Friday, August 28, 2020

Aula cxxiii-cxxiv

 

Aula cxxiii-cxxiv (9 [1.ª], 11/jun [4.ª]) Este assunto é de gramática mas também respeita ao estilo de Eça de Queirós, já que o discurso indireto livre é uma sua característica muito notória. Para já, passa um trecho de Os Maias (cap. II) que está em discurso direto para discurso indireto:

Discurso direto

— Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Não é só chorar...

— Não sei nada — respondeu Pedro num longo esforço. — Sei que fugiu. Eu saí de Lisboa na segunda-feira. Nessa mesma noite, ela partiu de casa numa carruagem, com uma maleta, o cofre de joias, uma criada italiana que tinha agora, e a pequena. Disse à governanta e à ama do pequeno que ia ter comigo. Elas estranharam, mas que haviam de dizer?... Quando voltei, achei esta carta.

 

Discurso indireto

Afonso perguntou ______ para onde ___________. Perguntou _____ que ______ e disse que não era só [ou não bastava] chorar.

               Num longo esforço Pedro __________ e acrescentou que ______ que ela _______. Disse também que ele saíra de Lisboa na segunda-feira e que, ____________ noite, ela partira de casa numa carruagem, com uma maleta, o cofre de joias, uma criada italiana que tinha ___________________, e a pequena. Pedro relatou depois que Maria __________ à governanta e à ama do filho que ia ter _________ e que elas ____________. Exclamou que não poderiam ter dito outra coisa e disse que, quando _______, tinha achado _______ carta.

 

Sintetizemos as alterações (incluindo também as que não calhou serem necessárias) que decorrem na passagem do discurso direto a discurso indireto:

Travessão ou dois pontos (a delimitarem verbo de elocução) dão lugar a conjunção subordinativa completiva

Eg «— respondeu Pedro» >

«Pedro respondeu _____ [...]»

Vocativo passa a Complemento indireto

Eg «Pedro» > «_____»

Trocas de tempo (se o verbo introdutor estiver no Pretérito Perfeito)

Presente > ______;

Perfeito > _____; Futuro > Condicional; Imperativo > Conjuntivo

Trocas de pessoa (se o verbo introdutor estiver na 3.ª pessoa)

1.ª, 2.ª > ____

Trocas de deíticos

ontem > na véspera; hoje > naquele dia; amanhã > no dia seguinte; aqui > ___; cá > lá; este/esse > aquele; isto/isso > ______

Acomodações (mas só as imprescindíveis) de eventuais marcas de oralidade

Eg «Não é só chorar...» talvez pudesse ficar «não bastava chorar»

Repara agora como ficaria o mesmo passo em Discurso indireto livre:

Mas para onde tinham fugido? Que sabia ele? Não era só chorar...

Pedro não sabia nada. Sabia que ela fugira. Ele saíra de Lisboa na segunda-feira. Nessa mesma noite, ela partira de casa numa carruagem, com uma maleta, o cofre de joias, uma criada italiana que tinha agora, e a pequena. Dissera à governanta e à ama do pequeno que ia ter com ele. Elas tinham estranhado, mas que haviam de dizer?... Quando voltara, achara aquela carta.

No discurso indireto livre, o narrador relata as falas das personagens quase que as reproduzindo literalmente mas sem fronteira com a sua própria voz. Omite-se o verbo introdutor e conservam-se marcas de oralidade (interjeições, pontuação expressiva). Relativamente ao discurso direto, a diferença é que, tal como no discurso indireto comum, no indireto livre os tempos verbais mudam.

(No manual, esta matéria está nas pp. 274-275 e 389-391.)

Seguem-se dois passos de Os Maias que abordam diferentes modelos de educação: a de Pedro (romântica) e a de Carlos. O segundo também está em «A educação à inglesa» (manual, p. 257).

[cap. I]

Odiando tudo o que fosse inglês, não consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao colégio de Richmond. Debalde Afonso lhe provou que era um colégio católico. Não queria: aquele catolicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas — não lhe parecia a religião. A alma do seu Pedrinho não abandonaria ela à heresia; — e para o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capelão do conde de Runa.

O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a cartilha: e a face de Afonso da Maia cobria-se de tristeza, quando, ao voltar de alguma caçada ou das ruas de Londres, de entre o forte rumor da vida livre — ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo, perguntando como do fundo de uma treva:

Quantos são os inimigos da alma?

E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:

— Três. Mundo, Diabo e Carne...

Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali o reverendo Vasques, obeso e sórdido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre o joelho...

Neste primeiro trecho, relativo à educação de Pedro, há duas ou três linhas que podem exemplificar o discurso indireto livre. Sublinha-as.

No trecho seguinte, já do cap. III, com a ida de Vilaça a Santa Olávia, que testemunha a educação de Carlos (contrastada com a de Eusebiozinho, que, no fundo, replicava a que seguira o pai de Carlos), temos todo um parágrafo em discurso indireto livre, o {circunda a melhor opção} primeiro / segundo / terceiro /nonagésimo segundo.

[cap. III]

Vilaça, sem óculos, um pouco arrepiado, passava a ponta da toalha molhada pelo pescoço, por trás da orelha, e ia dizendo:

— Então o nosso Carlinhos não gosta de esperar, hem? Já se sabe, é ele quem governa... Mimos e mais mimos, naturalmente...

Mas o Teixeira, muito grave, muito sério, desiludiu o senhor administrador. Mimos e mais mimos, dizia Sua Senhoria? Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Se ele fosse a contar ao sr. Vilaça! Não tinha a criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro de uma tina de água fria, às vezes a gear lá fora... E outras barbaridades. Se não se soubesse a grande paixão do avô pela criança, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira, chegara a pensá-lo... Mas não, parece que era sistema inglês! Deixava-o correr, cair, trepar às árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas coisas... E às vezes a criancinha, com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza.

Para nos apercebermos das características desta maneira de reproduzir o diálogo —em discurso indireto livre —, completa com o que lhe corresponderia nos outros modos de reprodução do discurso no discurso:

Discurso direto

— _____ Senhoria, ____ «mimos e mais mimos»? Coitadinho dele, que ________ com uma vara de ferro! ___________! Não tinha a criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro de uma tina de água fria, às vezes a gear lá fora... E outras barbaridades. Se não se soubesse a grande paixão do avô pela criança, havia de se dizer que a queria morta. Deus ___________... Mas não, parece que ____ o sistema inglês. ________ correr, cair, trepar às árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas coisas... E às vezes a criancinha, com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza. — desiludiu o Teixeira, muito grave, muito sério, __________.

Discurso indireto

Mas o Teixeira, muito grave, muito sério, desiludiu Vilaça, retorquindo-lhe que Carlos não era mimado e que o coitado _______ com uma vara de ferro. Disse ainda que se . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . {basta até aqui}

Malèna (Giuseppe Tornatore)

Os Maias (Eça de Queirós)

A Ilustre Casa de Ramires (Eça de Queirós)

Tempo — tempo da história vs. tempo do discurso

O tempo da diegese (isto é, o tempo da história, o tempo das acontecimentos narrados) está bem ______. O narrador-protagonista refere que se lembra bem da data por que vai começar, o dia em que estreou uma bicicleta, na Primavera de 1940, aos doze anos e meio. E é um acontecimento histórico que permite situar o exato começo da ação: nessa mesma data, o Duce (Mussolini) anunciava a entrada da Itália na guerra (a Segunda Grande Guerra). Com efeito, em Malena o contexto histórico tem uma função enquadradora importante. O tempo da história corresponde aos anos que dura a guerra, cuja evolução vai aliás influenciar os acontecimentos que nos são «narrados». O fim do filme coincide com o recomeço da vida normal, uma vez terminada a guerra. Esses cinco anos encerram a paixão de que trata o filme. (Além das incidências da guerra, também as fitas de cinema que o adolescente revê em sonhos constituem uma moldura contextualizadora.) Sabemos que o tempo do discurso vai até mais longe, já que o narrador compara aquele seu amor com todos os outros que depois teve, pelo que percebemos que o tempo da enunciação é o de um adulto com vida longa, que virá até próximo do nosso ______.

Nos Maias, quando o cap. I começa, estamos em 1875 e, durante umas páginas, descreve-se-nos o Ramalhete. Ainda durante o cap. I e até ao IV, vamos ter uma _______ que nos dá a história da família entre 1820 a 1875 (juventude, exílio e casamento de Afonso; infância de Pedro em Inglaterra, regresso a Benfica, suicídio de Pedro; infância e educação de Carlos — um dia de abril em Santa Olávia ocupa quase todo o capítulo III —, estudos em Coimbra; viagem pela Europa). Os capítulos IV a XVII são o miolo da narrativa, incluindo a ação da _____ principal, 1875-1876. No início do capítulo XVIII, vários anos são-nos dados em sumário, de umas três páginas (Carlos e Ega a viajarem, em1877, e o regresso de Ega a Lisboa); e, depois de uma elipse que nos coloca em 1886-1887, temos algumas horas apenas de Carlos regressado a Lisboa dadas em todo o resto do capítulo. Em suma, o discurso não cumpre a ordem temporal da história (dada a analepse nos três primeiros capítulos) e também não é proporcional, em termos de duração (há resumos, elipses, resumos-elipses — «Mas esse ano passou, outros anos passaram» (início do cap. III); «E esse ano passou. [...] Outros anos passaram» (cap. XVIII) — decerto muitos momentos de pausa, em que o tempo da história é «menor» do que o do discurso, como sucede na _____ inicial do Ramalhete), embora também haja isocronias (as várias cenas dialogadas). O tempo da história corresponde a cerca de setenta anos (o tempo do discurso, se quisermos, ao total de páginas de cada edição).

Na Ilustre Casa de Ramires, se não considerarmos o tempo da novela ____ encaixada, tudo se passa quase segundo a ordem da diegese (se também descartarmos, ainda no capítulo I, a analepse em que se nos dá, em relativo resumo, o passado de Gonçalo e da família). Quanto à relação discurso/história em termos de duração, temos de assinalar, no início do cap. XII, uma elipse de quatro anos («Quatro anos passaram ligeiros e leves sobre a velha Torre, como voos de ave»), que antecede o ______ que constitui todo esse último capítulo. Entretanto, a novela histórica e todas as alusões aos ascendentes de Gonçalo implicam recuos diversos, pontuais, sobretudo ao século XII.

TPC — No Caderno de atividades, as pp. 34-35 trazem uma ficha sobre ‘Reprodução do discurso no discurso’ (incluindo, é claro, o discurso indireto livre). No manual, as pp. 389-391 são ainda melhores.

 

 

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