Vi-me grego para escrever isto (por Carlos Matos)
Vi-me grego para escrever isto
Há duas
semanas veio falar comigo uma amiga cujo nome não vou mencionar. Daquele tipo
de amigas que todos temos, que só quer o melhor para os outros, mas muitas
vezes não sabe o que é melhor para si. Chegou-se-me com o tema do seu namorado.
Tinham-lhe incutido a suspeita de que a andava a trair. Veio-me logo à memória
a história de Céfalo e Prócris. Uma versão moderna, se se quiser, mas as
semelhanças não deixam de ser notáveis.
Ora,
contava-me esta rainha das trafulhices amorosas que decidira mandar uma amiga
sua, comparável ao disfarce que Céfalo usara, para tentar “seduzir” o pobre do
moço. Ao contrário da filha de Erecteu, no entanto, este seu namorado não dera
sinais de querer outra que não ela. Apesar daquilo que eu só posso imaginar ter
sido uma exibição impressionante de atributos físicos, o mancebo manteve-se
impávido e sereno, afirmando estar já comprometido e recusando-se a cair na
tentação de uma outra mulher.
“Ainda bem
que não descobriu o esquema” — foi o que pensei na altura. Se Prócris fugiu do
país, não quero imaginar o que o rapaz faria. Especialmente tendo em conta que
hoje em dia não encontraria (digo eu) uma deusa da caça, pronta a acolhê-lo e a
enviá-lo de volta com presentes fantásticos.
Infelizmente,
este tipo de segredos não fica secreto por muito tempo. Ontem veio o rapaz
desabafar comigo e eu ouvi como se não soubesse do que ele estava a falar.
Ficou destroçado, coitado. Espero que as semelhanças com o mito que até agora
encontrei fiquem por aqui e não passem de estranhas coincidências. Quanto mais
não seja por este ter tido um final um tanto trágico, ainda que levemente
irónico. Numa história marcada pelas suspeitas de traição e consequências
destas, as personagens nunca chegaram a confiar plenamente no seu parceiro,
levando a uma morte prematura e ao final de um amor.
Espero que ele a consiga perdoar. Não concordo com o que a minha amiga fez, mas quero, como é óbvio que ela esteja contente. Felizmente para o rapaz, a sua demonstração de lealdade permitir-lhe-á continuar a relação sem recurso a cães mágicos e lanças infalíveis, caso queira. A ausência destes objetos também reduzirá drasticamente as hipóteses de um deles matar o outro acidentalmente, o que também considero ser um fator positivo. E a falta de um catalisador de intrigas e desconfianças, como o foi Eos no mito grego, é um fator promissor para uma relação mais duradoura.
Ainda estou para descobrir quem pôs à rapariga estas ideias na cabeça. Já estou numa disposição meramente especulativa, mas vendo como é suscetível a influências, não me admiraria se acreditasse numa qualquer “brisa”. E tendo em conta a sua reação claramente exagerada às primeiras suspeitas, não me é difícil imaginá-la a fazer das suas palavras lanças e matar assim a sua relação. Mas já estou a divagar. A relação de Prócris e Céfalo foi desde o início marcada pela desconfiança, pois ambos se revelaram infiéis. Não foi este o caso nesta história, pelo que gostaria de acreditar que este amor não está condenado ao fracasso. Mas, quando um limita os sonhos do outro, anseia por controlar a sua cara metade e a possessividade e ciúmes são as características marcantes da relação, esta nunca esteve destinada a ser.
<< Home