Wednesday, August 23, 2017

Alguns exemplos de bibliofilmes de há dez anos


São bibliofilmes de há dez anos. Tenham em conta que talvez as regras não f0ssem exatamente as mesmas que agora, em 2017-1018, lhes proponho. Notem também que havia então constrangimentos técnicos que hoje já não se põem (o «peso» dos filmes estava muito limitado). Reproduzo apenas os melhores bibliofilmes dessas turmas de 2007-2008 (que saudades! — para mim, foi geração de alunos especialmente marcante, porque a quase todos acompanhei seis anos, do 7.º ao 12.º ano).

Bruno [10.º 4.ª, 2007-2008] (Stephen King, Cell)
Bruno (18) Stephen King, Cell Leitura, dicção Há vários tipos de leitura (segundo géneros: notícia de última hora, narrador, monólogo com fobia de Toni Carreira) e até por diferentes locutores; há ainda trechos representados (junto ao campo dos Pupilos). Esta diversidade é um dos grandes méritos do filme. Relação com o livro Tenho de advertir que não li o livro de Stephen King. Percebo que se trata de recriação, paródica, de clima e tema do livro do autor americano (ou a viver nos Estados Unidos). Escrita Deve incluir-se aqui toda a planificação (e depois a montagem) que me parecem excelentes: este bibliofilme, como é típico do cinema, implicou trabalho colectivo, com o realizador a dirigir a várias pessoas. Além disso, o filme revela muita criatividade (e no registo que é mais difícil: a paródia, a ironia). A redacção propriamente dita tem algumas imperfeições (não é fácil gerir tantos géneros textuais diferentes): «o maior desastre para o qual a humanidade não estava preparada» (o maior desastre a que a humanidade se podia sujeitar); «assolam por toda a parte» (tudo assolam; disseminam-se por toda a parte»; «o resto dos outros» (os restantes); «capacidades telepatas» (telepáticas). Regras Salvo erro, Cajó é um dos que fogem logo no início (embora não conste nos agradecimentos no genérico). Se assim for, já fica cumprida uma regra destes filmes.

Brigitta [10.º 1.ª, 2007-2008] (José Gomes Ferreira, Poeta militante)
Brigitta (18) José Gomes Ferreira, Poeta militante Leitura, dicção Não só não há falhas de pronúncia, entoação, como se consegue intercalar momentos de representação mais do que de leitura (sem que o todo fira, precisamente porque a leitura, sóbria, é correcta e os momentos de quase-representação são verosímeis). Relação com livro Lê-se poema, investigam-se palavras do título do livro, associa-se livro a prémio recebido e o autor à escola. Resulta de tudo isto um objecto que está entre o clip de recensão a livro e a autobiografia. Escrita Pela articulação dos dois géneros a que aludi, consegue-se um filme que, parecendo espontâneo e simples, tem escrita impecável (ou quase: «* poema nela contida» seria «poema nela contido») e rica estrutura narrativa. Interessante o aproveitamento de outro livro, o dicionário. Regras Cumpre todas.

Pedro M. [10.º 2.ª, 2007-2008] (Álvaro de Campos, Poesias)
Pedro M. (18) Álvaro de Campos, Poesias Leitura Muito boa. Talvez outros tivessem preferido um ritmo menos veloz (até porque essa velocidade é uma dificuldade mais, podia propiciar «tropeções» de pronúncia), mas, na verdade, o ritmo parece-me adequado à ânsia, instabilidade (e, em outros textos, sofreguidão de modernidade) características de Campos. Só notei uma palavra em que houve ligeira hesitação: «libertação» (se calhar, foi um tropeção simbólico). Na minha edição de «Tabacaria», está «À parte isso» e não «À parte disso» (pode ser difrença entre edições, mas talvez seja lapso na leitura). Relação com livro Usam-se trechos de «Tabacaria», o último poema publicado em vida de Pessoa assinado por Álvaro de Campos, e, depois, de «Addiamento», também assinado pelo mesmo heterónimo de Pessoa. Foram ainda intercalados trechos do próprio autor do bibliofilme. Os poemas escolhidos são dos mais introspectivos e de expressão da frustação de Pessoa. Embora o texto não seja dito pela figura que a câmara dá, vai havendo uma representação ao mesmo tempo (e também o resto do que decorre à frente da câmara vai acrescentando sentido ao texto lido em off). As imagens são sofisticadas (o relógio rápido; o choro; o globo; os negros final e inicial; a porta). Escrita Não se nota muito onde começam e acabam as partes efectivamente de Pessoa-Campos e as de Pedro-Campos. Que melhor elogio se pode fazer? Regras O tempo estipulado foi excedido (duração: 5:33); prazo de entrega, também (cerca de um ano).

Ana C. [10.º 4.ª, 2007-2008] (Margaret George, As memórias de Cleópatra)
Ana C. (17,5-18) Margaret George, As memórias de Cleópatra Leitura, dicção Muito boa. Sempre correcta a entoação das frases. No entanto, deve notar-se que a leitura em voz alta de textos irónicos [como a prezada autora discorda de que o estilo seja irónico, eu emendo: estilo coloquial, de leve ironia: exemplos: «Sim, foi com o Harry Potter...»; «Chamem-me tola, mas do que eu gosto mesmo é daqueles matacões»; «com algumas mortes à mistura»; «o que não exclui Agatha Christie, com apenas duzentas», «oitenta e cinco crimes publicados»; «eu gosto, mando e leio»; «Ah, e quando me der na telha...»] não é fácil, já que convém que seja o ouvinte a inferir o que haja de risível, não deve o locutor indiciar muito esses momentos — talvez que a solução melhor ainda seja adoptar estilo neutro, como que desinteressado do que se está a dizer. Notei duas pronúncias «hiper-correctas» (leituras segunda a escrita mas sem correspondência com o som normal da palavra): «excepto» com o «p» demasiado audível; «m[i]stura» que em Lisboa se dirá sobretudo «m[e]stura»). Relação com o livro No fundo, não há um livro de que se ocupe o bibliofilme, mas uma lista grande de obras. É o texto — autobiográfico — que sugere a alusão aos livros (e não o contrário). Escrita São muito criativas quer a concepção do texto quer a redacção propriamente dita (e a própria montagem). Contrastes ler/ver filmes e livros juvenis/clássicos estruturam todo o texto. Regras Cumpre todas.

Carolina [10.º 1.ª, 2007-2008] (Luís Soares, Em silêncio, amor)
Carolina (18-17,5) Luís Soares, Em silêncio, amor Leitura Muito boa. Não notei falha nenhuma. Relação com o livro Apenas duas primeiras frases e a última são do livro, as restantes são criações da autora (segundo o estilo, o modelo, do original). Escrita Que a redacção é boa pode comprovar-se com isto: eu julgava, inicialmente, que a Carolina apenas lia trechos do livro; só depois de muito tentar localizar os passos nas páginas da obra é que consegui apurar que se tratava de texto escrito pela autora do bibliofilme. (E é preciso dizer que considero o livro em causa de muito boa escrita. Já agora, Luís Soares foi, há muitos anos, aluno da Secundária de Benfica.) O enquadramento pelo cenário e a expressividade da leitura são também interpretações criativas. Regras Cumpre todas.

Inês [10.º 2.ª, 2007-2008] (Alberto Caeiro, Eu só penso no Sol)
Inês (17,5) Alberto Caeiro, Eu só penso no Sol Leitura Trata-se de leitura semi-representada; e sempre bem feita, como se comprova por, sem perder expressividade e ênfase, ser natural, não nos parecer fingida. Uma má pronúncia porém: em Lisboa, pelo menos, dizemos «poesia» com as vogais pré-tónicas mais reduzidas. Relação com a obra Livro a que o bibliofilme alude surge como se a autora com ele se encontrasse por um bom acaso. O conhecimento com que ficamos do poeta vem da leitura do texto; mas o formato do livro (simples e despojado [já agora, numa edição que é pouco rigorosa]), o título do manual de Filosofia (Pensar Azul) e a calma optimista que atravessa todo bibliofilme são também à Caeiro. Escrita Texto foi muito bem planificado. É uma pequena história de como se pode ler: um manual de uma disciplina muito menos importante do que o Português, um relance a um texto aí, busca de outro livro em que esteja aquele excerto, descoberta de muitas lombadas na estante, escolha de um livro, pesquisa em dicionário de palavra que a leitura sugeriu, regresso ao manual de filosofia (quando se devia era estudar Português). Um erro: como explicámos em aula mais do que uma vez (texto de Luísa Dacosta e prova do CLP), «solarengo» é ‘relativo a solar’ (substitua-se, portanto, por «soalheiro»). Regras Cumprem-se todas.

João Af. [10.º 1.ª, 2007-2008] (João de Barros, Os Lusíadas de Luís de Camões contados às crianças e lembrados ao povo)
João Af. (17,5) João de Barros, Os Lusíadas de Luís de Camões contados às crianças e lembrados ao povo Leitura, dicção Sem nenhuma falha (aliás: há um «outr[é]m» por «outrem»). Um comediante profissional conseguiria incutir às falas tom mais risível (mas isso não o poderíamos exigir ao João). Relação com o livro Há uma recriação — paródica — da figura de Camões e do texto dos Lusíadas, escrevendo-se uma estância alternativa. Eu acentuaria os aspectos paródicos: gosto do Camões a andar de bicicleta ou a escrever no computador; mas queria ver Camões a fazer mais disparates: a usar telemóvel, a brincar com a pala do olho, a, por alguma razão fútil, perder as folhas do manuscrito antes salvo. (Um reparo: este livro é mais de divulgação do que «livro literário».) Escrita Incluo na escrita toda a planificação, excelente, a montagem e tanto efeitos (que nem sei avaliar se são difíceis ou fáceis de fazer, mas que implicam decerto tempo e cuidado). O próprio texto foi bem preparado. Uma única falha de escrita: «*Nos dias de hoje, onde» (tire-se o «onde» e prefira-se um «em que»). Regras Cumpre todas.

Joana B. [10.º 5.ª, 2007-2008] (Christiane F., Os filhos da droga)
Joana B. (17,5) Christiane F., Os filhos da droga Leitura Há sobretudo representação. O grau de dificuldade é, em geral, maior do que o da simples leitura. E, no entanto, não há momentos falhados nessa representação (que ainda se desdobra em dois papéis: um, no registo caricatural da ‘rapariga fútil’; outro, mais sério, correspondente a uma vencida Christiane F.). Um erro de pronúncia: é preferível «drogada» a «dr[ó]gada». Relação com o livro (Só lamento que o livro não seja mais «literário».) O formato usado é muito original, trabalhoso e resulta bem. Criou-se um diálogo telefónico entre a autora e a protagonista do livro em causa. Podia o dispositivo ficar-se por aí, mas não: descobre-se que Christiane está até perto do espaço da personagem/autora do bibliofilme, o que permite que haja desfecho no próprio cenário principal (enfim, indirectamente, por observação feita pelo irmão da protagonista [em desempenho susceptível de o levar a uma nomeação para o óscar de melhor actor secundário]). Esse final — que seria moralista, lamechas, se surgisse sozinho — fica mais distinto, mais inteligente, ao não impedir a personagem principal de sair para ir ao Colombo. Com tudo isto, ficamos a conhecer o livro quer pela crítica pejorativa dirigida à própria autora (livro mal impresso, já antigo, ...) quer pelo desenvolvimento do episódio que é consequência de factos evocados no livro (droga, sida, ...). Escrita A concepção do texto, resumida em cima, é um grande mérito já de redacção. Os diálogos são verosímeis. Regras Ultrapassa-se bastante o tempo combinado.

Filipa A. [10.º 5.ª, 2007-2008] (Florbela Espanca, Diário do último ano)
Filipa A. (17-17,5) Florbela Espanca, Diário do último ano Leitura, dicção Muito boa. Não há falhas. Certa maneira de pronunciar — destacando bastante as palavras, «silabando» — acaba por ser antídoto contra a excessiva redução do vocalismo átono típica dos portugueses/lisboetas (que prejudicaria a compreensão de quem ouve); esta pronúncia muito audível não impede a naturalidade da leitura do texto. Relação com livro Usam-se inícios de páginas do diário de Florbela Espanca, que são desenvolvidas em texto criado pela autora do bibliofilme. (Há um único lapso: a entrada do dia 16 de Abril é, na verdade, do dia 16 de Março.) Escrita Texto criado é coerente com o ponto de partida, não se notando frases que destoem do estilo da poetisa. (Se não me engano, é preferível «a presença alastra» a «a presença alastra-se».) Regras Excede-se ligeiramente o tempo proposto.

Cláudia [10.º 1.ª, 2007-2008] (Florbela Espanca, Sonetos)
Cláudia (17) Florbela Espanca, Sonetos Leitura Bastante boa, sem nenhum erro de pronúncia ou má interpretação de pontuação, mas mais sintonizada com o estilo dos trechos escritos pela Cláudia do que com o dos poemas (talvez aqui, sobretudo no caso do poema mostrado em texto também, devesse ter sido um pouco menos segura, mais «desarrumada»: os poemas de Florbela Espanca convidam a que se mime mais o próprio acto de estar a pensar, ficar-lhes-ia bem uma leitura entrecortada, de quem hesita). Relação com livro Enquadra-se a leitura de poemas de Florbela numa pequena narrativa, com a circunstância da descoberta do livro. Escrita Foi tudo bem redigido. Beneficia com ser de 1.ª pessoa (vai-se contando o próprio processo de criação do filme: necessidade de fazer um trabalho, encontro casual com livro — e calhou bem ser livro já com marcas de tempo —, procura de dados no manual, até se chegar à leitura de poemas. Não encontrei erros. Regras Cumpre todas (som da parte final fica mais baixo do que o do resto do filme).

Joana O. [10.º 2.ª, 2007-2008] (Sophia de Mello Breyner Andresen, Ilhas / ...)
Joana O. (17) Sophia de Mello Breyner Andresen, Ilhas /.... Leitura Muito boa. Relação com o livro Se bem percebo, os poemas de Sophia são mera inspiração inicial para textos escritos por Joana. Também me parece que, em vez de um livro, são pelo menos três aqueles a que se alude: Ilhas, Navegações, Coral. Escrita Está bem redigido o texto, intimista, tenha ou não intercalado passos de Sophia. Só notei uma frase feita («certas e determinadas coisas»), que resulta pouco poética, e um lugar comum («o tarde pode ser demasiado tarde»), que parece má poesia. Regras Cumpre todas.

João Maria [10.º 4.ª, 2007-2008] (Manuel Teixeira-Gomes, Gente singular)
João Maria (17) Manuel Teixeira-Gomes, Gente Singular Leitura, dicção Boa. Desta vez, quase não houve a excessiva velocidade na pronúncia dos finais de palavra que já tem levado a que, na leitura do João Maria, as palavras se encavalitem umas nas outras. Também a «pontuação» oral já foi devidamente livre da pontuação escrita — excepto num «que» demasiado seguido de pausa, decerto por causa de uma vírgula. Relação com o livro Numa primeira parte, há aproximação ao próprio objecto, visto nas estantes e depois considerado sobretudo pelo título (que o é por ser o de um dos contos). Segue-se a alusão ao autor. Depois, uma segunda parte do filme encontra em personagens-tipo dos nossos dias equivalentes das figuras dos contos de Teixeira Gomes (de certo modo, a estas se faz referência pela sequência de desenhos de Rafael Bordalo Pinheiro; àquelas corresponderá uma série de sketches-perfis (a rapariga que se bronzeia; o arrumador; etc.), em que a ironia resulta. Considero os equivalentes das personagens de Teixeira-Gomes aceitáveis, embora valesse a pena fazer escrutínio caso a caso; e defenderia que a alusão à obra fosse mais explícita. Escrita Tanto a concepção narrativa (que já expliquei em cima) como a redacção propriamente dita são ricas, elaboradas. Um erro notei: «surgiu-me à memória» é substituível por «veio-me à ...», «surgiu-me na ...» Regras Cumpre todas.

Carlota [10.º 2.ª, 2007-2008] (Fernando Pessoa, Poemas)
Carlota (17) Fernando Pessoa, Poemas [por problemas técnicos que até agora não consegui resolver, nesta reprodução não se vêem os últimos quarenta segundos do filme] Leitura Bastante boa, sobretudo na parte do texto criado pela autora. Já na leitura do poema de Pessoa, acho discutíveis algumas das pausas (não se pode separar «em que está indistinta / A distinção»; e não faria pausa de «Livros» para «são»). No verso 9 houve lapso: «O rio corre, bem ou mal» é que é. Relação com livro Escolheu-se um poema, o célebre «Liberdade», e aproveita-se o seu tema como leitmotiv da primeira parte do filme, uma espécie de variação do texto pessoano tomada em termos autobiográficos; vem a seguir a leitura do texto de Pessoa (que era irónico, é preciso lembrar, já que respondia a discurso de Salazar; o engraçado é que «o melhor do mundo são crianças», que ficou como defendido pelo poeta, era alusão irónica — seria a visão de Salazar, que, por essa altura, defendera que os intelectuais eram preguiçosos a que não se devia dar crédito, o que enfurecera Pessoa). Crítica que se pode fazer é que o bibliofilme não alude ao resto do livro. Escrita O filme mostra que a Carlota tem um sentido apurado de como, na concepção de um filme, se podem conjugar escrita, imagem, música. Texto inicial é muito bom e, sobretudo, há um trabalho, criativo, de selecção de imagens e montagem que beneficia toda a redacção. Talvez haja aqui um erro: «aquilo que me irradia a alma» não me parece boa sintaxe. Regras É pena que faltem aqui os quarenta segundos finais.

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