Thursday, September 09, 2021

Aula 14-15

Aula 14-15 (8/out [1.ª, 3.ª]) Correção de síntese de «A dor de pensar» (ver também Apresentação):

Neste passo de Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Jacinto do Prado Coelho começa por nos lembrar que a inteligência tanto pode impulsionar a criação e o conhecimento como tornar-se numa causa de infelicidade. O objetivo do grande estudioso da literatura portuguesa é mostrar como Fernando Pessoa sofreu com a faculdade de pensar, porque esta o impediria de sentir e, por isso, de ser feliz. A segunda metade do excerto recorda poemas do ortónimo cujos sujeitos se debatiam com aquele dilema — ser consciente ou ser feliz —, gerador do que se tem designado como «a dor de pensar».

O poema em baixo — que ouvimos já — está datado de 21-10-1935, pouco mais de um mês antes de Pessoa morrer, sendo assinado por Álvaro de Campos. Não tem algumas das características do Campos futurista e sensacionista das odes nem da fase decadente (a do Campos jovem, a de «Opiário»).

Não modernizei a grafia (Pessoa escrevia segundo a escrita comum antes da primeira reforma ortográfica, em 1911). Atualiza tu a grafia, emendando o texto a lápis.

Há uma estrofe que traduz bem a reflexão que o Pessoa ortónimo fazia em «Ela canta, pobre ceifeira» e em «Gato que brincas na rua». É a ___ estrofe.

 

Todas as cartas de amor são

Ridiculas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridiculas.

 

Tambem escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,

Ridiculas.

 

As cartas de amor, se ha amor,

Têm de ser

Ridiculas.

 

Mas, afinal,

Só as creaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

É que são

Ridiculas.

 

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso

Cartas de amor

Ridiculas.

 

A verdade é que hoje

As minhas memorias

D’essas cartas de amor

É que são

Ridiculas.

 

(Todas as palavras exdruxulas,

Como os sentimentos exdruxulos,

São naturalmente

Ridiculas.)

Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, edição de Cleonice Berardinelli, Lisboa, INCM, 1990

Passa agora a «Aniversário», também deste Álvaro de Campos dito da fase intimista, na p. 64.

Transcreve algum verso em que se perceba ainda o problema existencial que vimos em «Gato que brincas na rua», «Ela canta, pobre ceifeira» — do ortónimo — e, há pouco, em «Todas as cartas de amor são ridículas», de Campos.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Entre as características de Campos (em parte, também encontráveis no Campos das odes futuristas), vê o que esteja abonado em «Aniversário». Para isso, transcreverás trechos de «Aniversário» que ilustrem cada um destes itens:

comparações inesperadas: ...

metáforas inesperadas: ...

exclamações: ...

anáforas: ...

apóstrofes: ...

paradoxos: ...

repetições: ...

versos longos e livres: muitos das primeiras estrofes, sobretudo.

articulados com alguns bastante curtos: os da última estrofe, por exemplo.

fuga para a recordação e/ou sonho: ...

poetização do prosaico, comum e quotidiano: ...

fragmentação do eu: ...

angústia existencial: [todo o texto, decerto]

O texto constrói-se a partir da memória de um tempo passado. Caracteriza esse passado, considerando as duas primeiras estrofes.

O passado era o tempo da _______.

Justifica o uso do pretérito imperfeito do indicativo nessas mesmas estrofes.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Relaciona o quinto verso da terceira estrofe com a estrofe anterior.

Na infância, o sujeito poético era feliz, mas ________. Só no presente, em que já perdeu essa felicidade inocente da infância é que sabe que ________.

Explica o valor aspetual do pretérito perfeito usado nesta terceira estrofe.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Mostra como, na estrofe 6, a memória do passado se sobrepõe ao presente:

A expressão «Vejo tudo outra vez» inicia a presentificação do passado que, assim, substitui o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Mostra como, à euforia dessa presentificação, se segue a disforia da tomada de consciência.

À euforia do passado tornado presente segue-se, na estrofe seguinte, a disforia da tomada de consciência de que é impossível recuperar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

[Só o minuto final interessa:]

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,

Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites,

Relembro, velando em modorra incómoda,

Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angústia

Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.

O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!

Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.

Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.

Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,

Na ilusão do espaço e do tempo,

Na falsidade do decorrer.

 

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;

O que só agora vejo que deveria ter feito,

O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —

Isso é que é morto para além de todos os Deuses,

Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver...

 

Se em certa altura

Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;

Se em certo momento

Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;

Se em certa conversa

Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —

Se tudo isso tivesse sido assim,

Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro

Seria insensivelmente levado a ser outro também.

 

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,

Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;

Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;

Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,

Claras, inevitáveis, naturais,

A conversa fechada concludentemente,

A matéria toda resolvida...

Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

 

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma

Em sistema metafísico nenhum.

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.

Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?

Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca

Como uma verdade de que não partilho,

E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.

Poesias de Álvaro de Campos, Lisboa, Ática, 1944 (imp. 1993), p. 34

POEMA EM LINHA RETA

 

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

 

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...

 

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

 

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

 

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

 

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Poesias de Álvaro de Campos, Lisboa, Ática, 1944 (imp. 1993), p. 312

Uso exercícios tirados de um manual, Nova Gramática didática de português (Carnaxide, Santillana, 2011), tendo-me permitido alterar algumas frases aqui e ali. Identifica a função sintática dos constituintes destacados nas frases seguintes.

A minha mãe ofereceu-lhe um perfume.

O ator foi entrevistado pelo jornalista.

O Lauro gosta de futebol.

Nomearam-no capitão de equipa.

Os amigos do capitão leram o diário de bordo.

Eles continuam zangados um com o outro.

Os meus pais viajaram ontem.

A Eulália leu o livro que a amiga lhe deu.

Os amigos achavam-na extremamente competente.

O Quim foi ao Brasil.

Em cada par de frases (retiradas da obra Aliás voltas sempre, Ali às voltas sempre, de Ana Goês), assinala aquela em que existe um constituinte com a função de vocativo. (Nota minha — Este exercício é dos mais ridículos que já lhes pedi que fizessem.)

Anda, Luzia, quero vê-la...

Andaluzia, quero vê-la...

 

Vinde, táxi, depressa!

Vim de táxi, depressa...

 

Não é Regina!

Não erre, Gina!

 

Glória, adeus!

Glória a Deus!

As palavras sublinhadas são pronomes relativos (ou palavras relativas); introduzem orações relativas. Reportam-se à palavra-expressão que as precede. A sua função sintática dentro da oração relativa é a que teria essa palavra. Diz qual é em cada uma das três orações.

                        oração adjetiva relativa

Comi o gato | que brincava na rua | porque o tomei por uma lebre.

                        [= o qual]

 

                                                    oração adjetiva relativa

Eram muito sofisticadas as ceifeiras | que o jornalista entrevistou.

                                                      [as quais]

 

                     oração adjetiva relativa

A mercearia | onde vendem ópio | faliu.

                         [na qual]

Escreve a função sintática sob os (ou ao lado dos) segmentos que fui sublinhando.

Bruno Fernandes, que eu considero bom jogador, não escreve cartas ridículas mas dá saltinhos ridículos ao marcar penáltis.

Capitão Fausto, que regressou há pouco, foi-me recomendado por Madalena Jorge.

Morro na praia

(Capitão Fausto)

Trabalhar nunca me fez bem nenhum,         ____

Mas é melhor que ver o tempo a passar.

Atrasado, faço mais um refrão.

Ao menos, vou gastar o tempo todo a cantar.

 

Não paro enquanto ainda for a tempo.

A tempestade virou costas ao mar, ____

Por muito que eu não queira,

De hoje não vai passar.

 

Fecho-me em casa, finjo que sou cantor,      _____

Ostento a tentativa de me levar a sério,

Mas, no fundo, nada mais vai mudar.

Eu canto a parolada, tu só tens de aceitar.  _____

 

Mãe, eu só te quero lembrar,

Até morrer no peito eu vou-te levar;

Minha mãe, eu só te quero lembrar,            ____

Até morrer no peito eu vou-te levar.

 

Caladinho, tu andaste a pastar,

Por esta altura tinhas já o trunfo na mão.    ____

Adormeço sempre a equacionar

E durmo mal dormido a pensar nesta canção.

 

Adio mais um dia perceber

Que aos vinte e seis não posso mais empatar.

Assumo o compromisso,              ______

Deixo as nuvens entrar.

 

Morro na praia a vinte passos de ser

Um gajo formado, um gajo pronto a vingar;

Mas, no fundo, fundo, tudo tem de mudar, _____

Agora, que eu não estudo, não me vou mais calar.

 

Mãe, eu só te quero lembrar,

Até morrer no peito eu vou-te levar;             ______

Minha mãe, eu só te quero lembrar,

Até morrer no peito eu vou-te levar.              _____

 

TPC — O poema «Aniversário», como outros da fase intimista de Álvaro de Campos (ou mesmo, por vezes, certos trechos das odes sensacionistas), aproveita o que podemos caracterizar como ‘a nostalgia da infância’. Este tema é também frequente no Pessoa ortónimo. Para já, gostava que relanceasses — em Gaveta de Nuvens«Un soir à Lima», um longo poema do ortónimo (aliás, na verdade, um poema não assinado), que, tanto quanto se pode identificar sujeito poético e autor (e não deve), se diria autobiográfico.

 

 

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