Alguns exemplos de bibliofilmes de há dez anos
São bibliofilmes de há dez anos. Tenham em conta que talvez as regras
não f0ssem exatamente as mesmas que agora, em 2017-1018, lhes proponho. Notem também
que havia então constrangimentos técnicos que hoje já não se põem (o «peso» dos
filmes estava muito limitado). Reproduzo apenas os melhores bibliofilmes dessas
turmas de 2007-2008 (que saudades! — para mim, foi geração de alunos especialmente
marcante, porque a quase todos acompanhei seis anos, do 7.º ao 12.º ano).
Bruno
[10.º 4.ª, 2007-2008] (Stephen King, Cell)
Bruno (18) Stephen King,
Cell Leitura, dicção Há vários
tipos de leitura (segundo géneros: notícia de última hora, narrador, monólogo
com fobia de Toni Carreira) e até por diferentes locutores; há ainda trechos
representados (junto ao campo dos Pupilos). Esta diversidade é um dos grandes
méritos do filme. Relação
com o livro Tenho de advertir que não li o livro de Stephen
King. Percebo que se trata de recriação, paródica, de clima e tema do livro do
autor americano (ou a viver nos Estados Unidos). Escrita Deve incluir-se
aqui toda a planificação (e depois a montagem) que me parecem excelentes: este
bibliofilme, como é típico do cinema, implicou trabalho colectivo, com o
realizador a dirigir a várias pessoas. Além disso, o filme revela muita
criatividade (e no registo que é mais difícil: a paródia, a ironia). A redacção
propriamente dita tem algumas imperfeições (não é fácil gerir tantos géneros
textuais diferentes): «o maior desastre para o qual a humanidade não estava
preparada» (o maior desastre a que a humanidade se podia sujeitar); «assolam
por toda a parte» (tudo assolam; disseminam-se por toda a parte»; «o resto dos
outros» (os restantes); «capacidades telepatas» (telepáticas). Regras Salvo erro, Cajó é
um dos que fogem logo no início (embora não conste nos agradecimentos no
genérico). Se assim for, já fica cumprida uma regra destes filmes.
Brigitta [10.º 1.ª, 2007-2008] (José
Gomes Ferreira, Poeta militante)
Brigitta (18) José Gomes
Ferreira, Poeta militante
Leitura, dicção
Não só não há falhas de pronúncia, entoação, como se consegue intercalar
momentos de representação mais do que de leitura (sem que o todo fira,
precisamente porque a leitura, sóbria, é correcta e os momentos de
quase-representação são verosímeis). Relação
com livro Lê-se poema, investigam-se palavras do título do
livro, associa-se livro a prémio recebido e o autor à escola. Resulta de tudo
isto um objecto que está entre o clip de recensão a livro e a autobiografia. Escrita Pela articulação
dos dois géneros a que aludi, consegue-se um filme que, parecendo espontâneo e
simples, tem escrita impecável (ou quase: «* poema nela contida» seria «poema
nela contido») e rica estrutura narrativa. Interessante o aproveitamento de
outro livro, o dicionário. Regras
Cumpre todas.
Pedro M. [10.º 2.ª, 2007-2008] (Álvaro de Campos, Poesias)
Pedro M. (18) Álvaro de
Campos, Poesias Leitura Muito boa. Talvez
outros tivessem preferido um ritmo menos veloz (até porque essa velocidade é
uma dificuldade mais, podia propiciar «tropeções» de pronúncia), mas, na
verdade, o ritmo parece-me adequado à ânsia, instabilidade (e, em outros
textos, sofreguidão de modernidade) características de Campos. Só notei uma
palavra em que houve ligeira hesitação: «libertação» (se calhar, foi um
tropeção simbólico). Na minha edição de «Tabacaria», está «À parte isso» e não
«À parte disso» (pode ser difrença entre edições, mas talvez seja lapso na
leitura). Relação com livro
Usam-se trechos de «Tabacaria», o último poema publicado em vida de Pessoa
assinado por Álvaro de Campos, e, depois, de «Addiamento», também assinado pelo
mesmo heterónimo de Pessoa. Foram ainda intercalados trechos do próprio autor
do bibliofilme. Os poemas escolhidos são dos mais introspectivos e de expressão
da frustação de Pessoa. Embora o texto não seja dito pela figura que a câmara
dá, vai havendo uma representação ao mesmo tempo (e também o resto do que
decorre à frente da câmara vai acrescentando sentido ao texto lido em off). As
imagens são sofisticadas (o relógio rápido; o choro; o globo; os negros final e
inicial; a porta). Escrita
Não se nota muito onde começam e acabam as partes efectivamente de Pessoa-Campos
e as de Pedro-Campos. Que melhor elogio se pode fazer? Regras O tempo estipulado
foi excedido (duração: 5:33); prazo de entrega, também (cerca de um ano).
Ana C. [10.º 4.ª, 2007-2008] (Margaret
George, As memórias de
Cleópatra)
Ana C. (17,5-18)
Margaret George, As memórias de
Cleópatra Leitura,
dicção Muito boa. Sempre correcta a entoação das frases. No
entanto, deve notar-se que a leitura em voz alta de textos irónicos [como a
prezada autora discorda de que o estilo seja irónico, eu emendo: estilo
coloquial, de leve ironia: exemplos: «Sim, foi com o Harry Potter...»;
«Chamem-me tola, mas do que eu gosto mesmo é daqueles matacões»; «com algumas
mortes à mistura»; «o que não exclui Agatha Christie, com apenas duzentas»,
«oitenta e cinco crimes publicados»; «eu gosto, mando e leio»; «Ah, e quando me
der na telha...»] não é fácil, já que convém que seja o ouvinte a inferir o que
haja de risível, não deve o locutor indiciar muito esses momentos — talvez que
a solução melhor ainda seja adoptar estilo neutro, como que desinteressado do
que se está a dizer. Notei duas pronúncias «hiper-correctas» (leituras segunda
a escrita mas sem correspondência com o som normal da palavra): «excepto» com o
«p» demasiado audível; «m[i]stura» que em Lisboa se dirá sobretudo
«m[e]stura»). Relação com o
livro No fundo, não há um livro de que se ocupe o bibliofilme,
mas uma lista grande de obras. É o texto — autobiográfico — que sugere a alusão
aos livros (e não o contrário). Escrita
São muito criativas quer a concepção do texto quer a redacção propriamente dita
(e a própria montagem). Contrastes ler/ver filmes e livros juvenis/clássicos
estruturam todo o texto. Regras
Cumpre todas.
Carolina [10.º 1.ª, 2007-2008]
(Luís Soares, Em
silêncio, amor)
Carolina (18-17,5) Luís
Soares, Em silêncio, amor
Leitura
Muito boa. Não notei falha nenhuma. Relação
com o livro Apenas duas primeiras frases e a última são do
livro, as restantes são criações da autora (segundo o estilo, o modelo, do
original). Escrita
Que a redacção é boa pode comprovar-se com isto: eu julgava, inicialmente, que
a Carolina apenas lia trechos do livro; só depois de muito tentar localizar os
passos nas páginas da obra é que consegui apurar que se tratava de texto
escrito pela autora do bibliofilme. (E é preciso dizer que considero o livro em
causa de muito boa escrita. Já agora, Luís Soares foi, há muitos anos, aluno da
Secundária de Benfica.) O enquadramento pelo cenário e a expressividade da
leitura são também interpretações criativas. Regras Cumpre todas.
Inês [10.º 2.ª, 2007-2008] (Alberto
Caeiro, Eu só penso no Sol)
Inês (17,5) Alberto
Caeiro, Eu só penso no Sol
Leitura Trata-se
de leitura semi-representada; e sempre bem feita, como se comprova por, sem
perder expressividade e ênfase, ser natural, não nos parecer fingida. Uma má
pronúncia porém: em Lisboa, pelo menos, dizemos «poesia» com as vogais
pré-tónicas mais reduzidas. Relação
com a obra Livro a que o bibliofilme alude surge como se a
autora com ele se encontrasse por um bom acaso. O conhecimento com que ficamos
do poeta vem da leitura do texto; mas o formato do livro (simples e despojado
[já agora, numa edição que é pouco rigorosa]), o título do manual de Filosofia
(Pensar Azul) e a
calma optimista que atravessa todo bibliofilme são também à Caeiro. Escrita Texto foi muito
bem planificado. É uma pequena história de como se pode ler: um manual de uma
disciplina muito menos importante do que o Português, um relance a um texto aí,
busca de outro livro em que esteja aquele excerto, descoberta de muitas
lombadas na estante, escolha de um livro, pesquisa em dicionário de palavra que
a leitura sugeriu, regresso ao manual de filosofia (quando se devia era estudar
Português). Um erro: como explicámos em aula mais do que uma vez (texto de
Luísa Dacosta e prova do CLP), «solarengo» é ‘relativo a solar’ (substitua-se,
portanto, por «soalheiro»). Regras
Cumprem-se todas.
João Af. [10.º 1.ª, 2007-2008] (João
de Barros, Os Lusíadas de Luís
de Camões contados às crianças e lembrados ao povo)
João Af. (17,5) João de
Barros, Os Lusíadas de Luís de
Camões contados às crianças e lembrados ao povo Leitura, dicção Sem
nenhuma falha (aliás: há um «outr[é]m» por «outrem»). Um comediante
profissional conseguiria incutir às falas tom mais risível (mas isso não o
poderíamos exigir ao João). Relação
com o livro Há uma recriação — paródica — da figura de Camões e
do texto dos Lusíadas,
escrevendo-se uma estância alternativa. Eu acentuaria os aspectos paródicos:
gosto do Camões a andar de bicicleta ou a escrever no computador; mas queria
ver Camões a fazer mais disparates: a usar telemóvel, a brincar com a pala do
olho, a, por alguma razão fútil, perder as folhas do manuscrito antes salvo.
(Um reparo: este livro é mais de divulgação do que «livro literário».) Escrita Incluo na escrita
toda a planificação, excelente, a montagem e tanto efeitos (que nem sei avaliar
se são difíceis ou fáceis de fazer, mas que implicam decerto tempo e cuidado).
O próprio texto foi bem preparado. Uma única falha de escrita: «*Nos dias de
hoje, onde» (tire-se o «onde» e prefira-se um «em que»). Regras Cumpre todas.
Joana B. [10.º 5.ª, 2007-2008] (Christiane
F., Os filhos da droga)
Joana B. (17,5)
Christiane F., Os filhos da
droga Leitura
Há sobretudo representação. O grau de dificuldade é, em geral, maior do que o
da simples leitura. E, no entanto, não há momentos falhados nessa representação
(que ainda se desdobra em dois papéis: um, no registo caricatural da ‘rapariga
fútil’; outro, mais sério, correspondente a uma vencida Christiane F.). Um erro
de pronúncia: é preferível «drogada» a «dr[ó]gada». Relação com o livro (Só
lamento que o livro não seja mais «literário».) O formato usado é muito
original, trabalhoso e resulta bem. Criou-se um diálogo telefónico entre a
autora e a protagonista do livro em causa. Podia o dispositivo ficar-se por aí,
mas não: descobre-se que Christiane está até perto do espaço da
personagem/autora do bibliofilme, o que permite que haja desfecho no próprio
cenário principal (enfim, indirectamente, por observação feita pelo irmão da
protagonista [em desempenho susceptível de o levar a uma nomeação para o óscar
de melhor actor secundário]). Esse final — que seria moralista, lamechas, se
surgisse sozinho — fica mais distinto, mais inteligente, ao não impedir a
personagem principal de sair para ir ao Colombo. Com tudo isto, ficamos a
conhecer o livro quer pela crítica pejorativa dirigida à própria autora (livro
mal impresso, já antigo, ...) quer pelo desenvolvimento do episódio que é
consequência de factos evocados no livro (droga, sida, ...). Escrita A concepção do
texto, resumida em cima, é um grande mérito já de redacção. Os diálogos são
verosímeis. Regras
Ultrapassa-se bastante o tempo combinado.
Filipa A. [10.º 5.ª, 2007-2008] (Florbela
Espanca, Diário do último ano)
Filipa A. (17-17,5)
Florbela Espanca, Diário do
último ano Leitura,
dicção Muito boa. Não há falhas. Certa maneira de pronunciar —
destacando bastante as palavras, «silabando» — acaba por ser antídoto contra a
excessiva redução do vocalismo átono típica dos portugueses/lisboetas (que
prejudicaria a compreensão de quem ouve); esta pronúncia muito audível não
impede a naturalidade da leitura do texto. Relação com livro Usam-se inícios de páginas
do diário de Florbela Espanca, que são desenvolvidas em texto criado pela
autora do bibliofilme. (Há um único lapso: a entrada do dia 16 de Abril é, na
verdade, do dia 16 de Março.) Escrita
Texto criado é coerente com o ponto de partida, não se notando frases que
destoem do estilo da poetisa. (Se não me engano, é preferível «a presença
alastra» a «a presença alastra-se».) Regras
Excede-se ligeiramente o tempo proposto.
Cláudia [10.º 1.ª, 2007-2008] (Florbela
Espanca, Sonetos)
Cláudia (17) Florbela
Espanca, Sonetos Leitura Bastante boa, sem
nenhum erro de pronúncia ou má interpretação de pontuação, mas mais sintonizada
com o estilo dos trechos escritos pela Cláudia do que com o dos poemas (talvez
aqui, sobretudo no caso do poema mostrado em texto também, devesse ter sido um
pouco menos segura, mais «desarrumada»: os poemas de Florbela Espanca convidam
a que se mime mais o próprio acto de estar a pensar, ficar-lhes-ia bem uma
leitura entrecortada, de quem hesita). Relação
com livro Enquadra-se a leitura de poemas de Florbela numa
pequena narrativa, com a circunstância da descoberta do livro. Escrita Foi tudo bem
redigido. Beneficia com ser de 1.ª pessoa (vai-se contando o próprio processo
de criação do filme: necessidade de fazer um trabalho, encontro casual com
livro — e calhou bem ser livro já com marcas de tempo —, procura de dados no
manual, até se chegar à leitura de poemas. Não encontrei erros. Regras Cumpre todas (som
da parte final fica mais baixo do que o do resto do filme).
Joana O. [10.º 2.ª, 2007-2008] (Sophia
de Mello Breyner Andresen, Ilhas
/ ...)
Joana O. (17) Sophia de
Mello Breyner Andresen, Ilhas
/.... Leitura
Muito boa. Relação com o
livro Se bem percebo, os poemas de Sophia são mera inspiração
inicial para textos escritos por Joana. Também me parece que, em vez de um
livro, são pelo menos três aqueles a que se alude: Ilhas, Navegações,
Coral. Escrita Está bem redigido
o texto, intimista, tenha ou não intercalado passos de Sophia. Só notei uma
frase feita («certas e determinadas coisas»), que resulta pouco poética, e um
lugar comum («o tarde pode ser demasiado tarde»), que parece má poesia. Regras Cumpre todas.
João Maria [10.º 4.ª, 2007-2008] (Manuel
Teixeira-Gomes, Gente singular)
João Maria (17) Manuel
Teixeira-Gomes, Gente Singular
Leitura, dicção
Boa. Desta vez, quase não houve a excessiva velocidade na pronúncia dos finais
de palavra que já tem levado a que, na leitura do João Maria, as palavras se
encavalitem umas nas outras. Também a «pontuação» oral já foi devidamente livre
da pontuação escrita — excepto num «que» demasiado seguido de pausa, decerto
por causa de uma vírgula. Relação
com o livro Numa primeira parte, há aproximação ao próprio
objecto, visto nas estantes e depois considerado sobretudo pelo título (que o é
por ser o de um dos contos). Segue-se a alusão ao autor. Depois, uma segunda
parte do filme encontra em personagens-tipo dos nossos dias equivalentes das
figuras dos contos de Teixeira Gomes (de certo modo, a estas se faz referência
pela sequência de desenhos de Rafael Bordalo Pinheiro; àquelas corresponderá
uma série de sketches-perfis
(a rapariga que se bronzeia; o arrumador; etc.), em que a ironia resulta.
Considero os equivalentes das personagens de Teixeira-Gomes aceitáveis, embora
valesse a pena fazer escrutínio caso a caso; e defenderia que a alusão à obra
fosse mais explícita. Escrita
Tanto a concepção narrativa (que já expliquei em cima) como a redacção
propriamente dita são ricas, elaboradas. Um erro notei: «surgiu-me à memória» é
substituível por «veio-me à ...», «surgiu-me na ...» Regras Cumpre todas.
Carlota [10.º 2.ª, 2007-2008] (Fernando
Pessoa, Poemas)
Carlota (17) Fernando
Pessoa, Poemas [por
problemas técnicos que até agora não consegui resolver, nesta reprodução não se
vêem os últimos quarenta segundos do filme] Leitura Bastante boa, sobretudo na parte do
texto criado pela autora. Já na leitura do poema de Pessoa, acho discutíveis
algumas das pausas (não se pode separar «em que está indistinta / A distinção»;
e não faria pausa de «Livros» para «são»). No verso 9 houve lapso: «O rio
corre, bem ou mal» é que é. Relação
com livro Escolheu-se um poema, o célebre «Liberdade», e
aproveita-se o seu tema como leitmotiv da primeira parte do filme, uma espécie
de variação do texto pessoano tomada em termos autobiográficos; vem a seguir a
leitura do texto de Pessoa (que era irónico, é preciso lembrar, já que
respondia a discurso de Salazar; o engraçado é que «o melhor do mundo são
crianças», que ficou como defendido pelo poeta, era alusão irónica — seria a
visão de Salazar, que, por essa altura, defendera que os intelectuais eram
preguiçosos a que não se devia dar crédito, o que enfurecera Pessoa). Crítica
que se pode fazer é que o bibliofilme não alude ao resto do livro. Escrita O filme mostra
que a Carlota tem um sentido apurado de como, na concepção de um filme, se
podem conjugar escrita, imagem, música. Texto inicial é muito bom e, sobretudo,
há um trabalho, criativo, de selecção de imagens e montagem que beneficia toda
a redacção. Talvez haja aqui um erro: «aquilo que me irradia a alma» não me
parece boa sintaxe. Regras
É pena que faltem aqui os quarenta segundos finais.
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