Jardins vazios de novembro (Luísa Morgado)
Jardins vazios de novembro
“Cada baralho tem cinquenta e duas
cartas. Quatro naipes – espadas, copas, paus e ouros – com treze cartas, três
delas figuras”, explicava ele.
As cartas deslizavam entre os dedos
ossudos, em movimentos complexos que Fernando fazia parecer mais simples do que
eram. Procurava, constantemente, os olhos da sua mãe, garantindo que ela o
ouvia, e continuava a explicação sobre como jogar às cartas.
Não procurava palavras. Já desistira das
palavras desde a juventude e aceitara o silêncio de Teresa. Rendera-se ao
silêncio vago, permanente – embora mantivesse a esperança de que fosse
temporário – e doloroso. Já não procurava compreensão ou amor. Limitava-se a
preencher o tempo de inércia da mãe, que outrora o via realmente, com atividades
fúteis, dedicadas a colmatar (de uma forma egoísta) o vazio de Fernando.
Estar ali pertubava-o a um ponto de, no
final da visita de três horas, sair pela grande porta principal do hospital
psiquiátrico morto: sem respirar, sem sentir, sem pensar. Invadido por memórias
como peças de puzzle que vem sem a solução na caixa.
Teresa, com um gesto violento, empurrou
as cartas na mesa para o chão; levantou-se da cadeira de plástico e dirigiu-se
para o seu quarto. Ele suspirou (nunca de alívio, sempre de dor) e apanhou as
cartas. Faltava uma debaixo da cadeira antes ocupada, a que só suportava agora um
velho fantasma, que nunca iria desaparecer da mente de Fernando. Um fantasma
palpável – mesmo que mais ninguém o visse ou sentisse – com extensão
mensurável. Um fantasma real.
A carta era um jóquer. Enfiou o baralho
no bolso do casaco de poliéster e saiu para as ruas de Lisboa. Morto, mais uma
vez.
O céu nublado prenunciava
chuva para a tarde. Apressou-se a percorrer os jardins vazios de novembro,
parando logo a seguir para observar uma mulher, nos seus quase trinta anos,
feia mas com uma expressão marcadamente feliz, enquanto empurrava o carrinho do
bebé.
Hoje, é a ti que eu escrevo, mãe. Ontem,
foste tu quem me empurrou pelos jardins vazios de novembro. És mais bonita,
sim, e tão feliz quanto aquela mulher.
Os anos passam e eu cresço. Talvez cada
vez menos a teu lado, mas sempre a teu lado. A Laura nasce logo a seguir e
começa a surgir uma sombra no teu rosto. Mas de onde vem essa sombra, mãe? Quem
te faz chorar sozinha, na casa-de-banho, com a porta trancada? As toalhas nunca
foram o suficiente para abafar a tua angústia e eu sempre te ouvi. Quando sais,
eu corro até às toalhas, preparando uma caça às respostas que só obtive anos
mais tarde.
A sombra era uma nódoa negra. A nódoa
negra multiplicou-se por todo o teu corpo e, enquanto lá fora sorrias, cá
dentro receavas. Sei que vivemos numa casa apertada, suja, com fissuras no teto
e as paredes com falta de azulejos. Sei que, por mais que a tentes limpar,
arrumar, o teu marido nunca irá ficar satisfeito.
Então perdes-te em ti mesma. Esqueces-te
de nós e vagueias pelos caminhos do pensamento que só tu conheces: uma estrada
plana, sem curvas, porque tens medo do que possa irromper dos cantos escondidos
do teu pensamento e da nossa casa.
“Dá-me um beijo” e o teu âmago
contorce-se numa disputa entre o querer e o poder. A indiferença dele, a sua
mesquinhez e a necessidade de te pisar para se sentir melhor, tudo isso,
magoa-me a mim também.
Tento várias vezes que ele leia o pedido,
a súplica, para que tudo mude, nos meus olhos, porque ficar a assistir era tudo
o que eu e a Laura podíamos fazer: ambos respeitávamos as fronteiras tácitas da
nossa idade. Mas tu queres defender-te sozinha.
Eu já me encontro no 10º ano, e tu, no trabalho
em que te refugias há, pelo menos, doze anos. E hoje era só mais um dia como os
outros: há alturas em que a tensão se mascara de sorrisos e as horas passam com
apreensão e desassossego subjacentes.
Depois de ambos chegarmos a casa, ele
explode porque tudo está mal e tu estás mal e eu e a Laura estamos mal e só ele
é que está bem. Os estilhaços da sua cólera atingem-te e tu usas os teus braços
para te resguardar. Mas não foges, somente cedes à sua força e rezas, no teu
íntimo, para que desta vez seja rápido.
Desculpa mãe, mas hoje tenho de quebrar
as fronteiras que estabeleceras. Então ponho-me à tua frente e tomo eu conta de
ti, pela primeira vez em quinze anos, e, também pela primeira vez, a fúria dele
dirige-se a mim.
A partir dessa noite, nunca mais falaste.
Nem comigo, nem com ele, nem com a Laura. Agora fitas o chão assim que ouves os
murmúrios de dor que deixo escapar ao final do dia.
Diz-me, mãe, porque escolhes deixar de
viver? Porque escolhes o fingimento sem esperança, em vez da realidade da luta?
Porque desistes de nós?
Escolhes a demência e esqueces tudo
aquilo que aprendeste e eu escolho, três anos depois, sair de casa e levar a
Laura comigo. Ele, por sua vez, escolhe pôr-te num lugar, longe do peso da
tarefa de lidar com o teu silêncio ensurdecedor.
Lá, refugias-te no nada e deixas os dias
sumirem-se como fumo. Juntas-te a mais cem caras inexpressivas, alienadas da
verdade. Uma viagem de árvores amarelas, cavalos voadores, laços nas paredes e
um relógio parado, tudo no pequeno comprimido branco, às sete da tarde e
ninguém tem nome, porque tudo aquilo que é não o é.
Mãe, as árvores amarelas são
tuas, e aquelas além, que eu vejo neste jardim vazio de novembro, são minhas.
Decidiste o novo significado das coisas, perante a realidade em que te
encontravas.
Fernando desviou a atenção da mãe com o
carrinho e continuou a andar. Já perto de sua casa, as nuvens descarregaram
toda a sua saturação. Sentiu a força crescente dos pingos de chuva no rosto e, numa
ação simples, entregou-se à genuinidade do céu sobre si.
“Cada baralho tem pelo menos cinquenta e
duas cartas. Por vezes, o jóquer também entra em jogo, mudando de valor
consoante a combinação de cartas na mão do jogador.”
Hithu [= Luísa Morgado]
Este conto terá sido publicado entretanto na
revista Correntes d’Escritas.
<< Home