra-se triste. Tem medo de ser
encontrado pelo Santo Ofício… Essa ideia continua a atormentá-lo e, apesar de
estar distante da civilização, Bartolomeu perde a vontade de viver, não
consegue encontrar um futuro que o mereça («No fundo horizonte / sopra o
murmúrio para onde vai./ No fundo do tempo/ foge o futuro, é tarde demais...»).
Blimunda e Baltasar estão cansados. Esgotados, adormecem, deixando o padre
sozinho, quieto, a observar as estrelas.
Acordam ambos
sobressaltados («Uma luz no escuro brilha a direito / ofusca as demais.»). O
padre, pegando fogo à passarola, está doente e não tem mais nada que o prenda a
este mundo de loucos. Baltasar agarra-o pela cintura, afastando-o do fogo. O
padre afirma: “Se tenho de arder numa fogueira, fosse ao menos nesta.” E
afastou-se para a escuridão, nunca mais voltou, («mas, vogando a vontade,
rompendo a saudade, / vai quem já nada teme, vai o homem do leme...»). Baltasar
ainda tentou ir atrás dele mas não o encontrou, o padre desaparecera por
completo. Baltasar e Blimunda nunca mais o viram… («No fundo do mar / jazem os
outros, os que lá ficaram. / em dias cinzentos / descanso eterno lá
encontraram.»).
Leonor
Leonor (Bom(+)) || “Que
força é essa?” (Sérgio
Godinho/Sérgio Godinho), Os Sobreviventes
// José Saramago, Memorial do Convento,
53.ª edição, Lisboa, Caminho, 2013, pp. 325-330
“Que força é essa?” denuncia a constante
exploração a que os trabalhadores estão sujeitos. Tomando uma voz de liderança
e de apelo à revolta, o eu do poema (interpretado pelo próprio Sérgio Godinho e
por José Mário Branco) expõe as injustiças da classe operária a que vai sendo
exigido cada vez mais para cumprir objetivos dos patrões, como explicam os
primeiros seis versos da canção. Existe portanto uma ponte explícita para com a
situação miserável e desgastante sofrida pelos trabalhadores do Convento de
Mafra.
Embora seja uma canção de intervenção, os
objetivos políticos implícitos na mesma estão também presentes na obra de
Saramago, numa ironia furtiva e inconstante que se adequa à temporalidade da
obra, («…mas, enquanto não acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos,
e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a
ter o nome e a profissão.», p. 330).
A obra vai avançando com dificuldades, os homens
e os animais esforçam-se para conseguir dar conta do recado. Neste capítulo,
«Durante muitos meses, Baltasar puxou e empurrou carros de mão, até que um dia
se achou demasiado cansado de ser mula de liteira, ora à frente, ora atrás, e,
tendo prestado públicas e boas provas perante oficiais do ofício, passou a
andar com uma junta de bois, das muitas que el-rei tinha comprado.» (p. 327). Até
que, certo dia, informam os pobres trabalhadores de que é necessário ir a Pero
Pinheiro buscar uma pedra de grandes dimensões - mais um esforço para os homens
esgotados.
É de salientar o facto de, tanto na obra de
Saramago como na canção, a atitude transmitida ser de defesa do trabalhador e
de compreensão face ao seu débil estado - no Memorial é mais subtil esta crítica mas o narrador tenta adotar uma
atitude de respeito para com todas as vítimas da construção do convento («tudo
quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se
atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das
vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa
obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de
nós depende.», p. 329), seguindo-se uma lista imensa de nomes.
Os personagens da história sujeitam-se a tudo
mas não se sentem com forças ou com capacidade de poder mudar alguma coisa numa
sociedade extremamente estratificada que move uns em função de outros, os
poderosos. Na canção há versos que sobem o tom de revolta face ao que o sujeito
poético observa: «Não me digas que não me compr´endes», «quando os dias se
tornam azedos», «não me digas que nunca sentiste», «uma força a crescer-te nos
dedos», «e uma raiva a nascer-te nos dentes», «Não me digas que não me
compr´endes». O que não chega verdadeiramente a acontecer em Memorial, esta subida de tom de revolta
devido às precárias condições de trabalho, grande parte devido ao medo de perder
o trabalho nas obras (trabalho que permite sustentar a família) e também por
ignorância desta capacidade de modificar o que está mal numa classe, que é, por
sinal, a que tem um maior número de elementos na sociedade estratificada do
Antigo regime, ou seja, a falta de consciência de classe. O narrador tenta
desculpar este facto com a justificação de que «se Blimunda tivesse vindo à
despedida sem ter comido o seu pão, que vontade veria em cada um, a de ser
outra coisa» (p. 330) e conduz o leitor à tomada de consciência desta injusta
realidade.
Luísa
Luísa (Muito Bom-) || «Before
I leave» (Jah Cure/?), World Cry,
2012 / / José Saramago, Memorial do
Convento, 51ª edição, Lisboa, Caminho, 2011, pp. 450-461
Com a música apresentada, cria-se um ponto de
encontro com um dos momentos do capítulo XXIII, a última noite de Baltasar com
Blimunda, antes de partir para o Monte Junto. «Before I leave» retrata um casal
que procura, através do toque,
despedir-se da melhor forma possível pois, sabendo que será talvez a
última vez que se vêem os seus elementos, tentam aproveitar o último momento ao
máximo, garantindo que o outro sabe que é amado.
Quando Baltasar regressa a casa “tão
esforçadamente de longe” (p. 451), Blimunda recebe-o com a mesma paixão de
sempre, apesar de Baltasar já ter “a
barba cheia de brancas, (...) a testa carregada de rugas, (...) escorreado o
pescoço, (...) descaem os ombros” (p.
451).
Depois da ceia, quando já todos dormiam,
Baltasar perguntou a Blimunda “Queres ir ver as estátuas” (p. 453) e Blimunda
concordou. Subiram até ao Alto da Vela, onde Baltasar anunciou que no dia
seguinte iria a Monte Junto ver como estava a passarola e consertar o que fosse
preciso. Blimunda oferece-se para o acompanhar, mas Baltasar recusa.
Blimunda aconselha-o então a ter cautela,
Baltasar responde “Descansa, a mim não me assaltam ladrões nem mordem lobos”
(p. 454), e Sete-Luas mostra a sua preocupação não em relação aos animais, mas
às consequências do segredo da passarola, mostrando algum saber ou intuição
sobre o que viria a acontecer.
O casal segue então para onde as estátuas tinham
sido descarregadas e, durante algum tempo, observa todas, adivinhando o santo
de algumas, esforçando-se para reconhecer outras. Quando voltam para casa,
Baltasar leva Blimunda para a “barraca da burra” (p. 458), como já teriam feito
antes “ora por vontade de um, ora por vontade do outro” (p. 459), quase que
dizendo: «Before I leave, feel me again / Capture the moment so it never ends»
(Antes de eu partir, sente-me outra vez / Capta o momento para que nunca
acabe).
São tomados de assalto pela paixão e pela
angústia antecipada da partida de Baltasar e despedem-se com “ânsia” e “violência”
numa “sofreguidão do beijo” pois, apesar de já estarem mais velhos e os corpos
não permanecerem intactos, “o amor [de Blimunda e Baltasar] existe sobre todas
as coisas” (p. 460).
O adeus espiritual de Blimunda e Baltasar surge
do físico, na manjedoura “afofada de palha” (p. 459) como uma cama, onde se
aproveitam um do outro, sendo o seu amor a única motivação necessário para que
se encontrem os corpos: «You can meet me
in the shower / We can dry off in the covers / And take advantage of each other
/ Before I leave / I don’t need no cup of coffee / You motivate my body (Podes
encontrar-te comigo no duche / Podemos secar nos lençóis / E aproveitarmo-nos
um do outro / Antes de eu partir / Não preciso de nenhum café / Tu motivas o
meu corpo).
A noite na barraca serve para Baltasar tentar
acalmar as preocupações de Blimunda e para esta lhe mostrar o seu amor,
sofregamente, para que, no caso de lhe acontecer alguma coisa, todas as
palavras terem sido ditas: «Let me take away all your tension / Act like you
never want it to end» (Deixa-me tirar-te toda a tua tensão / Age como se nunca
quisesses que acabasse).
Na manhã seguinte, Blimunda acompanha Baltasar
até fora da vila, onde se abraçam e procuram assegurar que serão o último
pensamento na mente do outro - «So I can be the last thing on your mind» (Para
que eu possa ser a última coisa na tua mente) e “Blimunda impossivelmente
tentando que o tempo pare” (p. 460): «I don’t want it to end» (Não quero que
tudo isto acabe).
Blimunda e Baltasar despedem-se pela última vez,
separando-se e voltando a aproximar-se, expressando a simbiose e o amor e
alguma da tristeza que adivinha o futuro
– “Adeus Blimunda, Adeus Baltasar” (p. 461) – «Show me your love /
Before I leave, call out my name» (Mostra-me o teu amor / Antes de eu partir,
chama pelo meu nome).
Mariana
Mariana
(Muito Bom) || «Burn the Witch» (Queens of the Stone Age/Josh Homme), Lullabies to Paralize, 2006 // José
Saramago, Memorial do Convento, 21.ª
edição, Lisboa, Caminho, 1992, pp. 49-53
“Burn the Witch” é uma canção dos Queens of the
Stone Age sobre a caça às bruxas. Nesta, duas crianças estão a caminho da
execução de uma bruxa, denunciada por elas (“On our way/To see what we have
done”, “A caminho/Para ver o que fizemos”). Contudo, não estão certas sobre a
denúncia feita (“Ask yourself/Will I burn in Hell?”, “Pergunta a ti
próprio/Irei arder no Inferno?”). Durante a execução, olham noutra direcção,
enquanto aguardam que a prova da sua mentira arda (“Fan the flames/With a
little lie/Then turn your cheek/Until the fire dies”, “Aviva as chamas/Com uma
pequena mentira/Então vira a tua cara/Até o fogo morrer”).
A música refere os julgamentos das bruxas de
Salém, que se deram nos Estados Unidos da América no século XVII. Foram
iniciados quando algumas crianças desenvolveram um conjunto de sintomas
(possivelmente, derivados da intoxicação com esporão-do-centeio, que causa
alucinações e ataques epilépticos) e denunciaram três mulheres ao juiz da
cidade como culpadas, o que despoletou uma época de caça às bruxas. O próprio
juiz que as condenou admitiu, mais tarde, ter sido tal uma acção precipitada,
podendo estar as vítimas inocentes.
Analogamente, em Memorial do Convento, está presente a Inquisição e a sua caça à
heresia, de que é exemplo o auto-de-fé onde Sebastiana Maria, mãe de Blimunda,
é condenada ao desterro. Neste episódio, o povo sai das suas casas para
assistir ao auto-de-fé e à procissão, que é motivo de grande agitação. Às
janelas encontram-se as mulheres, a chamar a atenção dos seus pretendentes, que
assistem à procissão. O rei veio também assistir. Os condenados prosseguem pelo
Rossio, vestidos de acordo com a sua sentença: amarelo para quem será apenas
punido, e cinzento, para as duas mulheres que serão queimadas vivas.
O livro retrata fielmente a Inquisição no século
XVIII, um sistema de controlo religioso que visava buscar e punir os heréticos,
tanto cristãos-novos como pessoas acusadas de bruxaria.
Em ambos os casos se verifica uma perseguição
religiosa: em “Burn the Witch”, por cristãos protestantes, e em Memorial do Convento por cristãos
católicos, tendo em comum a intolerância e o fanatismo religiosos e o uso da
religião como instrumento de ódio e controlo social. As bruxas, ou os
cristãos-novos, são utilizados como bode expiatório dos males da sociedade,
assim como de eventuais catástrofes naturais, pois dá segurança ao povo ter uma
entidade em quem colocar as culpas, aliviando assim a que os próprios poderiam
sentir e contribuindo para a felicidade pública. Os autos-de-fé são utilizados
como escape à sua própria realidade dura, onde a entidade que encarna o mal é
punida, mantendo a população satisfeita e mais facilmente controlável. Assim,
as execuções eram um evento social, que agradava à multidão (“The mob it cries
for blood”/”A multidão pede sangue”); em Memorial
do Convento, a ocasião de um auto-de-fé é um “dia de alegria geral”(p. 50)
e uma oportunidade para encontros românticos. Aliás, foi nesta ocasião que
Baltasar e Blimunda se conheceram. A insensibilidade e falta de empatia são
criticadas em ambas as obras, pois o povo assiste às execuções sem questionar
realmente a culpabilidade dos condenados nem o modo como são tratados. As
pessoas regressam a casa “levando agarrada à sola dos sapatos alguma fuligem,
pegajosas poeiras de carnes negras” (p. 54), a um Domingo, dia do Senhor, e são
indiferentes ao facto de levarem agarrados restos humanos.
Em suma, em ambos os acontecimentos o móbil é a
histeria colectiva, com o fim de expurgar os podres da sociedade, que leva à
denúncia descabida, utilizada como instrumento de poder, da Igreja Protestante,
em “Burn the Witch”, e da Igreja
Católica e, em última análise, de D. João V, que colecta os bens apreendidos
dos judeus acusados. É também um exemplo do poder da despersonalização: na
multidão, a empatia é substituída pela euforia.
Marta V.
Marta V. (Bom(+)) || «The age of worry» (John Mayer), Born
and Raised, 2011// José Saramago, Memorial
do Convento, 13.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984, pp. 256-261
A música deste autor é adequada à linha de acção de Memorial
do Convento relativa à construção da passarola, em que as personagens
principais são o Padre Bartolomeu de Gusmão, Baltasar Sete-Sóis e Blimunda
Sete-Luas.
A música parece
dar conta dos momentos anteriores, aquando e após a construção da passarola, já
que, primeiramente, se assemelha a um relato da introspecção do Padre, quando
toma consciência de que a execução do seu projecto voador porá à prova o poder
da Inquisição e que se estará a colocar tanto a si como aos seus companheiros,
Baltasar e Blimunda, em perigo de morte, uma vez que a Igreja o considera
errado aos olhos de Deus e os condenará se descobrir este feito. Há claramente
um conflito interior entre o querer usufruir da Ciência, da sua sabedoria e
criatividade, e não deixar de fomentar a palavra de Deus, como requer o seu
ofício. Portanto, terá de ser corajoso, persistente consigo mesmo e alterar os
seus valores, largando alguns dos princípios que estudou na Igreja para que o
seu projecto “tenha asas para voar” – “Build
your heart an army/To defend your innocence/While you do everything wrong” (“Construa o seu coração um
exército/Para defender a sua inocência/Enquanto faz tudo errado”).
“Don't be scared to walk alone/Don't be scared to like it/There's no time that you must be home/So, sleep where darkness falls“ (“Não tenha medo de andar
sozinho/E não tenha medo de gostar disso/ Você não tem hora para ir para casa/Então durma onde a escuridão cair) – seriam, talvez, estas as
palavras de que o padre necessitaria para se sentir mais confortável,
acompanhado e livre com a sua tomada de decisão. Ou seja, sabe que está a fugir
à regra mas não pode ter medo, de andar sozinho por ser diferente e tem de, ao
menos, tirar prazer disso para que valha a pena. Então, tem de se libertar dos
pensamentos negativos.
Ainda que o casal Sete-Sóis não tenha, para além do peso da
possibilidade iminente de morte, o peso de estar a revogar os ensinamentos da
Igreja, como o seu dirigente, também eles se devem preparar mentalmente e ter a
coragem necessária para dar início ao trabalho que finalmente arranjaram junto
do Padre, mesmo com todo o perigo, secretismo e sigilo profissional deles
exigido, ao construírem a passarola na Quinta de São Sebastião da Pedreira,
longe de Lisboa e da Inquisição. Assim, estas estrofes podem ser aplicadas às
três personagens inseridas nesta linha de sentido.
Existe como que uma força, intrínseca a cada um deles, que
os dirige para o pecado, mas, ao mesmo tempo, lhes permite prosseguir por ser
uma motivação que todos eles acabam por ter, inconscientemente, e que diz:
“Alive in the age of worry/Smile in the age of worry/Go wild in the age of
worry/And say, "Worry, why should I care?” (“Viva na era da
preocupação/Sorria na era da preocupação/Enlouqueça na era da preocupação/E
diga, "Preocupação? Porque me deveria importar?").
Esta é a era em que o que fazem é pecado, mas em que a vontade de viver nela e
de lutar pelos seus ideais não deverá ser perdida, porque não se devem importar
com a Inquisição ao ponto de enlouquecerem.
No decorrer da intriga faz-se muito a alusão ao estado de
espírito destas três personagens, que são tidas como corajosas mas que,
inevitavelmente, se encontram preocupadas com o seu futuro, algo que causa suspense e ansiedade ao leitor, visto
que a descrição exaustiva da construção da passarola permite que se crie uma
empatia com as personagens e faz sentir o mesmo peso de consciência que as
atinge.
A música escolhida acaba por se focar no mais profundo
carácter destes aventureiros pois percebe-se, através da leitura do livro, que
a luta aqui inerente acaba por não ser tanto contra eles, os crentes da Igreja,
porque inicialmente não sabem disso, mas
contra eles próprios, que procuram equilibrar os seus sentimentos não
sincrónicos enquanto o tempo passa – “No, your fight is not with them/ours is
with your timing/ Dream your dreams, but don't pretend/Make friends with what
you are” (“Saiba que a sua luta não é contra eles/A luta é contra
o seu tempo aqui”, por isso o “Voador” deve “[Sonhar] os seus sonhos, mas não
[fingir]/[Fazer] amizades com o que [ele] é.”).
“The age of worry” é um encorajamento e um aconselhar,
maioritariamente ao Padre, que se encontram tenuemente implícitos no romance,
mas por palavras descritivas, da criação de Saramago, e de actos que lhe são
conferidos.
O “Voador” deu o seu coração, dedicou muito tempo da sua
vida à passarola e, apesar de o ter conseguido, no final acaba por entregar o
seu coração à morte, porque a pressão é muita, tal como o desgosto por ter
construído algo que não é totalmente perfeito e não pode ser livremente
demonstrado – “Give your heart, then change your mind/You're allowed to do it/
'Cause God knows it's been done to you/And somehow you got through it” (“Dê
o seu coração, de seguida, mude a sua mente/ Você está autorizado a fazê-lo/Porque Deus sabe que ele foi feito para si/E de algum modo obterá através
dele”).
A canção termina com duas estrofes que resumem todo o estado
de espírito dos participantes desta jornada, ao longo da construção da máquina
voadora, e parece transmitir-nos a mesma força de vontade que Baltasar,
Blimunda e o Padre tiveram de ter para enfrentar o conflito interior que os
consumia. Faz um resumo mental deste passo da história, fazendo com que o
leitor se recorde deste marco importante, realizado ao longo do romance: “Alive
in the age of worry/Rage in the age of worry/ Sing out in the age of worry/ And
sing, "Worry, why should I care?"; ”Rage in the age of worry/Act your
age in the age of worry/And say, "Worry, get outta here” (“Viva na era da
preocupação/Irrite-se na era da preocupação/ Cante na era da preocupação/ E
cante: ''Preocupação, por que me deveria preocupar?"; "Irrite-se na era
da preocupação/ Aja naturalmente na era da preocupação/ E diga: 'Preocupação,
sai daqui'”).
Paco
Paco (Bom/Bom(-)) || “Verdade” (Tomás Wallenstein/Tomás
Wallenstein), Gazela, 2011 // José
Saramago, Memorial do Convento, 49.ª
edição, Lisboa, Caminho, 2010, pp. 36-88
Em “Verdade”,
a parte instrumental varia entre momentos monótonos e partes dinâmicas que, em certos casos, culminam em alguma
tensão musical criada tanto pelo coro, no fundo, como pela bateria. A voz é
constante, em termos de tom, pela música; talvez algo melancólica, contrastando
com o resto do instrumental, parecendo que o vocalista declama uma mensagem e,
assim sendo, a sua voz prolonga-se pelo conteúdo.
Toda a letra
de “Verdade” gira à volta do título, sendo importante realçar alguns temas em
comum com Memorial do Convento, como
a opressão (que, no caso do livro de José Saramago, segue uma vertente
religiosa), a impotência social, a falta de liberdade e a tirania sobre o povo.
A tensão
acumulada pela bateria no último terço do segundo minuto assemelha-se àquela
que Baltasar possivelmente experienciara quando fora para a guerra de onde
acabara por sair deficiente (“Foi mandado embora do exército por já não ter
serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso”, p.
45).
Na letra,
especificamente, poucos são os paralelismos literais que existem para além de
“os sapatos que hoje pôs para correr não ajudam o andar”, contrastando com a
falta de calçado e vestimenta limpa, em geral, tanto por Baltazar e Blimunda,
como por todo o povo português, e salientando as disparidades económicas.
Abordando a
mensagem geral da música foco-me, inicialmente, no facto de a verdade ser
disfarçada, o que se relaciona com a hipocrisia da religião e a forma como o
povo a interpreta como se nota no seguinte trecho: “porque a cidade é imunda,
alcatifada de excrementos, de lixo […] Agora é tempo de pagar os cometidos
excessos, mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se” (p. 36), o
narrador descreve metaforicamente a hipocrisia comum ao povo que, nos momentos
em que deve purificar a alma, acaba por fazer o contrário, disfarçando a
verdade que depois é sabida através de “boatos pelo amanhecer”.
Os dogmas
religiosos são bastante evidentes em Memorial
do Convento e o povo encara-os como verdades imutáveis. Contudo o padre
Bartolomeu questiona-os ao longo da história tal como se observa quando explica
a Baltasar que também Deus é maneta (“e eu te digo que maneta é Deus, e fez o
universo.”, p. 88). Na música da banda portuguesa realço “se a verdade é uma
coisa qualquer diga eu o que disser”, que comparo com o facto de o povo interiorizar todas as verdades de entidades
superiores — sejam elas
o rei, a igreja, ou outras — sem que
haja sequer uma crítica ou oposição, revelando-se assim uma aceitação da sua
condição como o estrato social mais baixo (de resto, as críticas são reservadas
ao narrador bastante assertivo e irónico).
Todavia existe algum conhecimento que, sendo contra os ideais religiosos, é
logo oprimido e os que o partilham sofrem consequências como serem perseguidos
e julgados num auto da fé, servindo estes eventos como aviso para o resto do
povo.
Na parte
final da música (“a verdade é que a verdade nem sempre é verdade e que o mundo
ainda tem de crescer”) transmite-se não só a noção de que o mundo é
imperfeito, como também uma esperança relativa à sua mudança. Em Memorial do Convento esta ideia é
transmitida pela passarola que, ao subir, representa a liberdade e a esperança.
Sara R.
Sara R. (Muito Bom-) ||
“É Isso Aí” (Ana Carolina e Seu Jorge / Damien Rice), Ana & Jorge: Ao Vivo, 2005 // José Saramago, Memorial do Convento, 50.ª edição,
Lisboa, Caminho, 2011, pp. 67-71
“está o Rossio cheio de povo,
duas vezes em festa por ser domingo e haver auto-de-fé” (p. 65), gerando em
todos um grande entusiasmo por ver cumprida a sentença dos hereges. Afinal, se “Há quem cometa
maldades / Há quem não saiba dizer a verdade”, também não há nada que o povo prefira
(talvez a tourada) que não seja vê-los sofrer, pelo que o auto-de-fé é
considerado um autêntico “espetáculo edificante a toda a cidade” (p. 67). “É
isso aí / Os passos vão pelas ruas” e são tantas as pessoas que formam uma
procissão comparável com “uma serpente enorme” (p. 67). Ninguém do povo
demonstra uma gota de compaixão, esquecendo-se das atrocidades a que vão ser
sujeitas almas humanas, pois todos encontram conforto na ideia de que os outros
estão a ter o que merecem e não há que se preocuparem, mas festejarem –
“Ninguém reparou na lua / A vida sempre continua”.
Entre os condenados há
uma mulher cuja importância na história faz com que o narrador lhe conceda o
privilégio de ser ela a descrever o momento presente – “e esta sou eu,
Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e
revelações” (p. 68). Sebastiana estava bem ciente do que a aguardava,
“condenada a ser açoitada em público e oito anos de degredo no reino de
Angola”, pelo que nada está a ser diferente do que esperava – “É isso aí / Como
a gente achou que ia ser”.
Conformada com o seu
destino, é o da filha que apoquenta Sebastiana, perguntando-se incessantemente:
“onde estará, onde estás Blimunda” (p. 69). Os seus olhos rolam pela multidão,
carregados de esperança: “eu te verei se no meio dessa multidão estiveres, que
só para te ver quero agora os olhos” (p. 69) – “Eu não me canso de olhar / Não
sei parar / De te olhar”. O desejo de Sebastiana não foi deitado por terra,
pois, após toda aquela expetativa, finalmente a viu: “ai, ali está, Blimunda,
Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu” (p. 69). Agora, com a certeza de
que a sua filha está isenta de qualquer condenação, Sebastiana não é capaz de
tirar a vista de cima dela, já que, provavelmente, esta é a última vez que o
poderá fazer – “Eu não sei parar de te olhar / Não vou parar de te olhar”.
Tal como no refrão da
música – “É Isso Aí” – neste episódio sobressai o poder do olhar – “olha com
esses teus olhos que tudo são capazes de ver” (p. 69) – dando-se liberdade ao
leitor para inferir que, através destes, mãe e filha eram capazes de comunicar
abertamente. Sebastiana questiona-se/-lhe (dúvida no pronome a utilizar, pois,
apesar de se se tratar de um pensamento de Sebastiana, esta sabe que a filha
tem acesso ao mesmo) quem é o homem que está perto de Blimunda e dá desde logo
indicação de que este tomará um papel vital na vida de Blimunda – “quem é ele,
donde vem, que vai ser deles” (p. 69). Blimunda não perde tempo e aborda o
homem misterioso, visto que só ela poderia acabar com as indagações da mãe.
Assim, foi Sebastiana a ponte entre os dois que formam o casal romântico de Memorial do Convento – este facto
remete-nos de imediato para o verso de “É isso aí”: “Ensinar seus filhos a
escolher seus amores”.
É no Rossio que Blimunda
vê partir um amor, ao mesmo tempo que lhe chega outro, por obra do primeiro.
Filipa
Filipa (Bom) || «Canção de Engate» (António Variações/Tiago
Bettencourt), Dar e receber, 1984 // José Saramago, Memorial do Convento, 39.ª edição,
Lisboa, Caminho, 1994, pp. 53-57
“Canção de Engate”, recentemente interpretada (e
pode-se dizer que renovada ou, pelo menos, novamente comercializada) por Tiago
Bettencourt (original de António Variações), encaixa-se perfeitamente no início
da história amorosa e íntima de Baltasar e Blimunda, presente no capítulo IV de
Memorial do Convento. Estes dão-se um
ao outro no momento, e são várias as evidências que revelam a sua aproximação e
relacionamento: Blimunda começa por deixar propositadamente a porta aberta para
que Baltasar (que a seguia quando esta se encontrava com o padre) entre, e
espera que este acabe a sua refeição, servindo-se então da sua colher, apesar
de o padre já ter terminado há mais tempo. Este contacto inicial pode parecer
um pouco forçado, coisa que não acontece na música (que pretende demonstrar um
impulso). No entanto, Blimunda acaba por pedir a Baltasar que fique em sua casa
(«Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires»), algo que pode ser
directamente traduzido na canção em «Tu estás livre e eu estou livre / E há uma
noite para passar», tendo apenas em conta que Blimunda realizou o pedido
“porque era preciso” — transmitindo assim o carácter de necessidade e, mesmo,
destino —, não por puro passatempo ou impulso momentâneo e inconsciente de quem
nada tem a perder.
Baltasar, começando
por oferecer um pouco de resistência, acaba por ceder, afirmando que Blimunda “lhe
deitara um encanto” (assumindo assim: «Tu estás só e eu mais só estou / Tu que
tens o meu olhar») a qual não conseguira resistir e, por isso, tivera de ficar.
Para muitos, e
principalmente aos olhares da sociedade da época, este amor nascido do nada e
deitado sobre prazeres carnais numa idade tão tenra, era alvo de críticas e
julgamentos, que ambos esqueciam por sentirem uma tal ligação inexplicável que
nem o próprio casamento proporcionaria («Vem que amor / Não é o tempo / Nem é o
tempo / Que o faz»).
Baltasar, retornado
da guerra, acaba por se deixar levar com o tempo encontrando em Blimunda o que
sentia ter perdido («Tu que buscas companhia
/ E eu que busco quem quiser / Ser o fim desta energia / Ser o corpo de
prazer» ). Blimunda não espera muito, entrega-se à ligação inquestionável que
sente com Baltasar e perde a sua virgindade com ele, barrando-lhe o sangue da
sua pureza no peito, como símbolo do seu amor e entrega eterna.
O que distancia a “Canção do Engate” do momento de entrega e prazer representado no livro é o destino.
Em Memorial do Convento há uma certa previsibilidade deste
acontecimento, quase que ditado como certo pelas interrogações e medos de
Sebastiana Maria de Jesus (mãe de Blimunda): «…e aquele homem quem será, tão
alto, que está perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde
vem, que vai ser deles…», tendo sido esta a razão que levou Blimunda a crer na
sua ligação com Baltasar e, assim, a oferecer-lhe o seu corpo como prova de
amor, após lhe perguntar o nome, como queria saber sua mãe. Ao contrário, na
música de Tiago Bettencourt, o sujeito poético serve-se da falta de esperança,
da monotonia e do conformismo, para iniciar esta relação amorosa («Tu continuas
à espera / Do melhor que já não vem / E a esperança foi encontrada / Antes de
ti por alguém / E eu sou melhor que nada»).
Outro ponto de
contraste entre as duas situações é a chama/paixão da relação, que, na música,
parece ser concretizada por vontade, ao passo que no livro é por destino. Não
obstante, a relação de Blimunda e Baltasar forma-se a partir de um único
momento de entrega, ignorando-se todo o passado, evidenciado na música: «Vem
que amor / É o momento / Em que eu me dou / Em que te dás».
Rafael
Rafael (Bom-) || «Free Bird» (Lynyrd Skynyrd), 1973
// José Saramago, Memorial do Convento,
53.ª edição, Lisboa, Caminho, 1984
A canção "Free Bird" ("Pássaro
Livre"), muitas vezes referida também como "Freebird", interpretada
pela banda americana Lynyrd Skynyrd, poderia retratar uma hipotética explicação
de Baltasar, a Blimunda, de modo a tentar confortá-la, suavizando o seu
desaparecimento, no final do capítulo XXIII. Há ainda a óbvia analogia entre o
título da música, "Free Bird", e o facto de o sujeito necessitar de
ser livre, tal como um pássaro que voa em liberdade, com o feito de Baltasar
abandonar Blimunda também a voar (como um pássaro livre) na sua passarola.
Após uma primeira análise desta canção, lançada em 1973, reconheceríamos
o sentido banal deste poema, a necessidade de o sujeito poético partir, de "estar
em viagem" ("For I must be travelling on, now"), deixando para
trás aqueles que ama, devido à sua natureza inalterável e imutável de "ser"
livre: "Cause
I'm as free as a bird now / And this bird you cannot change" ("Porque
eu sou livre como um pássaro / E este pássaro não consegues mudar").
Esta ideia da personagem concebida por Ronnie
Van Zant não seria partilhada por Baltasar Sete-Sóis, visto que o seu
desaparecimento e consequente abandono da pessoa que amava (Blimunda Sete-Luas)
não foi de todo propositado ou intencional. Baltasar, ao caminhar distraído em
cima da máquina, acaba por partir duas tábuas de madeira que a cobriam, caindo
desamparado e destapando as esferas que se iluminam à luz do dia. Imobilizado e
sem conseguir reagir, olha a vastidão, enquanto a Passarola se ergue no céu
(pág. 464).
Todavia, esta canção pode abordar uma outra
perspetiva; adotada pela própria banda, após a morte de um dos membros da
formação original de Lynyrd Skynyrd, num trágico acidente de aviação. Daí em
adiante, nos concertos, a banda dedica esta música ao membro falecido,
interpretando-a como se ele argumentasse o motivo da sua partida, com o
propósito de atenuar (como se fosse um eufemismo) a sua morte, produzindo nos
ouvintes a ilusão de que ele "partiu" por sua própria vontade (apesar
de sabermos, logicamente, que morrer não seria o seu desejo).
É segundo esta conjetura que "Free
Bird" pode estabelecer uma ligação com o Memorial do Convento (precisamente focada no episódio em que
Baltasar abandona Blimunda), onde figurativamente, Baltasar explicaria a
Blimunda a razão do seu desaparecimento: ele teria que a abandonar por
necessitar de viajar ("Cause there's too many places I've got to see"
/ "Porque há muitos sítios que tenho de conhecer"), e,
principalmente, por necessitar de se sentir livre, tal como reza a sua natureza
("Cause I'm as free as a bird now" / "Porque agora eu sou livre
como um pássaro"), mesmo que isso implique a necessidade de abandonar as
pessoas que ama, nomeadamente, Blimunda ("Bye, bye, baby, it's been a
sweet love / Though this feeling I can't change" / "Adeus, adeus,
querida, tem sido um amor doce / embora este sentimento eu não consiga
mudar"). Tal como o membro falecido da banda, ficticiamente, lhes comunicaria
o porquê da sua morte, também Baltasar o faria com Blimunda, apenas com o
intuito de a tranquilizar e sossegar em relação ao seu desaparecimento, visto
que, na verdade, Baltasar não quis partir na passarola, nem quis abandonar a
sua mulher.
Pedro A.
Pedro (Suficiente(+)) ||
“I'm Gonna Be (500 Miles)” (The Proclaimers), Sunshine on Leith // José Saramago, Memorial do Convento, Lisboa, Caminho, 1982, pp. 331-351
O romance tem como personagens principais um
casal, Blimunda, dotada de poderes sobrenaturais, e Baltasar, carente de uma
mão esquerda, à semelhança de Deus, como afirma o padre Bartolomeu, muito
instruído dos saberes da igreja.
Baltazar e Blimunda são um casal muito apaixonado
em que cada elemento vive um para o outro Durante anos, partilharam o sonho de
construir uma máquina que os fizesse voar, “a passarola”. Quando esta ficou
terminada, Baltasar e Blimunda, em conjunto com Bartolomeu, voaram sobre Lisboa
e foram despenhar-se no Monte Junto. Baltasar fica então encarregue de a
restaurar.
Baltasar, numa das suas viagens ao Monte Junto
para arranjar a “passarola”, tem um pequeno contratempo e demora-se a voltar
para casa. É então que Blimunda vai ao seu encontro.
Como na letra da canção (“Yea I know I'm going
to be I'm going to be that man who wakes up next to you”, “sim eu sei que
serei, serei aquele homem que acorda ao teu lado”), também Baltasar acordava
todos os dias ao lado de Blimunda, mas agora estava atrasado e isso preocupava
Blimunda (“Em toda essa noite, Blimunda não dormiu”).
Blimunda, perante a ausência do marido durante
um período tão alargado de tempo, toma a decisão de o procurar (“vai pelo
caminho que conhece, aquele por onde Baltazar virá”), mas não tem sorte e, no
caminho que faz até ao Monte Junto, não encontra Baltasar, apenas um convento
de frades onde vivencia uma má experiência.
Assim como Blimunda a personagem da canção
também andaria até ao fim do mundo só para estar ao pé daquela pessoa especial (“But
I would walk 500 miles /And I would walk 500 more/Just to be that man who walk
a thousand miles to fall down at your door”, “Mas eu andaria 500 milhas/ E
andaria outras 500/ Só para ser aquele homem que andou mil milhas para ir parar
à tua porta”).
E, durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar
de terra em terra, para poder estar uma vez mais ao lado de Baltasar. Durante
esses nove anos, Blimunda viveu como um eremita, sem casa ou trabalho, apenas
com a missão de encontrar o seu homem. Após todos estes anos, Blimunda não
desistira e continuou à procura, e, finalmente, “Encontrou-o. Seis vezes
passara por Lisboa, esta era a sétima.” Passados tantos anos desde o exílio da
mãe (”Blimunda, filha minha”, ”tem de fingir que me não conhece ou me despreza,
mãe feiticeira”), Blimunda vê uma vez mais alguém importante lhe ser tirada (“Naquele
extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda”).
Então, Blimunda, que prometera nunca olhar por
dentro de Baltasar Sete-Sóis, vê a vontade de Baltasar e recolhe-a (”E uma
nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem”).
Manuela
Manuela (Suficiente +) || «Cotidiano» (Chico Buarque / Chico Buarque), Construção,
1971 // José Saramago, Memorial do Convento, 51.ª edição, Lisboa,
Caminho, 2011, pp.450-460
«Cotidiano»
reflete a vida de Baltasar e Blimunda em Mafra, onde vivem durante muitos anos,
durante os quais Baltasar trabalha na construção do convento, criando assim uma
rotina diária ao casal. Na canção, o sujeito poético relata a sua vida
quotidiana com a mulher, claramente apaixonada e preocupada com o seu homem. Na
letra, percebe-se que, todos os dias, o sujeito poético vai trabalhar e, pela
manifestação do desejo de todos os dias querer poder parar e a meio do dia de
trabalho só pensar em rejeitar o trabalho, dá-se a entender que o trabalho é
penoso, assemelhando-se ao trabalho de Baltasar na construção do convento de
Mafra, mas, depois, o sujeito poético reflete em tudo aquilo a que a vida
obriga.
A
música, ao abordar temas como trabalho penoso, mulher apaixonada e preocupada,
remete-se a elementos do episódio dos últimos dois dias em que Baltasar e
Blimunda estiveram juntos antes que este partisse para o Monte Junto para
verificar a máquina voadora. Tinha voltado Baltasar de uma viagem penosa: buscar
estátuas de santos para serem trazidas a Mafra. Baltasar sentir-se-ia como o
sujeito poético, cansado do trabalho e só quereria não o fazer mais. Sente que
«O tempo, às vezes, parece não passar», de tão penosos trabalhos, apesar de se
terem passado já muitos anos que trabalha na construção do convento. Mas vai
para casa e, como a mulher do sujeito poético na canção, Blimunda espera-o à
porta de casa e recebe-o com um abraço que lembra o "beijo com a boca de
hortelã" da canção. Nota-se a semelhança de querer exprimir o seu amor por
Baltasar como a mulher pelo sujeito poético quando estes chegam a casa. Também
quando de noite, a mulher do sujeito poético pede-lhe para não se afastar,
jurando "eterno amor", e o sujeito poético ainda relata "E me
aperta pra eu quase sufocar/E me morde com a boca de pavor", que se
assemelha ao facto de Blimunda ter puxado Baltasar para dentro da barraca,
dando também o primeiro passo. Porém, assemelha-se também ao sentimento que
estas duas mulheres manifestam: o receio de perder o amado ou de sequer estarem
afastadas, fazendo a mulher do sujeito poético apertá-lo e durante o abraço de
despedida, fazer Blimunda "impossivelmente" tentar com "que o
tempo pare".
Este
episódio de demonstração da vida quotidiana de Baltasar e Blimunda, que se
despedem pela manhã (depois, passa Baltasar o dia a trabalhar para a construção
do convento, sendo ao final do dia recebido por Blimunda à porta de casa; ceiam
com o resto da família, da qual somente sobra a irmã de Baltasar, Inês Antónia,
o marido Álvaro Diogo e o filho Gabriel). Vivem uma vida calma, repleta de
demonstrações de amor e paixão, considerados descarados, por não serem casados
e chegarem a se abraçar homem e mulher em público. Mas nada disso lhes importa,
amam-se intensamente e exprimem-no livremente entre os dois. Continuam a cuidar
do seu sonho, que inicialmente era do Padre Bartolomeu, o de voar e o da
passarola. Por isso vai Baltasar ao Monte Junto, onde se encontra a máquina
para trabalhá-la e evitar que se destrua. Mas à despedida, o narrador afirma
que não há nada que alarmar, pois Baltasar irá e voltará como noutras vezes o
fez; mas fá-lo num tom que suscita suspeita sobre se será mesmo o que se
sucederá. Servindo de suspeita os factos de que só agora o narrador relata a
rotina quotidiana do casal e a insistência de Blimunda para que Baltasar
tivesse cuidado, dão ideia de uma prolepse escondida de que irá acontecer algo,
apesar da confirmação enganosa do narrador que assegura o leitor de que nada se
sucederá.
Concluindo,
como o sujeito poético da canção, Baltasar tem uma vida quotidiana de trabalho
penoso durante todo o dia e, no final do mesmo e no início do próximo, tem ao
seu lado a sua mulher que o ama e estima, tendo esta também, medo de um dia o
perder, apertando-o com um abraço e pede que o acompanhe, como quem pede para
que não se afaste.
Nuno
Nuno (Suficiente+) || "Pedra
Filosofal" (António Gedeão/Manuel Freire), Pedra Filosofal, 1993 [1.ª edição da canção em disco: 1970] // José Saramago, Memorial do Convento, 3ª ed., Lisboa, Caminho, 1983, pp. 63, 124,
205, 357
Eu decidi escolher a canção "Pedra
Filosofal", de Manuel Freire, com poema de António Gedeão, pois penso que
tem várias relações com a obra Memorial
do Convento.
O poema de 1956 refere um sonho, o sonho que o
Homem foi tendo ao longo do tempo, começando pelos elementos rudimentares,
muito ligados à natureza ("Como esta pedra cinzenta/Em que me sento e
descanso/Como este ribeiro manso/Em serenos sobressaltos"). Depois da
natureza, o Homem sonhou com artes, magia, alquimia, conquistar os mares, até
que chega a vez de o Homem sonhar com a conquista dos ares.
Uma das pessoas que tinham o sonho de voar era
Bartolomeu de Gusmão, que criou a passarola voadora de modo a concretizar o seu
objetivo, acreditando sempre que um dia voaria: "O homem primeiro tropeça,
depois anda, depois corre, um dia voará" (p. 63). As suas primeiras
tentativas foram aparentemente falhadas ("Primeiro fiz um balão que ardeu,
depois construí outro que subiu até ao teto de uma sala do paço, enfim outro
que saiu por uma janela da Casa da Índia", p. 63) mas, posteriormente,
aprendeu que precisava de éter para poder elevar a passarola, e que esse éter
era constituído pelas vontades das pessoas, os seus sonhos ("Talvez que eu
já não tenha vontade, procura melhor, Vejo, vejo uma nuvem fechada sobre a boca
do estômago. O padre persignou-se, Graças, meu Deus, agora voarei", p.
124), os sonhos que Manuel Freire canta ("Passarola voadora/Para-raios,
locomotiva/Barco de proa festiva/Alto-forno, geradora").
Mas se os sonhos acabam para alguns, incluindo o
próprio Bartolomeu ("um homem que quis deitar fogo a um sonho",
"Era o padre com um ramo inflamado que pegava fogo à máquina, já a
cobertura de vime estalava", p. 205), para outros são perpétuos, como para
Blimunda e Baltasar ("Naquele extreme arde um homem a quem falta a mão
esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem,
parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então
Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não
subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda", p. 357)
Marta B.
Marta B. (Bom(-)/Bom) ||
«A tua presença» (Fausto Bordalo Dias), Crónicas da Terra ardente, 1994
// José Saramago, Memorial do Convento, 20.ª edição, Lisboa,
Caminho, 1990, pp. 337-357
“A tua presença” cria as fundações da ponte de
ligação aos capítulos XXIV e XXV de Memorial
do Convento, na medida em que a música fala de ausência, de saudade, de
espera, retratando assim aquilo que Blimunda passa durante os nove anos da sua
última viagem.
O capítulo começa com a inquietude de Blimunda,
esperando pacientemente, sabendo, embora não quisesse o aceitar, que o
inevitável acontecera – “a estas horas já Baltasar não virá, ou chegará tão
tarde que o receberei deitada, ou então estará cá amanhã (...) foi o que ele
disse” (pág. 337).
Vinte e dois de Outubro de mil setecentos e
trinta, todos festejam a sagração do convento, Blimunda acompanha os cunhados,
no entanto, “não se sabe se sonha, se está acordada” (pág. 350), como se pensasse
“eu já nada sinto e afinal eu gosto de não sentir nada, sozinho na calma das
horas passadas tão só numa quietude, num sossego tão sossegado e esquecido” pois,
embora fisicamente esteja lá, mentalmente não o está, está com Baltasar.
A partir desse dia, inicia-se a longa busca de
Blimunda por Baltasar, que pode ser caracterizada por uma incansável,
esperançosa, apaixonada e resistente procura, fazendo-a percorrer os quatro
cardiais e, consequentemente, perder a noção espaço/tempo, ainda que importasse
– “começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o sentido. Nos primeiros
tempos calculava as léguas que andava por dia (...) depois confundiram-se-lhe
os números” (pág. 355).
Depois de tanto tempo passado, tantas léguas
caminhadas, tantos rostos encontrados, conhecidos e reconhecidos, vemos
Sete-Luas a entrar cada vez mais no seu mundo, a sacrificar-se cada vez mais
(jejuando mais), a ficar cada vez mais ausente, a apagar-se cada vez mais a sua
chama – “aos bocados, adormece-me um sono dormente que aos poucos se apaga, um
sonho qualquer, mas não em acordes, não mexas, não me embales sequer eu quero
estar mesmo como eu estou quietamente ausente assim”.
No entanto, a mulher que passou de Bimunda a
Sete-Luas e a Voadora tem um sonho: “estando sentada na praça de uma vila, a
pedir esmola, um homem se aproximaria e em lugar de dinheiro ou pão lhe
estenderia um gancho de ferro, e ela meteria a mão no alforge e de lá tiraria
um espigão da mesma forja (...) e ficariam falando até ao fim do tempo” (pág.
356). Este sonho é brilhantemente descrito por Fausto em “a viagem que eu não
vou nunca chega ao fim é longe (...) tão longe que de repente tu chegas, tu
brilhas e luzes na cor das laranjas, tu coras e tinges a mancha da marca na
alma da luz, da sombra que finges e tu já não me largas”.
Tanto a música como este último capítulo falam
de saudade, de procura. “Encontrou-o. (...) Naquele estremo arde um homem a
quem falta uma mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético
da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo.
Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sois, mas
não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda” (pág. 356-357).
Acaba assim o romance. Este final, através da música, é completado,
caracterizando um amor incondicional, indestrutível, intemporal – “levas-me
pela tua mão cativando o meu corpo, a minha alma, a razão. Só a tua presença é
que me inquieta aquela, outra ausência dói como um passado projecta aquele
futuro que se foi p´ra longe, (...) tão longe que nunca se acaba esta
inquietação. Se evitas momentos já quase finais e ficas comigo ainda e sempre
um pouco mais, tu nunca me deixas, saudade, tu nunca me deixas”.
Memorial
do Convento
é um romance, uma história de pequenas histórias. “A tua presença” serve aqui
como um complemento caracterizador destas pequenas histórias.
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