Wednesday, December 01, 2004

Diário de João O'Brian

Reencontrei há dias um diário que — há precisos quinze anos — se fez numa turma do sétimo ano da José Gomes Ferreira (na altura, Secundária de Benfica). Ainda não o «scanei» todo: usavámos então uma impressora de poucas agulhas, de um museológico Amstrad — já não sei se o nome da marca se escreve assim —, e por isso não há «file» com o texto nem a «scanagem» sai aceitável à primeira. Como este diário foi feito no 7.º 10.ª de 1989/90 é explicado no prefácio, nada acrescentarei agora.
Num relance, todos se aperceberão de situações, objectos, expressões que não entrariam num diário que se fizesse hoje. Quinze anos passados, não creio João O'Brian ouvisse Xutos, Madonna, Technotronic ou considerasse pirosos os calções compridos e largos. Não sonharia com um PC200, não veria na televisão o «Alf», o «Casino Royal» ou as «Conversas Vadias» (não havia então SIC ou TVI). Não mencionaria a estação Socorro (agora: Martim Moniz), a Rádio Cidade ou Margaret Tatcher; e, salvo erro meu, também já não há batatas fritas Pala-Pala. O livro de Português era então o Vamos Ler, havia Visual (agora EVT) e Hortofloricultura. O Benfica disputava a final da Taça dos Campeões com o Milão (nas meias-finais, ganhara ao Marselha com o célebre golo manual de Vata). É claro que não havia Colombo (por isso tanto se citam Fonte Nova e Amoreiras), nem telemóveis nem net. E também — ó grande sorte! —estavam ainda muito longe os blogues.
Na contracapa do diário vem uma fotografia com os autores, a turma do 7.º 10.º. Na ordem da fotografia: João Ricardo, Sérgio, Hugo Castanheira, Pedro Puga, Bruno, Diogo, Fernando, Paulo Sérgio, Ricardo, Ana, Fernando Lourenço, João Lince, Sofia, Cátia Susana, Mónica, Ana Teresa, Olga, Rui, Ana Isabel, Sara, Sandra, Miriam, Hugo Elvas, Filipa, Alexandra, Cátia, Sandra Cristina, Pedro Miguel, Ivana, Paula. (Saudade.)



Sétimo Décima (E. S. José Gomes Ferreira, 1989-90)
Diário de João O'Brian

Prefácio ou qualquer coisa parecida

Este Diário de João O’Brian foi feito nos últimos meses do ano lectivo de 1989-90, pelo 7º 10ª, quase sempre em trabalhos de casa passados nas aulas de Português. Não se distinguem os autores de cada naco de texto, mas todos os indivíduos constantes das fotografias da contracapa são culpados de parte deste jornal. Também responsabilizada deve ser Sue Townsend, cujos Diário Secreto de Adrian Mole [...] & descendência nos serviram de modelo. Como se verá, transportámo-los para Lisboa: a única regra a cumprir na criaçdo do herói do livro do 7.º 10º era a de que tal personagem estudasse (!) na Escola Secundária de Benfica e fosse aluno do sétimo ano de escolaridade; mas igualmente ficou decidido que, ainda que verosímil (vd. escola. Benfica, referências a acontecimentos, manias das personagens), o diário não devia pretender ser um retrato da turma que o redigia. Aproximar-se-ia ele, quando muito, do que é uma turma do sétimo ano, em 1990, na Escola Secundária de Benfica,
Ainda assim, surge uma excepção: os passos de livros transcritos — a pretexto dos comentários de João a leituras feitas — correspondem a selecção de leituras havidas no 7.º 10ª.
Juntaram-se algumas páginas que decorrem dez anos depois (i.e. em 2000): esses textos, que tentam seguir O'Brian e a E. S. Benfica na sua quase-maturidade, são um contributo do 10º 10ª (com que o 7º 10ª mantivera, no início do ano, uma relaçâo epistolar relativamente secreta).


Domingo, 18 de Março de 1990
Levantei-me às 7 da manhã. Peguei no equipamento e encontrei-me na Praça de Espanha com a Amanda e a Rute; quiseram ir comigo (escolha delas!).
O dia não ajudou muito. Muito vento, ondas muito altas, céu nublado. Levei calções até ao joelho e t-shirt de meia manga (os meus calções são um bocado folclóricos: deu-mos a minha mãe no Natal passado).
Logo que chegámos, tirei os Puma, pousei a toalha, agarrei na prancha e fui a correr para a água. As raparigas sentaram-se a observar-me. A Amanda era a mais bonita, loira, com cabelos longos; os seus olhos verdes brilhavam (cá para mim ela usa é lentes de contacto... se calhar, até tem olhos castanhos); a Rute tinha um fato de banho giríssimo (azul marinho com montes de coelhinhos e de meninas a brincarem; a minha opinião é que aquele fato de banho era da irmã de dez anos). Depois de estar uma hora na água, regressei ao grupo, com gotas a deslizarem sobre o meu desportivo corpo queimado. Vi, então, que alguma coisa se passara entre ambas. Não cheguei a perceber o quê. O que é certo é que pouco mais falaram. Amuaram. Será que estão as duas apaixonadas por mim e que me reivindicam por inteiro?
Sentei-me, então, a ver as pessoas. Havia uma mulher a... torrar-se: tinha posto montes de bronzeador. Ao lado, estava um homem musculoso sempre a coçar-se na cabeça. Quando olhei para o mar, que estava muito calmo, vi aparecer uma ‘sereia’! Loura, a fazer topless, e com uma tanga minúscula. Fiquei desolado, quando a vi abraçar-se ao musculoso.
Um som esquisito fez-me olhar para trás; observei um homem que ressonava, com um jornal sobre a cabeça. Mais longe ainda, um puto fazia uma cova e atirava a areia para cima da mãe; uma velha tricotava desesperadamente.
Regressámos sempre calados. Vá lá entender-se esta gente!

Segunda-feira, 19 de Março de 1990
Nesta altura, já sou capaz de fazer uma descrição relativamente fiel dos professores que me calharam este ano
Visual — ‘Todo à maneira’, amalucado (usa um brinco, tem botas de salto alto, colete e cinto à punk, calças e camisa rotas). Manda-nos fazer trabalhos longos, ernquanto põe os pés em cima da mesa e ouve Walkman.
Geografia — É alta e bem feita; tem cabelos pelos ombros. um tanto irritadiça e antipática. Mas, ao menos, deu-se um três. Nunca escreve no quadro. Nunca tem as aulas preparadas. Hoje levava mini-saia (mas a verdade é que lhe ficava bem!).
Ed. Física — Se é bem feita, não se nota, pois está grávida. Usa vestido de grávida, mas em aula calça ténis. Quando bem disposta, é bacana. Maquilha-se, mas não exageradamente. Já a vi preocupar-se muito com uma unha que se lhe partira (usa-as muito compridas).
Ciências — Põe o pescoço para dentro. Apaga o quadro freneticamente. Anda sempre despenteada. Cá para mim, é lunática.
Matemática — De vez em quando, diz: ‘Olhem que a régua ainda está aqui na mão, prestes a ser usada naqueles que nunca se calam’. Gosta é de estar sentada a ler, enquanto nós temos de fazer os exercícios do livro.
Inglês — Passa as unhas, cada uma pintada de sua cor, pelos cabelos oleosos.
Português — Traz sempre um livro de poesia e — para nossa infelicidade! — lê-o. Essa é a parte mais chata, mas o stor é porreiro, porque não marca t. p. c.
Francês — Nova, simpática, anda sempre com calças justas.
História — Seu estilo de aula: chega à sala, passa apontamentos enormes, e, quando acaba, pergunta se há dúvidas. Senta-se e aguarda o toque de saída.

Quarta-feira, 21 de Março de 1990
Hoje foi bom. Não tivemos aulas. Houve visita de estudo à zona antiga de Lisboa (só foi pena que não tivesse calhado à quinta: às quartas temos poucas aulas).
8h00 — Saímos da escola (a pé);
8h10 — Chegámos à estação do metro do Colégio Militar;
8h12 — Chegou o metro;
8h30 — Chegámos ao Rossio. O Pedro ficou dentro da carruagem e só saiu na estação seguinte. Apanhámos o metro para ir ter com ele.
8h32 — Chegamos (ao Socorro — nunca o nome foi tão apropriado), e encontrámos o Pedro relativamente nervoso. Lá seguimos o nosso caminho.
8h00 — De regresso ao Rossio, que visitámos.
9h00 — Vamos por Alfama: casa velhas, vizinhas a fofocar;
9h00 — Fomos tomar o pequeno-almoço;
10h15 — Partimos para a Sé de Lisboa. Gostei, porque tudo era antigo. A Susana deu um grito lá dentro e foi posta fora pelos stores (é uma parva).
11h00 — Vimos pensões muita velhas, mulheres de mini-saia e homens com aspecto horrivel... mas gostei daquilo porque era tudo antigo; só que o aspecto... é mesmo da Mouraria.
11h42 — Almoçámos num jardim. Tudo levou a sua marmita, é claro! Levei três coca-colas, línguas de gato, cinco pães de leite, dois bolicaos, rissóis, um pacote de batatas fritas Pala-Pala. Enquanto comíamos, ouvíamos música boa no rádio da Susana.
12h30 — Levámos o rádio e fomos dar uma volta pelo jardim (os stores disseram-nos para, às 14 horas, nos encontrarmos num café que havia perto).
12h45 — O jardim era tão pequeno que já tínhamos dado a volta toda e já estávamos no mesmo sítio. Lá estávamos a ouvir música novamente.
13h10 — Dançámos, comemos.
14h00 — Regressámos a Benfica.

Quinta-feira, 22 de Março de 1990
O Bernardo tem uma cadela da raça Dog Alemão, que é a dos maiores cães do mundo (1 metro de altura).
A cadela teve uma ninhada há um mês e ele ofereceu-me um dos filhotes.
Quando cheguei a casa , a minha mãe disse que talvez fosse uma óptima aquisição. O meu pai, pelo contrário, não gostou lá muito da ideia: tinha de reservar 5 kg de carne para alimentar o cão (afinal de que serve o nosso pai ser dono de talho?). Depois, lá derreteu e disse ‘OK’.
Chamei-lhe (à cadela) Lassie.

Sexta-feira, 23 de Março de 1990
Mais uma visita de estudo: desta vez fomos obrigados a ir à Fábrica da Coca-Cola numa camioneta toda velha. Fomos pela auto-estrada; demorámos umas duas horas. Chegámos finalmente. Um homem levou-nos a uma sala: bebíamos cokas — e víamos anúncios da Coca —, Fanta, Sprite, Schweppes.
Quando saímos, arrotámos muito.
Metemo-nos na camioneta e regressámos à escola.

Sábado, 24 de Março de 1990
É incalculável o número de pedaços de papel que circulam numa aula de Matemática. Tentei fazer um inventário — necessariamente incompleto — desses

RECADOS A CIRCULAR NUMA AULA DA MINHA TURMA:
Do Raul para o Mário: ‘O Pedro Filipe está a fazer cábulas para o teste de História’.
Do Bernardo para Tomás Erwin: ‘Sabias que a Cristina põe água oxigenada no cabelo?’.
Vamos pôr um pionês na cadeira do stor. Passar.
Vamos escolher a cadeira partida para o stor. Passar.
Do Pedro Miguel Geúga para o Paulo Cardoso: ‘Então sempre alinhas em pôr o pionês na cadeira da stora?’.
Do Paulo Cardoso para o Pedro Geúga: ‘porque a que não havemos de pôr uma Maria-café em cima da mesa dela?’.
Da Amanda para o Bernardo: ‘Meu querido borracho: Já há algum tempo que tenho vindo a reparar em ti (gosto especialmente dos teus bonitos olhos verdes e desses músculos desenvolvidos!). Sabes, já não ando com o João Pedro: encontrei-o na paragem do autocarro de mão dada com a traidora da Manuela (e diz-se ela a minha melhor amiga!); de qualquer modo, o que nele me atraía eram apenas os cabelos loiros (e desconfio, agora, que são oxigenados). Neste momento, estou interessada é em morenos. Que tal irmos a uma discoteca hoje à noite e depois passarmos por minha casa para ouvir uma boa música? Tchau, amor. Procura-me. Amanda’.
Da Manuela para a Carla ‘Às 10 h 00 vamos ao cinema do Fonte Nova?’.
Da Mariana para a Carla: ‘Gostas do Josué?’.
Do Luís Miguel para o Paulo: ‘Estás a dever-me 100 paus’.
Da Catarina para a Vanessa: ‘Vens ao Fontenova comer um gelado?’.
Da Vanessa para a Catarina: ‘Pagas?’.
Do Paulo ao Josué: ‘Falei com o stora e ela deixa sair mais cedo: vamos para o caminho andar de skate’.
Do Ivo para o Bernardo: ‘Fizeste os trabalhos de Matemática? Empresta-mos para eu passar.’
Do Luís para o Pedro liguei Geúga: ‘Nunca te esqueças de estudar muito Português (principalmente, porque estás ao meu lado)'.

Segunda-feira, 26 de Março de 1990
Na aula de Inglês, a Carla mandou-me um papel a dizer que a Amanda gostava do Bernardo. Fiz o papel rodar pela turma toda. Os rapazes que já andaram com ela fartaram-se de rir. Ela dissera o mesmo a todos. O João Miguel riu tanto que a stora ameaçou-o três vezes de o mandar para a rua. Acabou por ir... Comecei a gostar da Vanessa. É uma rapariga bem simpática. Vou pedi-la em namoro.
Entretanto, continua a circulação de

MENSAGENS
Da Amanda para a Carla: ‘Essa roupa não é um bocado provocadora?’.
‘Hoje vens tão lindo. Podias dizer-me onde compraste esses calções aos quadrados pretos e castanhos e a blusa às riscas vermelhas e azuis?’ devia ser para o Hugo (aquele baixote gordo anda sempre mal vestido)'.

Terça-feira, 27 de Março de 1990
Não aguento mais. A Vanessa não me liga, há mais de um mês que ando atrás dela. Já tentei tudo. Não me resta outra opção: pedir ajuda à titia dos abraços do jornal Sexus. Aí vai a carta, querido diário.
Cara Titia dos Abraços
Ando atrás de uma rapariga, mas ela não me liga nenhuma. Tenho todas as raparigas que quero, menos esta admirável jovem loura, de estatura média, cara bonita, traseiro grande e peito desenvolvido (sempre bem vestida, de inverno usa mini-saia e camisola de manga curta, e de verão — prefiro não dizer o que usa de verão, porque eu próprio, namoradeiro afamado na minha zona, fiquei escandalizado).
Assim, cara Titia, se houver alguma maneira de ela se apaixonar por mim, publique-a nesse seu jornal.
Ansiosamente,
um apaixonado.

Sexta-feira, 6 de Abril de 1990
Já não se pode confiar nas titias. As razões? Ora vê-me esta resposta publicada na Sexus:
(depois de várias referências que não me interessaram muito), «aconselho-o a ser menos convencido e a tentar outro género de ataque da questão (mais frontal, por assim dizer). Por que não experimenta juntar alguns amigos e cantar-lhe à janela?».

Quarta-feira, 18 de Abril de 1990
Na escola só se falava do jogo de logo à noite entre o Olympique de Marselha e o Sport Lisboa e Benfica.
Havia já grupos de rapazes à volta de um outro que organizava apostas.
É claro que eu era um dos apostadores. Apostei no empate. ‘500$00 a favor do Benfica: o resultado vai ser 2-0’, dizia um. ‘1250$00 a favor do Benfica: acho que o resultado vai ser 3-1’, dizia outro.
Uns punham-se a falar sobre a equipa, a adivinhar as formações. Muitos deles acabaram por ir ver o jogo. Mas os que iam ver o jogo para a bancada — e não para o camarote ou para os cativos — tinham de lá aparecer quatro ou cinco horas antes. Ora, sair da escola, ir a casa mudar de roupa, buscar o cachecol, procurar a bandeira, encontrar chapéu, preparar a buzina a gás, ir para o estádio, ficar na bicha à entrada,... deviam chegar lá por volta das 19h45 e, provavelmente, já não apanhariam lugar.
De qualquer maneira, tive a sorte de não ter tido a aula de Educação Visual: o professor tinha saído uma hora antes para ir ver o jogo, imagine-se. Mal deu o segundo toque, já toda a gente estava a correr para casa.
Cheguei a casa fatigado, suado, ansioso e contente. Atirei a mala para um canto do quarto, despi-me enquanto o diabo esfregava um olho, corri para a casa-de-banho e — zás! — enfiei-me na banheira e tomei um banho bem rapidinho. Enchi-me de gel e desodorizante, vesti-me e fui levar a cadela à rua. A seguir, fui a correr buscar o meu irmão á escola.
Quando cheguei a casa, fiquei parvo ao saber que os cretinos da R. T. P. não iam dar o Benfica-Marselha. Fui ter com o meu pai ao quarto, para ver se ele me levava ao jogo.
Estava enrolado num cachecol do Benfica e respectiva bandeira a saltar em cima da cama a gritar ‘Viva o Benfica’. Tinha os outros apetrechos todos: a bandeira mais pequena, a buzina a gás, outra buzina a gás (comprada no domingo: a outra estava a acabar-se), as bombas de fumo vermelho. Se a minha mãe estivesse em casa, tinha um treco.
O meu pai olhou para mim e disse: ‘Vamos J'ão ver o jogão'. Nem foi preciso pedir mais nada.
Jantámos cedo. Ele queria sair às 8, mas insisti que era muito cedo, que, de carro, eram só dez minutos, mas foi como se não me tivesse ouvido.
Fomos por uma ruela muito esquisita, por onde normalmente não passa ninguém. Só que todos tinham pensado que mais ninguém conhecia aquele atalho: o trânsito ficou um inferno.
Conseguimos estacionar o carro a três quilómetros do estádio. Já estava muita gente. Gente?! Era um monte de macacos e bêbados... Ficámos a meio da bancada. O meu pai atirava latas cheias de cerveja. Nenhuma caía ao pé do árbitro.
Atrás de mim havia um tipo que, cada vez que o Benfica falhava, dava-me uma pancada nas costas. Por isso, de minuto a minuto,... De cada vez que era o contra-ataque inimigo, apertava-me o ombro, como se estivesse a fazer figas.
Umas faltas, umas caneladas, e o resultado, ao intervalo, era de 0-0.
Na segunda-parte, o jogo não prestou para nada.
Faltavam poucos minutos para acabar o jogo, e o meu pai já estava todo desiludido. Fiquei com pena dele. Virou-se para mim: 'Vamos embora, está tudo perdido'.
Mal podia mexer as costas, por causa das palmadas daquele bruto.
Saímos sem problemas. Chegámos a casa, e estava a minha mãe aos saltos. Nos últimos minutos, o Vata tinha marcado um golo.
O meu pai não pregou olho toda a noite, de desgosto. Eu fiquei aborrecido por ter perdido a aposta.

Segunda-felra, 23 de Abril de 1990
Decidi anotar diariamente o conteúdo do caixote de lixo da nossa sala.

Segunda-feira, 30 de Abril de 1990
Eis a lista de OBJECTOS ENCONTRADOS NO CAIXOTE DE LIXO DA SALA
Ume prata de chocolate;
Cábulas para o ponto de Ciências;
Três cargas de esferográficas;
Duas últimas folhas de um bloco (com jogos do galo);
Folhas de um teste de alemão completamente amachucadas;
Restos mortais de lápis e borrachas;
Seis dezenas de pastilhas elásticas mastigadas;
Um coração de prata;
Módulo válido;
Carta de namoro;
Bocados de estores;
Mala da Rita;
Bocados do livro de Inglês;
Bocados de folhas de revistas... eróticas;
Testes negativos rasgados;
Punaises;
Apagador;
Giz;
Bolas de papel;
Pacotes de leite e paus de gelado;
Um isqueiro sem gás;
Pedaço de madeira de carteira;
Beatas de cigarro;
Casca de banana.

Quarta-feira, 2 de Maio de 1990
Entusiasmado pelas minhas pesquisas acerca do lixo na sala D5, resolvi tentar saber que objectos foram hoje perdidos na escola e guardados sem que nisguém os reclamasse. É esta a lista de
PERDIDOS & ACHADOS DA SEC DE BENFICA
Maço de cigarros;
Molho de chaves com porta-chaves do Farense;
Saco cheio de caricas;
Fotografia (de namorada);
Revista pornográfica;
Um estojo com um desenho do Snoopy.

Quinta-feira, 3 de Maio de 1990
A turma anda agora entusiasmada com o projecto de um jornal de escola (o que vale é que esta coisas passam depressa).
Apareceram já várias projectos para a primeira página do jornal. Acho que o meu é o mais original. Seguem-se todas as propostas.
Nem preciso dizer qual é a minha.

[este parte não se transcreve: eram reproduzidas as primeiras páginas dos supostos projectos de jornal da escola]

Sexta-feira, 4 de Maio de 1990
Estava farto da stora, que só dizia para nos calarmos, e estávamos todos calados... ou quase. Então pus-me a ler as coisas escritas na mesa: ‘Vai passear’ (mas como, se se está numa sala?); ‘Toque neste botão e a professora desaparecerá’ (!!!). É claro que a mesa estava toda riscada e assinada com desenhos... bem, parecia um jornal. Mas no que eu mais reparei foi no que estava escrito mesmo no meio da mesa: "Skate or die”. Era o destaque do jornal. Talvez tivesse sido eu que escrevera aquilo e já não me lembrava... Mais abaixo, estava gravado ‘J. O’B. A. L. mente A.’. Isto tambem tinha sido eu e queria dizer: ‘João O’Brian ama loucamente Amanda’.

Sábado, 5 de Maio de 1990
Na aula de Matemática, bateram à porta: era um aviso. Pensámos todos logo no que mais nos agradava: ‘Amanhã não há aulas’, ‘Acabaram-se as aulas de Hortofloricultura’.
Quando começaram a ler, tudo se acalmou: a A. E. queria comprar uma aparelhagem. Para colaborarmos, devíamos comservar o material (por exemplo, mesas e cadeiras). Todos protestaram. A minha cadeira estava toda partida (o som que fazia — tchuu, tchuu,... — nem era dos piores); reparei na mesa (escritinha de uma ponta à outra).
Ainda lá encontrei lá isto: ‘a vida só é vida quando vivida e envolvida na vida de outra pessoa’. Quando cheguei a casa, pensei nisto. Ainda nào tenho a certeza, mas penso que aquilo quer dizer que, quando uma pessoa se envolve com outra, aí começa a vida. Portanto, tenho de...

Segunda, 7 de Maio de 1990
Em Português tínhamos que escrever sobre uma fotografía que tivéssemos levado.
Não percebo por que motivo certos colegas se riram durante a leitura da minha legenda.

[imagem com uma barata]

Baratas, baratas, às centenas, na casa de banho, na cozinha, no pote de açúcar, nas almôndegas. Ah! que tempero delicioso, aquele gostinho, os gritos das mulheres! Ah! Como eu gosto de baratas! Que coisas tão bonitas! E andam a empestar o ar com produtos tóxicos para as baratas (e que, ainda por cima, destroem a camada de ozono). Assassinos! Ai, baratinhas, não tenham medo, minhas lindas.

Terça-feira, 8 de Maio de 1990
Hoje o meu Director de Turma reuniu com os pais. Estive a apreciar (o pouco que pude ver à medida que entravam para a sala). Os meus comentários estão a seguir (por E. E. dos colegas):
E. E. da Manuela — Não apareceu: não se importa muito com a filha.
E. E. da Amanda — Não pôde estar presente, porque não se encontra no país. Desculpa dela!
E. E. da Carla — Muito bem arranjada. Hum! Hum! A mini-saia deve ser defeito de família.
E. E. da Rute — Alto, de bigode e de gravata. Ar pouco simpático.
E. E. da Rita — Presente, como sempre.
E. E. da Cristina e E. E. da Vanessa — Não sei. Não os reconheci.
E. E. da Catarina — Estava lá.
E. E. da Mariana — Foi o pai. Dentes brancos e cabelos muito bem lavados. Deve ser por trabalhar na Palmolive.
E. E. do Pedro Geúga — Baixo, gordo, de gravata.
E. E. do Josué — Foi a mãe.
Os E. E. do Ivo ‘não puderam estar presentes’.
E. E. do Paulo David — A mãe e o pai. Cada um em seu canto (devem estar chateados).
E. E. do Luís Matos — Bengala, antipático.
E. E. do Tomás Erwin — Mal vestido, barba por fazer... enfim, deve ser do emprego. AAAAH!
E. E. do Bernardo — A mãe. Mas que blusa mais apertada!
E. E. do João Silva — Mãe (simpática).
E. E. do Tiago — Idem.
E. E. do Nuno Pires — Nada de especial a dizer (a mãe é gorda).
E. E. do Luís Andrade — Pai (deve ter dinheiro).
E. E. do Hugo — O pai. Tem um ar fixe.
E. E. do João Miguel — O pai. Fumava que nem uma chaminé.
E. E. do Tiago — Não foram.

Quarta-feira, 9 de Maio de 1990
Provavelmente porque ontem estive até tarde a ouvir rádio, acordei, de manhã, julgando estar a tentar sintonizar a minha telefonia:
'... cidaaade...'
'... goooolo...'
'... Mon chat, mon...'
'... pip... pip... são cinco horas...'
‘... UGT e CGTP vão encontrar-se...’
‘... marginal mais de dois feri...’
'... ret Tatcher foi derr...’
'... efectivamente, eu hei-de...‘
'... de cinco anos, loura, lm40...'
'... explodiu num prédio, atin...’
‘... já não tenho força para cantar...’
'... Grupo terrorista 7º 10ª destrói E. S. B....'

Quinta-feíra, 10 de Maio de 1990
Na aula de Geografia — para não estar totalmente distraído — estive a fazer uns mapas pessoais.

[imagem de mapa de Benfica, com 1 a 6 marcados]

A MINHA BENFICA
1 — Rua Actriz Maria Matos: foi onde levei a minha primeira namorada (a Carla). Havia o baile dos Santos Populares. Foi giro à brava. Chegámos a casa tarde.
2 — Ia eu no carro com o meu avô quando nos faltou a gasolina. Tivemos de ir a pé desde a Rua da Venezuela até este posto.
3 — Esqueci-me do passe em casa de um amigo, que mora ao pé do mercado.
4 — Naquele dia a turma fora quase toda para a piscina da Mata.
5 — Partimos o vidro na sala D2.
6 — Naquele dia em que não tivemos aulas, tentámos entrar nos prédios do Fonte Nova.

Segunda-feira, 14 de Maio de 1990
Fiz a lista de convidados para a minha festa de aniversário:
Amanda
Rita
Cristina
Vanessa
Catarina
Ivo
Pedro Miguel
João Pedro
Mariana
Luís Miguel
Tiago
Jorge
Josué
Tomás Erwin
Hugo de Abreu (Deus queira que não venha!)
Carla
Luís
Tia Olga e tio Alberto
Avó Leonilde e Avô Carlos
Prima Joana
Cadela Lady (da Joana).

Terça-feira, 15 de Maio de 1990
Já sei como vai ser o programa da minha festa.
às 2 —recepção aos amigos;
às 3 — piscina;
às 5 — começo do lanche;
às 5h30 — jogar ao quarto escuro;
às 6h30 — ver o filme Amigos inseparáveis.
Jantar: pasta de camarão e de carne, croquetes, batatas fritas, etc. (aperitivos); bacalhau com natas, peru, carne assada; champanhe & cerveja (bebidas).
Discos a pôr ao longo da festa: Xutos, Technotronic, Madonna (são os gostos deles, e eu devo receber bem os meus convidados...).

Quarta-feira, 16 de Maio de 1990
Ganda frete ter de aturar o stor de Português: estive quase a adormecer (nem consegui exprimir a minha arte na carteira), os segundos pareciam minutos e os minutos horas.
Tal como os textos que costumamos ler, o texto que lemos hoje não tinha nada de importante. Ainda por cima leu-o o Raul, aquele que tem voz de menina.
Chamava-se a ‘Inevitável decisão’. Só o titulo dá logo mal impressão.
Fazia dos homens uns ratos sempre debaixo das saias das mulheres. Havia um homem que decidia ir para o Brasil. Quando o disse à mulher, esta pôs-se logo a choramingar e a chamar pela filha. Qual é o problema de ir para o Brasil?! O homem só fazia era bem. Este país não anda para a frente nem para trás. Vou propor isso ao meu pai. Por outro lado, pobre da mulher: ia ficar longe do seu ‘horne’. Com certeza, tinha medo que ele arranjasse outra, uma brasileira.

Quinta-feira, 17 de Maio de 1990
Em Português, continuámos com textos parvos! «Nem todos!». Afinal de contas, isto é primária ou secundário? Nem todos, claro, nem todos fazem destas porcarias. Desde quando não se aceita pagamento de trabalho em Portugal?

Sábado, 19 de Maio de 1990
Ainda textos: hoje foi ‘Acordar no campo’.
O texto era excessivamente sentimentalista: s6 por ver uma árvore, o narrador fica logo contente... só a falar de natureza o texto parecia a minha stora de geografia.
Era sobre um lelé que gostava do campo, tipo não gosta da fumaça a passar pela cara, a fumaça que nos levará à Europa. Vê-se logo que é um barraqueiro. Ele nem sequer pode escolher quando o pássaros devem cantar. Cá por mim, não acho que as pessoas devam ser tão radicais ao ponto de dizerem que a cidade não presta e que o campo é que é bom. Fiquei com os nervos em pé.

Segunda-feira, 21 de Maio de 1990
Consegui saber hoje algum coisa acerca das leituras dos meus colegas. Tive algumas surpresas. Limito-me a enunciar o nome do colega e a pôr à frente a leitura que este me disse ter feito mais recentemente:
Pedro — A Colina da Saudade;
Catarina — Páginas de anúncios do Correio da Manhã;
Cristina — Um livro dos cinco;
Rute — Como arbitrar em 10 lições;
Nuno — Um livro do Pardal;
João — Élan;
Luís Miguel — Um Tio Patinhas;
Ivo — A Segunda Guerra Mundial;
Paulo — Overall — skate magazine;
Manuela — Burda;
Tonás - Jornal O Crime;
Josué - A vida de um cão.

Em Merdaquática, puseram um pionês (parece que se deve escrever punaise) na cadeira da stora (quem terá sido?). Levantou-se logo. Depois, quando estava a escrever uma coisa no quadro, alguém lhe atirou um papel cheio de saliva. Passou-lhe mesmo em frente (os cabelos abanaram) e ficou pregado ao quadro. A stora ficou horrorizada.
Sem novidades o resto do tempo. Pus-me então a fazer listas de palavras:

SEMANADA
Dinheiro
Jogos de computador
Cerveja
Cerveja
Vídeo Clube
Cinema
Transportes
CEE (EE de ‘económica esbanjadora’)
SEMANADA

SURF
Ondas
Prancha
Windsurf
Vento
Nuvens
Chuva
Sol
Praia
SURF

ESCOLA
Aulas
Turma
Carla
Sexo
Problemas
Más notas
Pais zangados
Estudo intenso
ESCOLA

Caramba, volto sempre às mesmas coisas.


Terça-feira, 22 de Maio de 1990
É já depois de depois de amanhã que faço anos. Pus-me a pensar no que gostava de receber. Cheguei a esta

LISTA DE PRENDAS DESEJADAS
Aparelhagem;
Disco dos Bauhaus;
Disco dos The Cure;
Telefone para o quarto;
Prancha de Muri Santallon;
Camisola preta;
Skate Vision;
Jogos de computador;
Calções em licra;
Chuteiras Adidas, ‘Copa Mundial’;
Walkmans Sony;
Camisa do Benfica Hummel;
Bola Adidas;
Computador PC200 + monitor;
Raquete de ping-pong Butterfly;
Máquina de barbear;
Perfumes;
Livros de BD.

Quarta-feira, 23 de Maio de 1990
Benfica, 0-Milan, 1. Não merecemos a derrota. E eu todo feliz antes do jogo (lavei cinco vezes a bandeira, o cachecol, o chapéu). ‘Tá mal, ‘tá mal.
Fui para a alameda da Universidade às quatro da tarde. Só, porque não queria carregar o meu pai, bêbado, de volta a casa.
Quando lá cheguei, sentei-me mesmo em frente do écran.
Já tinha começado o jogo — umas horas depois —, e apareceu um puto que pretendia que o lugar em que eu estava era seu. Já não sei o que se passou exactamente, mas o que é certo é que, pouco depois, se gerara uma confusão diabólica da qual eu era o protagonista.
A minha salvação foi o golo do Milan. As discussões pararam, tudo se calou.
O jogo acabou.
Vim para casa.
O meu pai chegou a casa, já passava da meia-noite. Bêbado.

Quinta-feira, 24 de Maio de 1990
Foi só um jogo; mas quase me subiu a asma à cabeça quando o holandês marcou o golo contra o Benfica.
“E que ganhe o melhor” e foi o que aconteceu. Porque estou nervoso, então?
Por que razão me sinto culpado?
Eu nem joguei.

Sábado, 26 de Maio de 1990
No meu dia de aniversário, fizemos isto.
Jantámos cá em casa. De seguida, fomos de metro para a Feira Popular. Pelas 2.30 da manhã fomos ao Kremlin; às 4, ao Bar Bairro Alto (até fechar). Acabámos na praia a ver o nascer-do-sol.
Fiz o rescaldo da festa.

PRENDAS RECEBIDAS:
Da Amanda — nada;
Da Carla — nada;
Do Paulo Jorge — um disco da Madonna;
Do Luís Miguel — bola de rugby;
Do Jorge — uma T-shirt dos New Kids on the block;
Do Tiago — Adrian Mole;
Do Mário Rui — o ponto de História;
Do Josué — cavalo em porcelana;
Da Vanessa — lapiseira & caneta;
Da Cristina — copo para guardar canetas;
Do Ivo — puzzle;
Da Mariana — caixa com pasta de dentes, shampoo, sabonete, gel de banho;
Da Catarina — After eight;
João Pedro — livro A sexologia;
Do Erwin — livro de Tom Sawyer;
Da tia Olga & tio Alberto — livro;
Dos avós — ténis Puma;
Da Joana — estojo para canetas;
De outros familiares — dinheiro; cinco ou seis pares de cuecas (tantas...); ténis (outros...); mini-snooker.

Domingo, 27 de Maio de 1990
Estive na praia. O mar estava muito calmo.
A praia está cada vez mais poluída, cheia de gente e de miúdas giras. A areia estava a ferver.
As pessoas pareciam as do anúncio da Pepsi. No bar da praia as bichas para a máquina de refrigerantes eram enormes. Um homem pediu-me um cigarro: disse-lhe que não fumava pois era asmático. Fiquei a ruminar o assunto e pensei combinar com os meus colegas fazermos uma campanha contra o tabaco. Já congeminei dois slogans:
‘Deixa de ser cobarde, apaga o cigarro qu’arde’;
‘Contra o catarro, morte ao cigarro’.
O calor era tanto, que vim cedo para casa.

Sábado, 2 de Junho de 1990
Consegui convencer o meu pai a ir ao Guincho.
Quando chegámos, disse-me que a praia estava ‘uma merda’, porque não havia sol, só havia ondas. Disse-lhe que assim é que era bom.
Não falou comigo até chegarmos a casa.

Domingo, 10 de Junho (Feriado: que azar! A um domingo!)
De manhã, fui ver o que dava na televisão. Peguei num suplemento dos programas de toda a semana. Que seca a televisão:
Jogo de Cartas — É português e basta; idem para TV Rural, 70 x 7, Juventude & Família.
Anúncios — Gosto.
Cróníca do Crime — Também gosto.
Rua Sésamo — Absurdo. Não é para crianças... é para atrasados mentais,
Alf — Na escala de 0 a 100... 90.
Casino Royal — Gostei, mas já acabou.
Desenhos Animados — Só valem a pena os novos caça-fantasmas.
Via Rápida — Gramo.
Clássicos da TV — Idem.
Miss Universo — Duvido que seja melhor que as da minha escola.
Conversas Vadias — Não há dúvida de que o Agostinho da Silva tem a sabedoria da vida.
Clube dos Subscritores — Pode ser que me saia uma moto. Ao fim de semana, ainda vá o Música na América, os jogos de basquetebol americanos e o Quem sai aos seus. Quanto ao resto...

Segunda-feira, 11 de Junho de 1990
A minha turma é cornplicada. No entanto, modéstia à parte, acho que fui bem sucedido na tentativa de fazer uma TEIA DE RELAÇÕES DO 7º A:

[diagrama com afinidades entre os vários alunos]

Terça-feira, 12 de Junho de 1990
Prossegui os meus inquéritos sobre o 7º A. Quis saber o que tinham feito os meus caros colegas durante este fim-de-semana. Depois, perdi a paciência; mesmo assim, soube do que fizeram os seguintes indivíduos:
Rute — Fez jogos de computador. Jogou urna vez Monopoly (não jogou mais, porque o irmão fizera batota — acho que ela disse isso porque perdera — e ficaram os dois zangados). Conheceu um rapaz que tinha acabado de chegar a casa dos tios (isto, graças a ter conseguido ir para a rua com a amiga do 2º direito — a única, com certeza!); começou a "gostar" desse rapaz (as aspas são dela), embora ele gostasse da sua amiga (Susana). Quando soube disso, a Rute lá arranjou maneira de a Susana ficar em casa. .
Rita — Ficou em casa a estudar para o ponto (para o ponto mais próximo ainda faltam 28 dias!).
Hugo de Abreu — Levou uma tareia dos pais: chegou a casa um postal de aviso da escola (estava tapado a três disciplinas; pudera, ainda no outro dia se baldou para ir ao Amoreiras com quatro amigos — e, depois, nenhum deles apareceu, ainda por cima). Parece que os pais o proibiram de sair, mas que ele se escapou pela janela para ir namorar com uma Joana (nisto não sei se acredite).

Sexta-feira, 16 de Junho de 1990
Fui a casa da Mariana. Dei uma breve olhadela para os discos que estavam no quarto:
Mafalda Veiga;
Trovante;
Pink Floyd;
Julio Iglésias (!);
Elvis.
Mas que gostos! Resta-me acreditar que tenha sido a mãe dela que os comprou.
Depois, passámos por casa da Amanda. Fiz a mesma obeervação. Havia isto: Lambada (tenho mais que fazer do que andar a abanar o bumbum); Technotronic (ajudem-me, vou vomitar); Mini-stars (Technotronic! Quero os Technotronic!); Dire Straits (até a vida tem o seu lado positivo); Dirty Dancing (mas não exageremos!).

Segunda-feira, 18 de Junho de 1990
Finalmente, acabei de ler os livros para Português. Fiquei com dois livros do Mark Twain — O Príncipe e o Pobre (apesar de tudo, a história é muito irrealista: como era possível confundirem-se duas pessoas com tanta facilidade?) e Tom Sawyer, detective (o Tom não deveria fumar: assim, os jovens leitores... aaah!aaah!, como se fosse por isso...), e outros dois de Sue Townsend (agora que já acabei de ler dois Adrian Mole, acho que posso eu próprio fazer o meu diário; vou gostar de o escrever).
Por enquanto, fica a recolha feita pela minha turma (cada um escolheu, num livro que tivesse lido, um passo de que gostasse). Perdi algumas das fotocópias, mas aí vai a maior parte:

[seguiam-se trechos de diversos livros, os efectivamente lidos então na turma verdadeira]

Sexta-feira, 13 de Julho de 1990
Traidores, traidoras, miseráveis, criaturas reles e vis, ainda têm o descaramento de me escreverem:
«Caro João:
Então, como vai a vida? E as namoradas, como vão elas? Continuas a surfar nas ondas e a te divertires com as meninas até tarde na discoteca?
Quem te escreve é o Luis Andrade e o Bernardo Santos. Não vais acreditar, mas é verdade: sabes quem também está cá no campo de férias? É isso, a Vanessa e a Manuela. E, sabes, o mais espectacular é que te roubámos as namoradas. Desculpa, mais duas, menos duas, para ti tanto faz.
Adeuzinho.»
Ao menos, o Tiago é um verdadeiro amigo:
«Oi! Tudo bem?
Como tens passado? E as tuas férias, estão a ser boas?
Olha, estou a escrever-te de Beja. Estou a passar férias aqui na quinta, em casa da minha avó.
Isto está a ser divertidíssimo.
Ontem fui dar uma volta de cavalo nos montes verdes, de Beja, com a minha prima. Nessa caminhada conheci um grupo de jovens de uma colónia de férias aqui perto.
Nas a maior parte do tempo sento-me no muro e fico a desenhar.
Agora a explosão:
Vou com os meus pais a França, mais propriamente, a Paris. A minha mãe foi convidada para um congresso de estilistas; tem a estadia paga, bem como um voo para quatro pessoas. Como só somos três, convido-te para vires connosco. Que achas?
Um abraço do teu amigo Tiago.
P8 - Tens mais informações sobre a viagem no papel que juntei.»
Enfim, ainda vou gozar muito com Luís, Bernardo & C.ª.
Para já, vou preparar as coisas para Paris.


APÊNDICES
[Como já se disse, os dois apêndices que se seguem são da responsabilidade do 10.º 10.ª (em homenagem aos colegas do sétimo ano), que assim quis associar-se à vida de tão ilustre personagem.]

Em 2010, num alfarrabista, pudemos encontrar dois diários. Depreendemos, depois, que o autor de ambos os manuscritos seria um João O’Brian (com cerca de 23 anos à altura da sua redacção). Não resistimos à tentação de comprar os exemplares, mas descobrimos — mediante comparação de páginas correspondentes ao mesmo dia — estarmos perante duas versões muito diferentes (sendo apócrifa, portanto, pelo menos, uma delas). Transcrevemos os textos que divergem:

DIÁRIO A

Segunda-feira, 6 de Janeiro de 2000
Pois é, estamos no sexto dia do ano 2000 e a terra ainda não acabou. Aqui estou eu, João O'Brian, a escrever num diário e a falar do fim do mundo.
Amanhã começa o meu terceiro dia de Faculdade. Tenho a impressão de que já há muito tempo que a faculdade começa atrasada?!
Estou agora a lembrar-me do meu pai. Se ele não tivesse comido aquele bife, como seria? Sem a doença das vacas loucas, como seria a minha vida? Estaria a esta hora no talho (não o teria vendido)? Continuaria a minha mãe pacatamente em casa? Não sei, mas aconteceu.
Amanhã a minha mãe vai decorar a casa do Mário Soares (vai no seu quarto mandato — série interrompida pela presidência do Lucas Pires no ano em que a constituição não lhe permitia candidatar-se). A minha mãe, decoradora de ambientes, quem diria?! Escreve para a Marie-Claire e decora as casas das pessoas mais ricas do país. Enfim, mudanças dos anos anos noventa. Por exemplo, quem sou eu no meio desta Europa unida desde as estepes asiáticas até ao Cabo da Roca?
Bem, já chega, já filosofei muito.

DIÁRIO B

Segunda-feira, 6 de Janeiro de 2000
Encontrei hoje um diário velho: era o diário que fizera quando tinha 13 anos. Numa das folhas havia uma descrição minha:
‘João O’Brian, nascido em 25-6-77; morador na Rua dos Arneiros, 55, 5.º D, 1500 LISBOA. Gosta de andar de skate, de fazer surf, de futebol, de computadores. É aluno (de aproveitamento médio) da Escola Secundária de Benfica’.
A minha vida, porém, está agora muito diferente. Os meus pais morreram num acidente de viação, em Viseu.
Órfão há quatro anos, cá me arranjei. Coloquei uma pessoa a tomar conta dos talhos (antes do acidente, o meu pai pensara reformar-se, mas tinha continuado a gerir a cadeia de cento e setenta e sete talhos nas principais cidades da CEE).
Lembro-me de que, naquela altura, estava no sétimo ano na ESB. Fiz até ao 9.º ano (a propósito, acerca da ESB, tive recentemente algumas notícias; em todo o caso, não há grandes alterações em relação aos meus tempos de estudante: os WC continuam a cheirar horrorosamente, as aulas continuam a terminar depois das das outras escolas, o ginásio ainda deixa passar água logo que chove, o Ti’ Zé ainda lá está).
Depois, deixei de praticar futebol e surf. Também frequentava pouco as discotecas. Percebi, quando me juntei a um grupo de heavies, que nada tinha sentido para além do grupo, da música, e do charro. Continuo a gostar de futebol, mas só vamos ao estádio quando sabemos que a nossa claque lá vai estar em peso (os ‘J. L. Warriors' — é um grupo de Hooligans organizado).
Já não uso ténis Puma (a marca faliu há dois anos e meio). Continuo a morar em Benfica, embora o meu pai me tivesse oferecido um apartamento nas Morangueiras (vendi-o, no entanto, após a sua morte).
Gostava mais da minha vida de há dez anos.