Thursday, September 09, 2021

Un soir à Lima

                            Un Soir à Lima

 

Vem a voz da radiofonia e dá

A notícia num arrastamento vão:

“A seguir

Un Soir à Lima”...

 

Cesso de sorrir...

Para-me o coração...

 

E, de repente,

Essa querida e maldita melodia

Rompe do aparelho inconsciente...

Numa memória súbita e presente

Minha alma se extravia...

O grande luar da África fazia

A encosta arborizada reluzente.

 

A sala em nossa casa era ampla, e estava

Posta onde, até ao mar, tudo se dava

À clara escuridão do luar ingente...

Mas só eu, à janela.

Minha mãe estava ao piano

E tocava...

Exatamente

“Un Soir à Lima”.

 

Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!

Que é do seu alto porte?

Da sua voz continuamente acolhedora?

Do seu sorriso carinhoso e forte?

O que hoje há

Que mo recorda é isto que oiço agora

Un Soir à Lima.

Prossegue na radiofonia

A mesma, a mesma melodia

O mesmo “Un Soir à Lima”

 

Seu cabelo grisalho era tão lindo

Sob a luz

E eu que nunca pensei que ela morresse

E me deixasse entregue a quem eu sou!

Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.

Ninguém é homem para a sua mãe!

 

E inda através de lágrimas não falha

            À memória que tenho

            O recorte perfeito de medalha

            Daquele perfeitíssimo perfil.

            Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,

            Meu coração sempre infantil.

            Vejo teus dedos no teclado e há

            Luar lá fora eternamente em mim.

            Tocas em meu coração, sem fim,

            Un Soir à Lima.

 

O silêncio fatal das coisas findas

As tuas mãos pequenas e tão lindas

Com escrúpulo risonho e familiar

Com um sorriso em que não há

Nada senão o eternamente humano

Tiravas da quietude do piano

Un Soir à Lima.

 

Tinhas, perfil, um rosto de medalha

Eras de frente, e olhando, a minha mãe

Como hoje o teu olhar me falha

E o teu perfil me lembra bem

 

“Os pequenos dormiram logo?”

“Ora, dormiram logo”.

“Esta está quási a dormir”

E tu, sorrindo ao responder, continuavas

O que tocavas –

Atentamente tocavas –

Un Soir à Lima.

 

Tudo que fui quando não era nada,

Tudo que amei e sei só em verdade

Que o amei por não ter hoje estrada,

Que tenha qualquer realidade,

Por não ter dele mais que a saudade –

Tudo isso vive em mim

Por luzes, música e a visão

Que não tem fim

Dessa hora eterna no meu coração,

Em que voltavas

A folha irreal da música a tocar

E eu te ouvia e via

Continuar

A eterna melodia

Que está

No fundo eterno desta nostalgia

De quando, mãe, tocavas

Un Soir à Lima.

 

E o aparelho indiferente

Traz da emissora inconsciente

Un Soir à Lima.

 

Eu não sabia então que era feliz.

Hoje, que o já não sou, sei bem que o era.

 

“Esta também está a dormir...”

“Não está”.

Ficámos todos a sorrir

E eu distraidamente vou

Continuando a ouvir,

Longe do luar que há

E que lá fora existe duro e só,

O que me faz sonhar sem o sentir,

O que hoje faz que tenha de mim dó

Esse canto sem voz, teclado e brando

Que minha mãe estava tocando –

Un Soir à Lima.

 

Não ter aqui numa gaveta,

Não ter aqui numa algibeira,

Fechada, havida, completa,

Essa cena inteira!

Não poder arrancar

Do espaço, do tempo, da vida

E isolar

Num lugar

Da alma onde ficasse possuída

Eternamente

Viva, quente,

Essa sala, essa hora,

Toda a família e a paz e a música que há

Mas real como ali está

Ainda, agora,

Quando, mãe, mãe, tocavas

Un Soir à Lima.

 

Mãe, mãe, fui teu menino

Tão bem dobrado

Na sua educação

E hoje sou o trapo que o Destino

Fez enrolado e atirado

Para um canto do chão.

 

Jazo, mesquinho,

Mas ao meu coração

Sobe, num torvelinho

A memória de quanto ouvi do que há

No que há de carícia, de lar, de ninho,

Ao relembrar o ouvi, hoje, meu Deus, sozinho,

Un Soir à Lima.

 

Onde é que a hora, e o lar e o amor está

Quando, mãe, mãe, tocavas

Un Soir à Lima?

 

E num recanto de cadeira grande

Minha irmã,

Pequena e encolhidinha

Não sabe se dorme se não.

 

Eu tenho sido tanta coisa vil!

Tenho traído tanto do que sou!

Meu espírito sedento

De raciocinador subtil

Quantas vezes prolixamente errou!

Quantas vezes até o sentimento

Inanimadamente me enganou!

 

Já que não tenho lar,

Deixa-me estar

Nesta visão

Do lar de então,

Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir –

Eu à janela

Do nunca mais deixar de sentir,

Nessa sala, a nossa sala, quente

Da África ampla onde o luar está

Lá fora vasto e indiferente

Nem mal nem bem

E onde, no meu coração

Mãe, mãe

Tocas visivelmente,

Tocas eternamente

Un Soir à Lima.

 

A minha raiva de animal humano

A quem tiraram a mãe,

E não tem

Para o menino que lhe na alma há,

Para lhe embalar o coração,

Mais que esta visão –

As tuas mãos pequenas pelo piano

Quando, oh meu Deus, tocavas

Un Soir à Lima.

 

Ai, mas é engano.

Aqui sou velho

Não há sala nem há piano

Nem tu existes a tocar.

Há um aparelho mudo

De onde um som vem de longe, e dói

Como é que eu te darei um beijo agora?

 

Eu poderia, vindo da janela,

Como tantas vezes fiz

 

O raciocinador exacto

Cuja alma está em mil pedaços,

Em mil pedaços que nem há...

Deixa-me dormir

E sonhar de estar vendo, a ouvir,

Un Soir à Lima.

 

E era nesta calma,

Nesta felicidade

Em que existia uma alma

(Meu Deus, que saudade!),

Que, sob a luz que dourava,

(Hoje onde é que isso está?)

Longe de onde o luar prateava,

Minha mãe tocava

Medalha atenta e humana ao piano,

Un Soir à Lima.

 

Desde então

Tenho atravessado

Muitas vidas.

As mais das vezes tenho errado.

Meu coração

Pesa de coisas esquecidas.

Desde quando

Nesse brando

Conforto do meu lar extinto

Eu, à janela, ouvia, hirto e sonhando,

Ermo e indistinto,

O que há

Em toda a música de intuição e instinto,

Quanto tenho deixado morrer

Dentro do que quis ser,

Quanto tenho deixado

Só pensado,

Quanto, quanto,

Tem sido para mim somente sonho,

Somente o encanto,

Tristemente risonho

De o ter sonhado,

Quem sabe se a saudade

Transmutada num devaneio meio humano

De quanto nessa noite está,

Longínqua, em que, mamã, ao piano

Tocavas, sob a crua claridade,

Un Soir à Lima.

 

Pesa-me o coração. Um torpor denso

Ocupa-me a consciência de 

E um frio informe, desolado e denso

Não me deixa pensar.

 

Num baloiçar-me, num embalar

Relembro tudo, relembro em vão.

Meu Deus, isso tudo onde está?

Un Soir à Lima...

Quebra-te, coração!...

 

Meu padrasto

(Que homem! que alma! que coração!)

Reclinava o seu corpo basto

De atleta sossegado e são

Na poltrona maior

E ouvia, fumando e cismando,

E o seu olhar azul não tinha cor.

E minha irmã, criança,

No recanto da sua poltrona

Enrolada, ouvia a dormir

E a sorrir

Que estava alguém tocando

Se calhar uma dança...

 

E eu, de pé, ante a janela

Via todo o luar de toda a África inundar

A paisagem e o meu sonhar.

 

Onde tudo isso está!

Un Soir à Lima,

Quebra-te, coração!

 

Essa mão pequenina e branca,

Que nunca mais me afagará,

Sorrias, rindo, para mim

Esse sorriso que já teve fim,

E continuavas tocando

Un Soir à Lima.

 

E eu que nunca julguei que tu morresses

E me deixasses só com o que eu sou...

 

E é uma emissora indiferente

Que por um aparelho inconsciente

Em música, só, música me dá

A angústia viva que me vem

De te ver, por me lembrar,

Minha mãe, minha mãe,

Tão tranquila, tocar

Un Soir à Lima.

 

Mas entorpeço.

Não sei se vejo, se adormeço,

Se sou quem fui,

Não sei se lembro, nem se esqueço.

Há qualquer coisa que indistinta flui

Entre quem sou e o que eu era

E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar,

Qualquer cousa que não se espera,

Que se suspende de repente

E, do fundo aonde parecia ir acabar,

Surge, cada vez mais distintamente,

Num halo de suavidade

E nostalgia,

Onde o meu coração ainda está,

Um piano, uma figura, uma saudade...

Durmo encostado a essa melodia –

E oiço que minha Mãe toca,

Oiço, já com o sal das lágrimas na boca,

Un Soir à Lima.

 

O véu das lágrimas não cega.

Vejo, a chorar,

O que essa música me entrega –

A mãe que eu tinha, o antigo lar,

A criança que fui,

O horror do tempo porque flui,

O horror da vida, porque é só matar.

Vejo, e adormeço

E no torpor em que me esqueço

Estou vendo minha mãe tocar.

Essas mãos brancas e pequenas,

Cuja carícia nunca mais me afagará,

Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,

Un Soir à Lima.

 

Ah, vejo tudo claro!

Estou outra vez ali.

Afasto do luar externo e raro

Os olhos com que o vi.

 

Mas quê? Divago, e a música acabou...

Divago como sempre divaguei

Sem ter na alma certeza de quem sou,

Nem verdadeira fé ou firme lei.

 

Divago, crio eternidades minhas

Num ópio de memória e de abandono.

Entronizo fantásticas rainhas

Sem para elas ter um trono.

 

Sonho porque me banho

No rio irreal da música evocada.

Minha alma é uma criança esfarrapada

Que dorme num recanto obscuro.

De meu só tenho,

Na realidade certa e acordada,

Os trapos da minha alma abandonada

E a cabeça que sonha ao pé do muro.

 

Mas, mãe, não haverá

Um Deus que me não torne tudo vão,

Um outro mundo em que isso agora está?

Divago ainda: tudo é ilusão.

Un Soir à Lima...

 

Quebra-te, coração...

[17-9-1935]



Fernando Pessoa, Vinte Anos de Poesia Ortónima. IV – 1934-1935, edição de Luís Prista, ed. digital gratuita, Lisboa, Imprensa Nacional, 2020, pp. 226-237