Friday, August 30, 2019

Aula 25 da Quarentena (= 153)


Aula 153 [= 25 da Quarentena] (5/jun [9.ª, 5.ª, 4.ª, 3.ª]) Começo por acrescentar uns comentários a tarefas que devolvi ou que fizeram recentemente (excertos diversos com menção de heterónimos em O Ano da Morte de Ricardo Reis e enquadramento no resto da obra [A]; comentário a poema de Pessoa em torno de Camilo Pessanha [B]; questionário sobre processos fonológicos, texto do cerco de Badajoz, ou Badalhouce, e «O Menino da sua Mãe» [C]).

A — O excerto 2 referia o telegrama que fora afinal o pretexto para Reis atravessar o Atlântico, regressando a Lisboa. Esse telegrama fora-lhe enviado por Álvaro de Campos (reparem no acento — tantos que o puseram mal! — e no «de»), que anunciava duas coisas: a morte de Pessoa; e a sua, de Campos, partida para Glasgow. Podiam ter lembrado que, segundo a carta de Pessoa a Adolfo Casais Monteiro a explicar a génese dos heterónimos, Campos se licenciara em Engenharia Naval naquela cidade escocesa (não haveria outra ligação à cidade); quanto a mim, Saramago foi até pouco imaginativo neste ponto: eu veria Campos a emigrar para cidades mais cosmopolitas ou mais industriais ou a viajar. Por vezes fizeram confusão, pensando que se tratava de carta, o que é natural pois que a vossa geração já não lidou com telegramas. A seguir ponho um exemplo de telegrama com o aspeto que tinham (mas faltam os STOP que substituíam os pontos finais). O telegrama é apropriado a Campos (distância, modernidade, imediatismo). Era importante dizer que se trata do «reencontro» de Reis com Pessoa, logo nos primeiros capítulos do livro. O telegrama que fui buscar à net tem que ver a Sociedade Portuguesa de Escritores e é assinado por Delfim Santos, filósofo.



No excerto 3 referia-se um verso do «Poema em linha reta», de Álvaro de Campos: «eu que tenho sido cómico às criadas de hotel». Veja-se o poema todo, que revela tédio, depressão, irritação, em torno de discussão acerca de ridículo e vileza, e, por isso, não é inadequado a um momento em que Reis parece um pouco ridículo por namoriscar uma Lídia muito mais nova e que, no fundo, o servia). O «Poema em linha reta» não deixa de ter laivos do Campos mais vertiginoso («arre», «porrada», a extensão de alguns dos versos, os paralelismos repetições-enumerações, a apóstrofe «Ó príncipe»). Mas a ironia amarga é mais a do Campos abúlico do que do Campos sensacionista-futurista.



POEMA EM LINHA RETA



Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.



E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.



Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...



Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,



Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?



Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?



Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.



Lembram-se decerto desta versão incluída na telenovela O Clone, mas que omite o verso em causa (provavelmente, «criadas de hotel» não seria descodificado em português do Brasil? será isso? ajudem-me, meus caros alunos brasileiros), que vimos em aula:


O excerto 5 volta a jogar com elementos que só poderiam ser bebidos na carta a Adolfo Casais Monteiro e, mais concretamente, na passagem com a biografia dos heterónimos (a morte, cedo, de Caeiro, em 1915); aproveita-se também o miradouro de Santa Catarina (Adamastor, paisagem avistada até Montijo), o que permitiria situar o passo já nessa segunda parte passada em casa própria. Há ainda referência a filmes da época: além de uma experiência no São Luís — que, já se sabe, fica na rua da PVDE, a António Maria Pereira — de cinema tridimensional, os filmes — que passaram efetivamente em 1936, em Lisboa — O Pão Nosso de Cada Dia, de King Vidor, e o ainda mais célebre Os trinta e nove degraus, de Alfred Hitchcock. Deem uma vista de olhos ao início destes dois:

O Pão Nosso de Cada Dia (só começa cerca dos cinco minutos):


Os Trinta e Nove Degraus


No excerto 7, a menção às notícias da morte de Pessoa plasmadas nos jornais permitia situarmos o passo na parte inicial do romance. Podiam citar a circunstância de Pessoa ser então visto sobretudo como o autor de Mensagem, a única obra em português que publicara (e aliás um ano antes apenas). Há aí ainda uma brincadeira com Ricardo Reis não poder ser citado como falecido também («já cá faltava o erro»).

O excerto 8 foca-se numa obra de escritor-pintor amigo de Fernando Pessoa — Nome de Guerra, de José de Almada Negreiros. Ora, é verdade que este livro de Almada só foi publicado em 1938; portanto nem Reis nem, muito menos, Caeiro seriam «deste mundo quando Almada Negreiros publicar a sua obra».

B — Sobre a correção do comentário ao poema de Pessoa em torno de Pessanha, queria só dizer-lhes que não se pode referir este poeta por «Camilo», porque esse nome, assim sem mais nada, é associado de imediato a Camilo Castelo Branco, autor de Amor de Perdição. Terá de ser «Pessanha», «Camilo Pessanha», «o autor de Clepsidra» (já agora, para Clepsidra). E fica aqui apenas um bom comentário, exemplo de muitos que poderia deixar aqui:

Neste poema de Fernando Pessoa ortónimo, o sujeito poético inveja Pessanha pela forma como escreve utilizando a intuição e não a razão ou a lógica («Ah como eu quereria / ser como aqueles em quem a inspiração é já poesia») e pelo modo como consegue compatibilizar o sentir e o pensar («Como sentias? Por que modo / O que em ti é matéria estranha / Era teu natural, teu todo?»). Fernando Pessoa e, com ele, o sujeito poético consideram que o sentir e o pensar são sentimentos incompatíveis, uma vez que não consegueria sentir sem pensar naquilo que se está a sentir e, consequentemente, deixar de o sentir.

O «eu» do poema também inveja a forma como Pessanha conseguiu mergulhar na introspeção do eu, sem nunca se confrontar com o seu ser plural e por isso não se fragmentar («E a forma toda a alma tem!...»). Para além disso, o sujeito lírico considera que Pessanha, contrariamente à teoria pessoana do fingimento poético, que defende que a poesia deve ser a expressão transfigurada do rasto de uma emoção, escreve sobre o que sente sem ter de dessa emoção se distanciar («E os teus versos são / Como o que passa no sonhar / E que é melhor que uma visão / Sem que haja de que despertar»).

Inês C. (12.º 3.ª)



C — No questionário, a pergunta com mais problemas foi a sobre «lugar» (< localem). Nas estatísticas, vi que os setenta e tal que responderam ora escolheram a apócope de um suposto verbo «lugare» (49%) ora, como era o caso, a dissimilação (outros 49%). Com efeito, aquele /-r/ é para que não haja dois sons iguais /l-/ e /-l/ (o último dissimila-se, isto é, diferencia-se do outro, em /r/). Estava explicado nos slides: localem > locale > local > logal > logar > lugar.



A segunda pergunta com menos respostas acertadas (mas já com 65%, o que é bem diferente) foi a de «Guernica». Sim, foi um episódio da guerra civil de Espanha mas concretizado por alemães (apoiantes das tropas de Franco). Esta localidade basca, bombardeada, ficou famosa também pelo quadro de Picasso. Sobre «Guernica», sugiro estes vídeos:






Para arrumarmos melhor estas matérias acerca da história do português e dos processos fonológicos, pedia-lhes que experimentassem ir resolvendo as seguintes duas fichas do Caderno de atividades. Primeiro, tentem mesmo resolver cada pergunta, respondendo; e vejam depois as soluções que vêm logo a seguir.



Agora, leiam as soluções propostas pelo próprio manual:



A seguir ponho links de quatro aulas que fiz para a Universidade Aberta há muitos anos, no início dos anos noventa. Nessa altura dava aulas na Faculdade de Letras de Lisboa e encomendaram-me estes quatro programas sobre história da língua portuguesa. O vídeo estava nos seus primórdios (as montagens não eram completamente computadorizadas, ainda se trabalhava com VHS e Beta).

Estes programas passavam ao sábado de manhã, na RTP-2, e os alunos da Aberta viam-nos, e espero que não tirassem apontamentos, porque há partes bastante amalucadas. Lembro-me de às noites de sexta-feira estarmos até às seis ou sete da manhã a fechar o programa que era para ser emitido às oito e tal (um pouco como agora estou a tentar acabar esta aula para ficar pronta para daqui a uma hora).

Não percam muito tempo a vê-los mas vale a pena relancearem estes partes, por terem a ver com as matérias que temos estado a dar:

No programa 4, os primeiros minutos referem os textos portugueses mais antigos e decorrem no ambiente da «Notícia de Torto» (ca. 1214), entre Braga e Barcelos. Note-se que na altura ainda não se tinha encontrado a «Notícia de Fiadores» (1175). O locutor vai com uma pressa extraordinária, o que tem uma explicação. Não se montava o filme em função do texto, era o texto que era escrito (por mim) para coincidir com as imagens e o pobre do locutor tinha de ler de modo a não se atrasar relativamente às imagens. Enfim... Deste programa vejam só até ao minuto 5 e pouco:


No programa 2, fala-se dos dialetos portugueses, nos minutos 12,20 a 20 (mas é tudo demasiado denso, académico; não valerá a pena):


No programa 1, aborda-se a mudança linguística e o português no mundo. Talvez seja útil já quase no fim, cerca de 18,40:


No programa 3 há uma parte sobre os cancioneiros medievais que já lhes mostrara em aula — de 7.20 a 16 —, que pode ser útil para rever a lírica trovadoresca (aconselho-a talvez apenas aos que farão exame; revejam esses quase dez minutos, a partir de 7.20, em que fala a professora Elsa Gonçalves):




Prometera pôr nesta aula uma pequena tarefa de oralidade (leitura em voz alta). Lançarão no Classroom duas leituras em voz alta. Prefiro dizer «boas», em vez de «expressivas», porque, quando dizemos «expressivas», parece que pretendemos performances histriónicas, muito dramatizadas, e nem sempre a expressividade adequada é essa.

O ficheiro que carregarão no Classroom será áudio apenas e deverá reunir a leitura do(s) texto(s) de Mensagem que estava previsto cada um ir recitar (lê-lo-ão apenas, mas usarão o texto, ou textos, que lhes estavam atribuídos quando era para ser recitação; vejam aqui) e a leitura de um texto do ortónimo publicado em vida, com entre quinze a, no máximo, uns quarenta versos, que escolherão aqui (cuidado que alguns textos iniciais são muito longos e estranhos; a partir da página 79 é que há mais textos que lhes podem interessar).

Usem só um ficheiro, onde ficará tanto o poema de Mensagem como de Dispersos (o nome do ficheiro poderá conter a página da edição de Dispersos onde começa o poema que lerão: «página #»). Escolham bem o poema — não são assim tantos textos, porque se trata apenas do que Fernando Pessoa publicou ainda em vida — e ensaiem bastante a leitura antes de gravarem. O poema, ou poemas, de Mensagem leiam-no(s) por esta edição ou por esta

Só hoje à tarde ou amanhã abrirei no Classroom o espaço para esta tarefa. Devem, portanto, ser chamados a ela hoje ou amanhã.





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