Sunday, September 14, 2008

Vieira

Ideias para o tepecê sobre ‘carta ao Padre António Vieira’

Regulamento do concurso está aqui. [Excerto: «Os alunos do ensino secundário deverão, individualmente, redigir uma carta endereçada ao Padre António Vieira, sobre tema à sua escolha, mas tomando como base a vida e a obra do Autor, de forma original e inédita. O texto deverá ter a extensão de duas a três folhas de formato A4 e virá apresentado apenas na parte da frente da folha, em espaço duplo, letra Times New Roman, tamanho 12, em três cópias assinadas pelo concorrente».] Como se vê, o formato é muito semelhante ao do concurso «Continuemos este conto» (em que entraram, o ano passado, muitos de vocês).
Por outro lado, o tema pedido terá sido sugerido por um livro de Inês Pedrosa, publicado há relativamente pouco tempo, No coração do Brasil. Seis cartas de viagem ao Padre António Vieira, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007. Nesse livro, a autora ia descrevendo locais brasileiros que visitava, relacionando-os com a vida e a obra do Padre António Vieira.
Ponho a seguir o início de um desses textos. No entanto, parece-me que não o devem tomar como modelo. (Na carta que transcrevo há bastantes alusões à vida de Vieira, mas também há outras no livro de Pedrosa em que as alusões ao Padre são mais pontuais e o se que faz é apenas descrever paisagens brasileiras, por exemplo.) Reparem que nem sequer a carta é entendida como género muito específico (a narradora dirige-se a Vieira mas não há destinatário formal, endereço, etc.) Usa o «vós» (o que também não será obrigatório — mas, a começar com a 2.ª pessoa do plural, convém mantê-la até ao fim).
Antes de pôr o tal excerto do livro de Inês Pedrosa, faço uma breve lista de Ideias que me ocorrem para abordagem do tepecê em causa (mas preferia que pensassem vocês, que as vossas serão ideias mais frescas):

Aludindo a uma preocupação do Padre António Vieira, mostrar o mesmo tipo de preocupação mas transposta para os tempos actuais.

Fazer paralelismo (ou paralelismos) entre a vida do Padre e a do narrador (vocês).

Aproveitar o «Sermão de Santo António aos Peixes» (o exercício que fizemos em aula, a partir do passo com o Polvo, pode sugerir outras transposições, brincadeiras com trocas de contexto, tempo, etc.). Mas o destinatário primeiro terá de ser o Padre Vieira (na nossa tarefa, eram os próprios peixes).

Aproveitar o Padre António Vieira como pretexto para discorrer sobre oratória, discurso, palavra, poder da palavra. Teria de haver alusões a como fazia Vieira, mas grande parte do texto seria já generalista.

Também ancorada numa alusão inicial às actividades de Vieira (em prol dos índios; em prol da diplomacia portuguesa; etc.), tratar dos mesmos temas mas reportados à situação actual (ou às vossas preocupações).

Fazer espécie de roteiro das experiências de um aluno em torno do Padre António Vieira (estaria a contar-se ao Padre como em termos escolares se tinha tomado conhecimento da sua obra); texto seria quase autobiográfico.

Transpor o Padre António Vieira para outro contexto (tendo-o sempre como destinatário, perguntar-lhe, ou adivinhar logo, como reagiria perante isto ou aquilo — realidades essas da nossa época).

Outro truque possível seria assumir um «narrador» (destinador da carta) que já tivesse que ver com o Padre (carta seria escrita por um peixe; ou por Santo António; ou por um índio; ou por um inquisidor que perseguisse jesuítas; ...).



segunda carta da bahia
Confesso que tenho dificuldade em tratar-vos por Padre, a revolta dos vossos escritos não condiz com a paciência sacerdotal. Penso em vós como um orador, e como um Camões da prosa e do futuro, um pioneiro dos então desconhecidos Direitos Humanos, um diplomata devotado —embora muitas vezes humanissimamente enganado e desenganado. Nem sempre acertastes nas causas e nos apoios, Mestre. Deixaste-vos hipnotizar pelo poder, sim — o que vos arrastou, aliás, para inúmeras decepções. A sorte também não vos acompanhou; D. João IV, o rei em que depositastes todas as esperanças, não teve força para levar até ao fim a lealdade. O nosso Restaurador, o rei que a História louva por nos ter tirado de cima os Filipes de Espanha, era afinal um homem sem fibra, como vós soubestes, mas não quisestes reconhecer. D. João só aceitou ser rei quando Espanha, desconfiada das pretensões portuguesas, lhe deu ordem de marcha para a guerra contra os catalães. Porque, até aí, os fidalgos revoltosos abordavam no e ele encolhia-se. Gostava era de caça e descanso. Confiou em vós, e atribuiu-vos importantes missões — mas não soube ser o Salvador exaltante com que sonháveis, nem preparar o país para futuro algum. Morto D. João IV, ficou Portugal entregue à mesquinhez dos pequenos interesses — e vós nas unhas da Inquisição, que vos humilharam, encarceraram e julgaram, condenando-vos à provação que sabiam mais dura para vós, e que era a do silêncio. Tivestes de ir mendigar a Roma o direito a voltar a falar em voz alta, em português — valeu-vos a antecipada União Europeia da Cúria Papal, mais sábia e tolerante do que a lusitana atmosfera, carregada dos fumos das fogueiras da Inquisição. No Brasil ou em Portugal, a espada da inveja perseguiu-vos sempre — essa espada com que te bateste em duelo a vida inteira, e que continua ainda a dilacerar o corpo incicatrizável da Lusitânia. Num sermão que escrevestes e que a doença vos impediu de proferir, em Roma, na Igreja dos Portugueses, em 1671, utilizais Santo António como exemplo dos malefícios da inveja — creio que Santo António é aqui um mal disfarçado heterónimo vosso, Mestre Vieira. Eis o que escrevestes: «De tal modo há de luzir a vossa luz diante dos homens, que vejam eles as vossas boas obras, e glorifiquem a Deus. Isto é o que diz Cristo a Santo António. E isto não o podia fazer um Português, entre Portugueses. A primeira coisa que se lhe encarrega nestas palavras, é que há de luzir a sua luz: Sic luceat lux vestra: e luzir Português entre Portugueses, e muito menos luzir com a sua luz, é coisa muito dificultosa na nossa terra. Com a luz alheia vi eu lá luzir alguns; mas com a própria, lux vestra, nem Santo António, quanto mais os outros. Toda a terra (porque toda é tocada deste vício) tem oposição com a luz. A Lua quem a eclipsa? A terra; porque chegam lá as suas sombras. E o Sol onde não chegam as sombras da terra, quem o escurece e encobre cada hora a nossos olhos? Também a terra. Levanta o Sol com seus raios os vapores, e esses mesmos vapores que ele levantou, condensando-se em nuvens, são os que o não deixam luzir.