Sermão
Reuni
aqui definições de conceitos úteis ao estudo de sermões (retirei-as do E-Dicionário de Termos Literários,
organizado por Carlos Ceia, uma terminologia on-line utilíssima, mas cortei
algumas partes).
Alegoria — Aquilo que representa uma
coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral. Um bom exemplo em
português é-nos apresentado pelo Padre António Vieira: “Notai uma alegoria
própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só
de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos do cair: há-de
cair com queda, há-de cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as
coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para
as coisas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar hão-de ter queda; a
cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas, nem dissonantes,
hão-de ter cadência; o caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e
tão desafectado que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.”
(Sermão da Sexagésima, V, Obras Escolhidas, vol.XI, Sá da Costa, Lisboa,
1954, p.222). [...]
Regra geral, a alegoria reporta-se a uma história ou a uma
situação que joga com sentidos duplos e figurados, sem limites textuais (pode
ocorrer num simples poema como num romance inteiro), pelo que também tem
afinidades com a parábola e a fábula.
Conceito predicável — Processo retórico da
oratória barroca que consiste na interpretação fantástica de um passo da
Sagrada Escritura, com base em associações de ideias próximas ou
dissemelhantes, e devidamente fundamentadas por uma autoridade teológica
confirmada. Os sermões de António Vieira são o melhor exemplo desta prática
oratória. Segundo António Sérgio: “Desenvolver um ‘conceito predicável’
significa inculcar uma proposição moral, não com o auxílio de argumentos
válidos (isto é, por meio de relações verdadeiramente lógicas, a partir de
factos da observação psicológica, ou da história, ou da experiência vulgar, ou
então de princípios de natureza ética, ou filosófica ou teológica), senão que
pelo artifício de uma simples imagem, recorrendo a um facto ou a uma frase da Bíblia
que pelo uso habilidoso de uma ‘agudeza do engenho’ se decide apresentar como
sendo uma alegoria, uma figura, um símbolo, daquela proposição que se deseja
avançar.” (“Salada de conjecturas a propósito de dois jesuítas”, Ensaios V,
2ªed., Liv. Sá da Costa, Lisboa, 1981, p.96). Na época, publicaram-se em
Portugal, em Espanha e em Itália várias compilações de conceitos predicáveis
que pretendiam servir de referência a todos os oradores.
Captatio
benevolentiae — Expressão da retórica latina que significa literalmente
“conquista da benevolência”, muito difundida em todas as literaturas românicas,
quando um escritor quer ganhar a simpatia do leitor, interpelando-o no sentido
de receber louvor e solidariedade para a causa que está a ser defendida. Cícero
refere-se-lhe no De inventione (1, 15, 21), aconselhando a que o
auditório apenas louve os aspectos positivos de um discurso. Encontramos esta
estratégia retórica nos textos literários encomiásticos, por exemplo, ou sempre
que um autor se dirige ao leitor para conquistar a sua benevolência, como neste
passo das Viagens da Minha Terra, de Almeida Garrett, em que o Autor
simula estar ele próprio já convicto de ter “desapontado” o leitor, que,
perante tal sinceridade e humildade, não hesitará certamente em desculpar o
Romancista: “Vou desapontar decerto o leitor benévolo; vou perder, pela minha
fatal sinceridade, quanto em seu conceito tinha adquirido nos dois primeiros
capítulos desta interessante viagem.” (cap.III).
Exórdio — Primeira parte da dispositio — ordenação adequada de ideias de um discurso retórico.
Do latim exordire (“começar”),
consiste na parte introdutória do logos.
Rafael Bluteau, no Vocabulário, faz
equivaler a exórdio os vocábulos prefação,
preâmbulo e prefácio. Compreende o exórdio dois momentos:a obtenção da
complacência do público e a apresentação da partitio
— plano a seguir. Nele são aplicadas diversas fórmulas de acordo com as
características do auditório e com o género discursivo em questão: pode ser
simples ou directo se apresenta directamente a matéria a desenvolver; indirecto
se o orador recorre a subterfúgios para sugerir assuntos susceptíveis de
rejeição; de improviso quando, sem justificação, se torna abrupta a entrada na
matéria.
[...]
Na
obra de Vieira, o exórdio constitui o espaço eleito para a exposição de
assuntos não obrigatoriamente derivados da matéria que preside ao discurso no
seu todo. É também na abertura que o autor se projecta e recorre
preferencialmente ao equívoco, ao acomodar textos bíblicos tanto à época
presente quanto ao seu papel de protagonista: no Sermão de Santo António aos
Peixes o vocativo “vós” designa receptores de diferentes universos: os
apóstolos (pregadores) de Cristo e os missionários do Maranhão presentes no
auditório. O orador valoriza de tal modo a parte introdutória do texto que, em
sermões encontrados em borrão, só o exórdio revela um carácter completo e de
redacção cuidada.
Peroração — Do latim perorātio, peroratiōnis, de perorāre: concluir, arrematar, acabar: finis coronat opus (O fim coroa a obra). Em geral breve, trata-se da parte final
do discurso oratório, segundo a doutrina retórica antiga, que se segue ao
exórdio, à apresentação e confirmação das provas, e à narração. Compõe-se, em
geral, pela recapitulação, a amplificação e a comoção do auditório. A
recapitulação traz à memória dos ouvintes os principais argumentos defendidos.
A amplificação enfatiza, realça e evidencia uma idéia, intensificando-a. Nesse
sentido, convém ao orador engrandecer os argumentos favoráveis à causa e
diminuir os contrários por meio de ornamentos e figuras. A comoção se faz com o
apelo ético e patético, tendo como fim a captatio
benevolentiae dos ouvintes, ou seja, torná-los favoráveis à causa
defendida. Nesse sentido, o fim da peroração é o comouēre (comover) e o mouēre
(mover), isto é, emocionar e mover o ânimo dos ouvintes à ação. Sendo assim, a
peroração, muitas vezes, é o lugar por excelência no qual se permite todo
brilho e vivacidade da elocução, sendo conveniente o uso das figuras e tropos.
Também é o momentos de despedida do orador, logo, convém que o coroe com
efeitos eloqüentes, impressionando o auditório. [...]
Confirmação (confirmatio) — Parte do
discurso em que se aduzem os argumentos que servem para demonstrar uma
proposição. Na retórica clássica latina, Cícero e Quintiliano descreveram com
pormenor todas as partes fixas de um discurso, incluindo a confirmatio (exordium
> narratio > propositio > divisio > confirmatio > illustratio
> confutatio > peroratio). Na sermonística do Padre António Vieira, a
forma preferida de confirmação da matéria de um sermão é o exemplo. No Sermão
da Sexagésima, dedicado ao tema “o não fazer fruto hoje a palavra de Deus”,
afirma Vieira: “A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo
no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz
Cristo: Saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce
exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita
diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o
governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o pregador e
outra o que prega.” (§IV).
Confutação (confutatio) — Na
retórica clássica, a apresentação de refutações, objecções e interrogações que
o orador dirige ao público. No Sermão da Sexagésima (1655), António
Vieira resume o tema do sermão à reflexão sobre o “pouco fruto da palavras de
Deus”: “Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje
tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta
tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do Sermão. Quero começar
pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a
vós, para que aprendais a ouvir.” (§II). Está lançado o tema, apelando á
participação do público. Nas próprias palavras de Vieira, a parte de um sermão
que corresponde à confutação é aquela em que o pregador “há-de responder às
dúvidas, há-de satisfazer as dificuldades, há-de impugnar e refutar com toda a
força da eloquência os argumentos contrários” (§VI).
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