Aula 14-15
Aula 14-15 (8/out [1.ª, 3.ª]) Correção de síntese de «A dor de
pensar» (ver também Apresentação):
Neste passo de Diversidade e Unidade em
Fernando Pessoa, Jacinto do Prado Coelho começa por nos lembrar que a
inteligência tanto pode impulsionar a criação e o conhecimento como tornar-se
numa causa de infelicidade. O objetivo do grande estudioso da literatura
portuguesa é mostrar como Fernando Pessoa sofreu com a faculdade de pensar,
porque esta o impediria de sentir e, por isso, de ser feliz. A segunda metade
do excerto recorda poemas do ortónimo cujos sujeitos se debatiam com aquele dilema
— ser consciente ou ser feliz —, gerador do que se tem designado como «a dor de
pensar».
O poema em baixo — que ouvimos já — está
datado de 21-10-1935, pouco mais de um mês antes de Pessoa morrer, sendo
assinado por Álvaro de Campos. Não tem algumas das características do
Campos futurista e sensacionista das odes nem da fase decadente (a do Campos
jovem, a de «Opiário»).
Não
modernizei a grafia (Pessoa escrevia segundo a escrita comum antes da primeira
reforma ortográfica, em 1911). Atualiza tu a grafia, emendando o texto a lápis.
Há
uma estrofe que traduz bem a reflexão que o Pessoa ortónimo fazia em «Ela
canta, pobre ceifeira» e em «Gato que brincas na rua». É a ___ estrofe.
Todas as
cartas de amor são
Ridiculas.
Não seriam cartas
de amor se não fossem
Ridiculas.
Tambem escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as
outras,
Ridiculas.
As cartas
de amor, se ha amor,
Têm de ser
Ridiculas.
Mas,
afinal,
Só as
creaturas que nunca escreveram
Cartas de
amor
É que são
Ridiculas.
Quem me
dera no tempo em que escrevia
Sem dar por
isso
Cartas de
amor
Ridiculas.
A verdade é
que hoje
As minhas
memorias
D’essas cartas
de amor
É que são
Ridiculas.
(Todas as
palavras exdruxulas,
Como os
sentimentos exdruxulos,
São naturalmente
Ridiculas.)
Fernando
Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, edição
de Cleonice Berardinelli, Lisboa, INCM, 1990
Passa agora a «Aniversário», também deste Álvaro de Campos dito da fase intimista, na p. 64.
Transcreve algum verso em que se perceba
ainda o problema existencial que vimos em «Gato que brincas na rua», «Ela
canta, pobre ceifeira» — do ortónimo — e, há pouco, em «Todas as cartas de amor
são ridículas», de Campos.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Entre as características de Campos (em
parte, também encontráveis no Campos das odes futuristas), vê o que esteja
abonado em «Aniversário». Para isso, transcreverás trechos de «Aniversário» que
ilustrem cada um destes itens:
comparações inesperadas: ...
metáforas inesperadas: ...
exclamações: ...
anáforas: ...
apóstrofes: ...
paradoxos: ...
repetições: ...
versos longos e livres: muitos das primeiras estrofes, sobretudo.
articulados com alguns bastante curtos: os da última estrofe, por exemplo.
fuga para a recordação e/ou sonho: ...
poetização do prosaico, comum e quotidiano:
...
fragmentação do eu: ...
angústia existencial: [todo o texto, decerto]
O texto constrói-se a partir da memória de
um tempo passado. Caracteriza esse passado, considerando as duas primeiras
estrofes.
O passado era o tempo da _______.
Justifica o uso do pretérito imperfeito do
indicativo nessas mesmas estrofes.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Relaciona o quinto verso da terceira estrofe
com a estrofe anterior.
Na infância, o sujeito poético era feliz,
mas ________. Só no presente, em que já perdeu essa felicidade inocente da
infância é que sabe que ________.
Explica o valor aspetual do pretérito perfeito
usado nesta terceira estrofe.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Mostra como, na estrofe 6, a memória do
passado se sobrepõe ao presente:
A expressão «Vejo tudo outra vez» inicia a presentificação do passado que,
assim, substitui o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Mostra como, à euforia dessa presentificação, se segue a disforia da
tomada de consciência.
À euforia do passado tornado presente
segue-se, na estrofe seguinte, a disforia da tomada de consciência de que é
impossível recuperar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
[Só o minuto final interessa:]
Na noite terrível, substância natural de todas as
noites,
Na noite de insónia, substância natural de todas
as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incómoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na
vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou
um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o
cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra
parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser
que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem
sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter
sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os
Deuses fazem viver...
Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a
direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de
sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono,
elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente
perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o
percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora
vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me
todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás,
me dói.
O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que
sonhei.
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me
esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o
tempo, para todos os universos.
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho,
é invisível p’ra mim.
Poesias
de Álvaro de Campos,
Lisboa, Ática, 1944 (imp. 1993), p. 34
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse
levado porrada.
Todos os meus conhecidos
têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles,
tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente
parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não
tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho
sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés
publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho,
submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos
e calado,
Que quando não tenho
calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico
às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar
de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas
financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do
soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade
do soco;
Eu, que tenho sofrido a
angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho
par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço
e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo,
nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe —
todos eles príncipes — na vida...
Quem me dera ouvir de
alguém a voz humana
Que confessasse não um
pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma
violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se
os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo
que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e
erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os
terem amado,
Podem ter sido traídos —
mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido
ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os
meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil,
literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e
infame da vileza.
Poesias
de Álvaro de Campos,
Lisboa, Ática, 1944 (imp. 1993), p. 312
Uso exercícios tirados de um manual, Nova Gramática didática de português
(Carnaxide, Santillana, 2011), tendo-me permitido alterar algumas frases aqui e
ali. Identifica a função sintática dos constituintes destacados nas frases
seguintes.
A minha mãe ofereceu-lhe
um perfume.
O ator foi entrevistado pelo jornalista.
O Lauro gosta de futebol.
Nomearam-no capitão de equipa.
Os amigos do capitão leram o diário de bordo.
Eles continuam zangados um com o outro.
Os meus pais viajaram ontem.
A Eulália leu o livro que a amiga lhe deu.
Os amigos achavam-na extremamente competente.
O Quim foi ao Brasil.
Em cada par de frases (retiradas da obra Aliás voltas sempre, Ali às voltas sempre, de Ana Goês), assinala aquela em que
existe um constituinte com a função de vocativo. (Nota minha — Este exercício é
dos mais ridículos que já lhes pedi que fizessem.)
Anda, Luzia, quero vê-la...
Andaluzia, quero vê-la...
Vinde, táxi, depressa!
Vim de táxi, depressa...
Não é Regina!
Não erre, Gina!
Glória, adeus!
Glória a Deus!
As palavras sublinhadas são pronomes
relativos (ou palavras relativas); introduzem orações relativas.
Reportam-se à palavra-expressão que as precede. A sua função sintática dentro
da oração relativa é a que teria essa palavra. Diz qual é em cada uma das três
orações.
oração adjetiva relativa
Comi o gato | que brincava
na rua | porque o tomei por uma lebre.
[= o qual]
oração
adjetiva relativa
Eram muito sofisticadas as
ceifeiras | que o jornalista entrevistou.
[as quais]
oração adjetiva relativa
A mercearia | onde
vendem ópio | faliu.
[na qual]
Escreve a função sintática sob os
(ou ao lado dos) segmentos que fui sublinhando.
Bruno Fernandes, que eu considero
bom jogador, não escreve cartas ridículas mas dá saltinhos ridículos ao marcar penáltis.
Capitão Fausto, que regressou há
pouco, foi-me recomendado por Madalena Jorge.
Morro na praia
(Capitão Fausto)
Trabalhar
nunca me fez bem nenhum, ____
Mas
é melhor que ver o tempo a passar.
Atrasado,
faço mais um refrão.
Ao
menos, vou gastar o tempo todo a cantar.
Não
paro enquanto ainda for a tempo.
A
tempestade virou costas ao mar, ____
Por
muito que eu não queira,
De
hoje não vai passar.
Fecho-me em casa, finjo que sou
cantor, _____
Ostento
a tentativa de me levar a sério,
Mas,
no fundo, nada mais vai mudar.
Eu
canto a parolada, tu só tens
de aceitar. _____
Mãe,
eu só te quero lembrar,
Até
morrer no peito eu vou-te levar;
Minha mãe,
eu só te quero lembrar, ____
Até
morrer no peito eu vou-te levar.
Caladinho,
tu andaste a pastar,
Por
esta altura tinhas já o trunfo na mão. ____
Adormeço
sempre a equacionar
E
durmo mal dormido a pensar nesta canção.
Adio
mais um dia perceber
Que
aos vinte e seis não posso mais empatar.
Assumo
o compromisso, ______
Deixo
as nuvens entrar.
Morro
na praia a vinte passos de ser
Um
gajo formado, um gajo pronto a vingar;
Mas,
no fundo, fundo, tudo tem de
mudar, _____
Agora,
que eu não estudo, não me vou mais calar.
Mãe,
eu só te quero lembrar,
Até
morrer no peito eu vou-te
levar; ______
Minha
mãe, eu só te quero lembrar,
Até
morrer no peito eu vou-te
levar. _____
TPC — O poema «Aniversário», como outros da fase intimista
de Álvaro de Campos (ou mesmo, por vezes, certos trechos das odes
sensacionistas), aproveita o que podemos caracterizar como ‘a nostalgia
da infância’. Este tema é também frequente no Pessoa ortónimo. Para já, gostava
que relanceasses — em Gaveta de Nuvens
— «Un soir à Lima», um longo poema do ortónimo (aliás, na verdade, um poema não
assinado), que, tanto quanto se pode identificar sujeito poético e autor (e não
deve), se diria autobiográfico.
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