Sunday, September 16, 2012

Sermão




Reuni aqui definições de conceitos úteis ao estudo de sermões (retirei-as do E-Dicionário de Termos Literários, organizado por Carlos Ceia, uma terminologia on-line utilíssima, mas cortei algumas partes).


Alegoria — Aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral. Um bom exemplo em português é-nos apresentado pelo Padre António Vieira: “Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos do cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar hão-de ter queda; a cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas, nem dissonantes, hão-de ter cadência; o caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectado que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.” (Sermão da Sexagésima, V, Obras Escolhidas, vol.XI, Sá da Costa, Lisboa, 1954, p.222). [...]

Regra geral, a alegoria reporta-se a uma história ou a uma situação que joga com sentidos duplos e figurados, sem limites textuais (pode ocorrer num simples poema como num romance inteiro), pelo que também tem afinidades com a parábola e a fábula.


Conceito predicável — Processo retórico da oratória barroca que consiste na interpretação fantástica de um passo da Sagrada Escritura, com base em associações de ideias próximas ou dissemelhantes, e devidamente fundamentadas por uma autoridade teológica confirmada. Os sermões de António Vieira são o melhor exemplo desta prática oratória. Segundo António Sérgio: “Desenvolver um ‘conceito predicável’ significa inculcar uma proposição moral, não com o auxílio de argumentos válidos (isto é, por meio de relações verdadeiramente lógicas, a partir de factos da observação psicológica, ou da história, ou da experiência vulgar, ou então de princípios de natureza ética, ou filosófica ou teológica), senão que pelo artifício de uma simples imagem, recorrendo a um facto ou a uma frase da Bíblia que pelo uso habilidoso de uma ‘agudeza do engenho’ se decide apresentar como sendo uma alegoria, uma figura, um símbolo, daquela proposição que se deseja avançar.” (“Salada de conjecturas a propósito de dois jesuítas”, Ensaios V, 2ªed., Liv. Sá da Costa, Lisboa, 1981, p.96). Na época, publicaram-se em Portugal, em Espanha e em Itália várias compilações de conceitos predicáveis que pretendiam servir de referência a todos os oradores.


Captatio benevolentiaeExpressão da retórica latina que significa literalmente “conquista da benevolência”, muito difundida em todas as literaturas românicas, quando um escritor quer ganhar a simpatia do leitor, interpelando-o no sentido de receber louvor e solidariedade para a causa que está a ser defendida. Cícero refere-se-lhe no De inventione (1, 15, 21), aconselhando a que o auditório apenas louve os aspectos positivos de um discurso. Encontramos esta estratégia retórica nos textos literários encomiásticos, por exemplo, ou sempre que um autor se dirige ao leitor para conquistar a sua benevolência, como neste passo das Viagens da Minha Terra, de Almeida Garrett, em que o Autor simula estar ele próprio já convicto de ter “desapontado” o leitor, que, perante tal sinceridade e humildade, não hesitará certamente em desculpar o Romancista: “Vou desapontar decerto o leitor benévolo; vou perder, pela minha fatal sinceridade, quanto em seu conceito tinha adquirido nos dois primeiros capítulos desta interessante viagem.” (cap.III).


Exórdio — Primeira parte da dispositio — ordenação adequada de ideias de um discurso retórico. Do latim exordire (“começar”), consiste na parte introdutória do logos. Rafael Bluteau, no Vocabulário, faz equivaler a exórdio os vocábulos prefação, preâmbulo e prefácio. Compreende o exórdio dois momentos:a obtenção da complacência do público e a apresentação da partitio — plano a seguir. Nele são aplicadas diversas fórmulas de acordo com as características do auditório e com o género discursivo em questão: pode ser simples ou directo se apresenta directamente a matéria a desenvolver; indirecto se o orador recorre a subterfúgios para sugerir assuntos susceptíveis de rejeição; de improviso quando, sem justificação, se torna abrupta a entrada na matéria.

[...]

Na obra de Vieira, o exórdio constitui o espaço eleito para a exposição de assuntos não obrigatoriamente derivados da matéria que preside ao discurso no seu todo. É também na abertura que o autor se projecta e recorre preferencialmente ao equívoco, ao acomodar textos bíblicos tanto à época presente quanto ao seu papel de protagonista: no Sermão de Santo António aos Peixes o vocativo “vós” designa receptores de diferentes universos: os apóstolos (pregadores) de Cristo e os missionários do Maranhão presentes no auditório. O orador valoriza de tal modo a parte introdutória do texto que, em sermões encontrados em borrão, só o exórdio revela um carácter completo e de redacção cuidada.


PeroraçãoDo latim perorātio, peroratiōnis, de perorāre: concluir, arrematar, acabar: finis coronat opus (O fim coroa a obra). Em geral breve, trata-se da parte final do discurso oratório, segundo a doutrina retórica antiga, que se segue ao exórdio, à apresentação e confirmação das provas, e à narração. Compõe-se, em geral, pela recapitulação, a amplificação e a comoção do auditório. A recapitulação traz à memória dos ouvintes os principais argumentos defendidos. A amplificação enfatiza, realça e evidencia uma idéia, intensificando-a. Nesse sentido, convém ao orador engrandecer os argumentos favoráveis à causa e diminuir os contrários por meio de ornamentos e figuras. A comoção se faz com o apelo ético e patético, tendo como fim a captatio benevolentiae dos ouvintes, ou seja, torná-los favoráveis à causa defendida. Nesse sentido, o fim da peroração é o comouēre (comover) e o mouēre (mover), isto é, emocionar e mover o ânimo dos ouvintes à ação. Sendo assim, a peroração, muitas vezes, é o lugar por excelência no qual se permite todo brilho e vivacidade da elocução, sendo conveniente o uso das figuras e tropos. Também é o momentos de despedida do orador, logo, convém que o coroe com efeitos eloqüentes, impressionando o auditório. [...]


Confirmação (confirmatio)Parte do discurso em que se aduzem os argumentos que servem para demonstrar uma proposição. Na retórica clássica latina, Cícero e Quintiliano descreveram com pormenor todas as partes fixas de um discurso, incluindo a confirmatio (exordium > narratio > propositio > divisio > confirmatio > illustratio > confutatio > peroratio). Na sermonística do Padre António Vieira, a forma preferida de confirmação da matéria de um sermão é o exemplo. No Sermão da Sexagésima, dedicado ao tema “o não fazer fruto hoje a palavra de Deus”, afirma Vieira: “A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: Saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o pregador e outra o que prega.” (§IV).


Confutação (confutatio)Na retórica clássica, a apresentação de refutações, objecções e interrogações que o orador dirige ao público. No Sermão da Sexagésima (1655), António Vieira resume o tema do sermão à reflexão sobre o “pouco fruto da palavras de Deus”: “Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do Sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, para que aprendais a ouvir.” (§II). Está lançado o tema, apelando á participação do público. Nas próprias palavras de Vieira, a parte de um sermão que corresponde à confutação é aquela em que o pregador “há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer as dificuldades, há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários” (§VI).