Friday, September 06, 2024

O piano (por Carlos Matos)

O piano

 

 

 

“E aqueles que foram vistos a dançar foram julgados insanos por aqueles que não podiam ouvir a música.”

Friedrich Nietzsche

 

 

“Fiz o que tinha de fazer”. Era este o único pensamento que perturbava o lago tranquilo que era o pensamento de Samuel, enquanto percutia as teclas do piano da sala de estar. As notas ressoavam no ar parado, atribuindo à melodia uma profundidade singular. A peça que agora tocava tinha sido composta por ele e era a favorita da sua mulher, o que lhe pareceu apropriado. A luminosidade proveniente das outras divisões conferia ao teclado um brilho mortiço. Os olhos de Samuel olhavam para a janela sem a ver realmente. O seu espírito encontrava-se num estado de serenidade absoluta.

Ao longe, era-lhe possível ouvir uma sirene. Mas nada mais lhe importava que não o piano e a música que agora tocava. O momento para ressentimentos já havia passado. Nada mais lhe restava senão tocar, tocar uma derradeira vez, tocar por tudo aquilo que não conseguira dizer e fazer durante a vida. Estava finalmente livre.

Na divisão contígua, uma viga caiu e foi imediatamente consumida pelas labaredas, mas Samuel não deu sinais de ter reparado. O seu pensamento deambulava agora pelas vielas e becos da memória. Sabia que discutiriam a razão de ter feito o que fizera. Mas que sabiam eles? Nada! Não sabiam nada. Como poderiam saber? Dos dois amores que tivera na vida, apenas o piano lhe restava e, por isso, tocava. O outro amor jazia agora no quarto, sem vida. Afinal, o seu amor por ela era a única razão de ter orquestrado tal espetáculo. Uma forma de adoração suprema, a seu ver. Uma maneira de a perdoar. Mas no que dizia respeito a Samuel, ela já estava morta há muito tempo.

Enquanto martelava furiosamente as teclas, recordava o fatídico dia, em que ela deitara tudo a perder pela satisfação momentânea que ele sabia não lhe conseguir proporcionar. O dia havia começado como tantos outros. Samuel saíra para o emprego e a mulher ficara em casa. Era uma terça, dia de arrumações. Acabara um projeto no escritório, almoçou um robalo e regressou a casa mais cedo para surpreender a mulher. Assim que entrou, no entanto, soube que algo se passava. O cheiro de produtos de limpeza que caracterizava a sua casa todas as terças-feiras estava ausente, a casa demasiado silenciosa. Em vez de anunciar a sua chegada, como normalmente fazia, decidiu caminhar sorrateiramente até ao quarto. Espreitou pela fechadura. Foi então que o seu espírito quebrou. Foi então que a mulher morreu a seus olhos. O espetáculo apresentava-se-lhe em toda a sua magnitude. Não disse nada. Voltou a sair de casa e só regressou às horas a que normalmente voltaria do escritório.  A sua enfermidade sempre havia condicionado a relação, mas, após doze anos, Samuel gostaria de pensar que ela estava pronta para viver o resto dos seus dias com ele, independentemente das inconveniências que a sua condição pudesse causar. Como se enganara!

O seu dedo escorregou e tocou uma nota errada. Samuel olhou com descrença para o teclado. Não se enganava a tocar piano há anos. Fechou os olhos, tentando afugentar quaisquer recordações que o pudessem ter perturbado. A sirene podia agora ser ouvida com mais clareza. “Estão a vir rápido demais”. O pânico invadiu-lhe mente durante breves instantes, mas logo se acalmou, respirando profundamente. Não iriam chegar a tempo. “Fiz o que tinha de fazer.” O pensamento era reconfortante. Retomou a peça.

As memórias voltaram a preencher-lhe o pensamento, mas, desta vez não as tentou parar. Recordou como ela o acolhera de braços abertos quando voltou a casa. Recordou as semanas passadas a polir o plano da sua obra prima, a sua peça magistral. Tinha sido ela a atirar a pedra que começou a avalanche, a abrir os portões da sua insanidade, e seria ele a fechá-los. E que maneira de o fazer! Que maneira de partir deste mundo que não tivera dele mais compaixão que do inseto mais miserável.

A música aproximava-se do ápice e as chamas lambiam os pés descalços de Samuel. O fumo dificultava-lhe a respiração e fazia arder os olhos, mas ele continuou a tocar a um ritmo frenético. As labaredas queimavam-lhe agora as pernas e ainda assim, ele tocava. Ouviu o telhado do quarto a colapsar e ainda assim, ele tocava.

Apesar dos seus esforços por se manter calmo, uma euforia inusitada tomou conta de si. Samuel riu e logo tossiu quando o fumo e as cinzas lhe entraram nos pulmões. Toda a parte inferior do seu corpo fora carbonizada e um pedaço do teto caíra em cima de si, deixando um corte profundo no seu ombro. A música terminou. Com todo o corpo em chamas, dedicou um último pensamento à mulher, antes de ser consumido pelo inferno que provocara.

 

***

 

“Completamente maluco”, pensou Jacinto, mirando os restos da casa. “É a única explicação. Deve ter ficado completamente maluco”. A memória do dia anterior, quando chegara no carro de patrulha à casa em chamas, ficar-lhe-ia permanentemente gravada na mente. Gotas de chuva começavam a cair, prenunciando o dilúvio prometido pelos meteorologistas do programa da manhã. Conhecera vagamente Samuel e, embora soubesse que ele tomava medicação para um distúrbio do foro psicológico, nunca pensara nele como fora do normal. Aliás, poderia até dizer que era das pessoas mais normais que conhecia. Suspeitava que as investigações sobre o caso não levariam a conclusão alguma. Fora tudo demasiado repentino e aleatório para ser explicado. Sabia que o mais provável era nunca virem a saber o que realmente tinha acontecido. Talvez fosse melhor assim. A única coisa que sobrevivera ao fogo fora o piano, que foi retirado com não mais que umas queimaduras nas pernas.

A chuva caía agora com mais força e Jacinto acordou do estado de dormência pensativa em que se encontrava. Entrou no carro de patrulha e dirigiu-se à esquadra. Lá chegado, cumprimentou os colegas e dirigiu-se para a sua secretária. Pelo caminho, algo chamou a sua atenção. Voltou atrás no corredor e olhou para a sala onde mantinham objetos relevantes a investigações. O piano estava lá, no sítio onde o haviam deixado no dia anterior, mas a partitura, que continha uma canção que ele supunha ser da autoria de Samuel, tinha desaparecido.

 

 

 

Abélio Carimbo