Friday, September 06, 2024

Vi-me grego para escrever isto (por Carlos Matos)

Vi-me grego para escrever isto

 

Há duas semanas veio falar comigo uma amiga cujo nome não vou mencionar. Daquele tipo de amigas que todos temos, que só quer o melhor para os outros, mas muitas vezes não sabe o que é melhor para si. Chegou-se-me com o tema do seu namorado. Tinham-lhe incutido a suspeita de que a andava a trair. Veio-me logo à memória a história de Céfalo e Prócris. Uma versão moderna, se se quiser, mas as semelhanças não deixam de ser notáveis.

Ora, contava-me esta rainha das trafulhices amorosas que decidira mandar uma amiga sua, comparável ao disfarce que Céfalo usara, para tentar “seduzir” o pobre do moço. Ao contrário da filha de Erecteu, no entanto, este seu namorado não dera sinais de querer outra que não ela. Apesar daquilo que eu só posso imaginar ter sido uma exibição impressionante de atributos físicos, o mancebo manteve-se impávido e sereno, afirmando estar já comprometido e recusando-se a cair na tentação de uma outra mulher.

“Ainda bem que não descobriu o esquema” — foi o que pensei na altura. Se Prócris fugiu do país, não quero imaginar o que o rapaz faria. Especialmente tendo em conta que hoje em dia não encontraria (digo eu) uma deusa da caça, pronta a acolhê-lo e a enviá-lo de volta com presentes fantásticos.

Infelizmente, este tipo de segredos não fica secreto por muito tempo. Ontem veio o rapaz desabafar comigo e eu ouvi como se não soubesse do que ele estava a falar. Ficou destroçado, coitado. Espero que as semelhanças com o mito que até agora encontrei fiquem por aqui e não passem de estranhas coincidências. Quanto mais não seja por este ter tido um final um tanto trágico, ainda que levemente irónico. Numa história marcada pelas suspeitas de traição e consequências destas, as personagens nunca chegaram a confiar plenamente no seu parceiro, levando a uma morte prematura e ao final de um amor.

Espero que ele a consiga perdoar. Não concordo com o que a minha amiga fez, mas quero, como é óbvio que ela esteja contente. Felizmente para o rapaz, a sua demonstração de lealdade permitir-lhe-á continuar a relação sem recurso a cães mágicos e lanças infalíveis, caso queira. A ausência destes objetos também reduzirá drasticamente as hipóteses de um deles matar o outro acidentalmente, o que também considero ser um fator positivo. E a falta de um catalisador de intrigas e desconfianças, como o foi Eos no mito grego, é um fator promissor para uma relação mais duradoura.

Ainda estou para descobrir quem pôs à rapariga estas ideias na cabeça. Já estou numa disposição meramente especulativa, mas vendo como é suscetível a influências, não me admiraria se acreditasse numa qualquer “brisa”. E tendo em conta a sua reação claramente exagerada às primeiras suspeitas, não me é difícil imaginá-la a fazer das suas palavras lanças e matar assim a sua relação. Mas já estou a divagar. A relação de Prócris e Céfalo foi desde o início marcada pela desconfiança, pois ambos se revelaram infiéis. Não foi este o caso nesta história, pelo que gostaria de acreditar que este amor não está condenado ao fracasso. Mas, quando um limita os sonhos do outro, anseia por controlar a sua cara metade e a possessividade e ciúmes são as características marcantes da relação, esta nunca esteve destinada a ser.