Sonetos de Fernando Pessoa usados nas recitações e em leituras expressivas
Sonetos de Fernando Pessoa
Para juntar vinte oito
sonetos de Pessoa socorri-me de Carlos Pittella, Pequenos Infinitos em
Pessoa. Uma aventura filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa
(Rio de Janeiro, PUC, 2012), que aliás reuniu umas três centenas de sonetos,
mas contando com todos os Pessoas e incluindo textos em inglês e em francês.
Tive de selecionar os poemas sem lacunas ou sem dificuldades insuperadas de
decifração; também quis escolher sonetos decassilábicos, para que todos
ficassem em igualdade de circunstâncias; e evitei os textos demasiado
esotéricos.
Usei, em geral, as edições
da INCM. Quando os sonetos tinham título, omiti-o (para não criar um elemento
dissonante na disposição gráfica, embora, é claro, seja decisão erradíssima do
ponto de vista da interpretação do texto). Incluí sonetos que fazem parte de
séries mas que aqui surgirão autónomos (outro risco se o objetivo fosse
interpretar devidamente cada texto). A única identificação, além do número, é a
de «Fernando Pessoa» (para os textos ortónimos) ou «Álvaro de Campos» (para os
poucos sonetos de Álvaro de Campos; Caeiro e Reis não assinam sonetos). A ordem
foi a que calhou.
[1] Álvaro de Campos
Meu coração é um
almirante louco
Que abandonou a profissão do mar
E que a vai relembrando pouco a pouco
Em casa a passear a passear...
No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, só de o imaginar)
O mar abandonado fica em foco
Nos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
Mas — esta é boa! — era do coração
Que eu falava... e onde diabo estou eu agora
Com almirante em vez de sensação?...
[2] Álvaro de Campos
Quando olho para mim
não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.
Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei
Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante às sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
[3] Álvaro de Campos
A praça da Figueira
de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.
Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui... Sei eu
Porque o amo? Não importa nada. Adiante...
Isto de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar p’ra elas.
Nenhuma d'elas em mim é serena...
De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros, ou as que não há.
[4] Fernando Pessoa
Todo o passado me
parece incrível.
Quem é a mim quem foi o que eu já fui?
Rio inconstante, sob meus olhos flui
Minha vida real e impossível.
Através de uma névoa eis-me insensível
Ao que vivi; e que já não se inclui
No que creio que sou, e sinto; e obstrui
Ver-me ver quem fui eu e hoje é invisível.
Cismo no que já fiz e me parece
Que incluo quem o fez mas não o sou.
Através da minha alma transparece
O que por mim viveu e se passou...
E um assombro de certo estremece
Em morto ser quem não ressuscitou.
[5] Álvaro de Campos
Olha, Daisy, quando
eu morrer tu hás de
Dizer aos meus amigos aí de Londres,
Embora não o sintas, que tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de
Londres p’ra York, onde nasceste (dizes —
Que eu nada que tu digas acredito...)
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes
(Embora não o saibas) que morri.
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará. Depois vai dar
A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!...
[6] Álvaro de Campos
Sou vil, sou reles,
como toda a gente,
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.
É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.
Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.
Justificar-me? Sou quem todos são...
Modificar-me? Para meu igual?...
— Acaba lá com isso, ó coração!
[7] Álvaro de Campos
Deuses, forças, almas
de ciência ou fé,
Eh! Tanta explicação que nada explica!
Estou sentado no cais, numa barrica,
E não compreendo mais do que de pé.
Porque o havia de compreender?
Pois sim, mas também porque o não havia?
Água do rio, correndo suja e fria,
Eu passo como tu, sem mais valer...
Ó universo, novelo emaranhado,
Que paciência de dedos de quem pensa
Em outra coisa te põe separado?
Deixa de ser novelo o que nos fica...
A que brincar? Ao amor, à indiferença?
Por mim, só me levanto da barrica.
[8] Álvaro de Campos
Corre, raio de rio, e
leva ao mar
A minha indiferença subjetiva!
Qual «leva ao mar»! Tua presença esquiva
Que tem comigo e com o meu pensar?
Lesma de sorte! Vivo a cavalgar
A sombra de um jumento. A vida viva
Vive a dar nomes ao que não se activa,
Morre a pôr etiquetas ao grande ar...
Escancarado Furness, mais três dias
Te aturarei, pobre engenheiro preso
A sucessibilíssimas vistorias...
Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo
(E tu irás do mesmo modo que ias),
Qualquer, na gare, de cigarro aceso...
[9] Fernando Pessoa
Eu olho com saudade
esse futuro
Em que serei mais novo que depois,
E essa saudade, com que me sinto dois,
Cerca-me como um mar ou como um muro.
Não descreio, nem creio; mas ignoro.
Estou posto onde se cruzam as estradas,
Multiplicando definidos nadas,
E no meio do jogo amuo e choro.
O presságio roeu os meus prenúncios.
Velei a esfinge com serapilheiras.
E os jardins dispostos em quincúncios
Dão sobre esteiras de mar morto e vago,
E um vapor de corda, sem bandeiras,
Para no tanque, que nos finge um lago.
[10] Fernando Pessoa
Não há verdade
inteiramente falsa
Nem mentira de todo verdadeira.
O rio leva, na espumelhada esteira
Tudo o que esterilmente me realça...
Prazeres, talento, a perfeição consciente...
O tipo físico distante dos outros,
(E se eu deixar cair uma semente
No rio, os resultados serão neutros)...
Maravilha fatal de toda a verdade...
O homem que se interroga, e age por fora
E só regressa a casa se não piora...
No entanto, um bocado de saudade,
Uma maneira de um apego à hora
E uma reminiscência sem verdade
[11] Fernando Pessoa
Quem me roubou a
minha dor antiga,
E só a vida me deixou por dor?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser
periga,
Me deixou só no fogo e no torpor?
Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor...
Quem me dispôs para o que não pudesse?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do real que ninguém tece?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
"Onde a minha saudade a cor se trava".
[12] Fernando Pessoa
Quem me roubou quem
nunca fui e a vida?
Quem, de dentro de mim, é que a roubou?
Quem ao ser que conheço por quem sou
Me trouxe, em estratagemas de descida?
Onde me encontro nada me convida.
Onde me eu trouxe nada me chamou.
Desperto: este lugar em que me estou,
Se é abismo ou cume, onde estão vinda ou ida?
Quem, guiando por mim meus passos dados,
Entre sombras e muros que me deu
À súbita visão dos mudos fados?
Quem sou, que assim me caminhei sem eu,
Quem são, que assim me deram aos bocados
À reunião em que acordo e não sou meu?
[13] Fernando Pessoa
Depois que o som da
terra, que é não tê-lo,
Passou, nuvem obscura, sobre o vale
E uma brisa afastando meu cabelo
Me diz que fale, ou me diz que cale,
A nova claridade veio, e o sol
Depois, ele mesmo, e tudo era verdade,
Mas quem me deu sentir e a sua prole?
Quem me vendeu nas hastas da vontade?
Nada. Uma nova obliquação da luz,
Interregno factício onde a erva esfria.
E o pensamento inútil se conduz
Até saber que nada vale ou pesa.
E não sei se isto me ensimesma ou alheia,
Nem sei se é alegria ou se é tristeza.
[14] Fernando Pessoa
Por mais que tente,
não me desembrulho.
Há qualquer coisa de confuso em mim.
Lá pela confusão não dar barulho,
Não quer dizer que lhe não seja afim.
Na noite informe ao luar brilha o jardim.
O mar ao longe dorme o seu marulho.
Que quieto é tudo! Como até o orgulho
De poder ser alguém aqui tem fim!
Como nesta noturna quietação
Tudo se acalma e até se desconhece
No fundo ignoto do ermo coração.
Ah, com que quantidade tudo esquece!
Como tudo é silêncio e confusão
Onde só o som das árvores estremece!
[15] Fernando Pessoa
A criança que fui
chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
[16] Fernando Pessoa
Sossego enfim. Meu
coração deserto
Nada espera da inútil caravana.
Pouco a pouco meu espírito se irmana
Com ter perdido o próprio sonho incerto.
E sempre além de mim o indescoberto
Porto ao luar com que se o sonho engana.
De impercetível se descobre, plana
Parece a vida a este desacerto.
Estagno a lagos de algas por achar,
Sinto vazio o barco das amadas.
A noite despe não haver o luar
E como um filtro de poses encantadas
Tremem os rios, gelam as estradas
No absurdo vácuo de eu não ter que amar.
[17] Fernando Pessoa
Deixei de ser aquele
que esperava,
Isto é, deixei de ser quem nunca fui...
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em ser conjunto, dura e flui.
A seta treme, pois que, na ampla aljava,
O presente ao futuro cria e inclui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu rastro obstrui.
Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.
Nada me explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.
[18]
Fernando Pessoa
Meu coração é um pórtico partido
Dando
excessivamente sobre o mar
Vejo
em minha alma as velas vãs passar
E
cada vela passa num sentido.
Um
soslaio de sombras e ruído
Na
transparente solidão do ar
Evoca
estrelas sobre a noite estar
Em
afastados céus o pórtico ido...
E
em palmares de Antilhas entrevistas
Através
de, com mãos eis apartados
Os
sonhos, cortinados de ametistas,
Imperfeito
o sabor de compensando
O
grande espaço entre os troféus alçados
Ao
centro do triunfo em ruído e bando...
[19] Fernando Pessoa
Dia a dia mudamos
para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
[20] Fernando Pessoa
Qualquer coisa de
obscuro permanece
No centro do meu ser. Se me conheço,
E até onde, por fim mal, tropeço
No que de mim em mim de si se esquece.
Aranha absurda que uma teia tece
Feita de solidão e de começo
Fruste, meu ser anónimo confesso
Próprio e em mim mesmo a externa treva desce.
Mas, vinda dos vestígios da distância
Ninguém trouxe ao meu pálio por ter gente
Sob ele, um rasgo de saudade ou ânsia.
Remiu-se o pecador impenitente
À sombra e cisma. Teve a eterna infância,
Em que comigo forma um mesmo ente.
[21] Fernando Pessoa
Sonhei, confuso, e o
sono foi disperso,
Mas, quando despertei da confusão,
Vi que esta vida aqui e este universo
Não são mais claros do que os sonhos são.
Obscura luz paira onde estou converso
A esta realidade da ilusão.
Se fecho os olhos, sou de novo imerso
Naquelas sombras que há na escuridão.
Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,
É a mesma mistura de entresseres
Ou na noite, ou ao dia transferida.
Nada é real, nada em seus vãos moveres
Pertence a uma forma definida,
Rastro visto de coisa só ouvida.
[22] Fernando Pessoa
Se acaso, alheado até
do que sonhei,
Me encontro neste mundo a sós comigo,
E, fiel ao que eu mesmo desprezei,
Meus passos falsos verdadeiros sigo,
Desperta em mim, contrário ao que esperei
Desta espécie de fuga, ou só abrigo,
Não o ajustar-me com a externa lei,
Mas o essa lei tomar como castigo.
Então, liberto já pela esperança
Deste mundo de formas e mudança,
Um pouco atinjo pela dor e a fé
Outro mundo, em que sonho e vida são
Num nada nulo, igual em escuridão,
E ao fim de tudo surge o Sol do que é.
[23] Fernando Pessoa
Sonhei — quem não
sonhara? — porque a tarde
Baixou o azul do céu e já se via
Uma estrela pequena, sem alarde,
Ainda em dia a desmentir o dia.
Tudo quanto mal fiz ou não queria
Numa fogueira que não vejo arde,
Meu coração, que espera e não confia,
É como um poço aonde a água tarde.
Sonhei. Pois não havia de sonhar
Vendo ante mim este céu brando e o mar,
Ao longe um lago, parecer parado...
Sonhei... Não sei de quê, mas foi de um bem
Que não sei se era algum ou se era alguém
E que só conheci como ignorado.
[24] Álvaro de Campos
Há quanto tempo não
escrevo um soneto
Mas não importa: escrevo este agora.
Sonetos são infância e, nesta hora.
A minha infância é só um ponto preto
Que num imóbil e fatal trajeto
Do comboio que sou me deita fora
E o soneto é como alguém que mora
Há dois dias em tudo que projeto.
Graças a Deus, ainda sei que há
Catorze linhas a cumprir iguais
Para a gente saber onde é que está...
Mas onde a gente está, ou eu, não sei...
Não quero saber mais de nada mais
E berdamerda para o que saberei.
[25] Fernando Pessoa
A minha vida é um barco abandonado,
Infiel,
no ermo porto, ao seu destino.
Porque
não ergue ferro e segue o atino
De
navegar, casado com seu fado?
Ah,
falta quem o lance ao mar, e alado
Torne
seu vulto em velas, peregrino
Frescor
de afastamento, no divino
Amplexo
da manhã, puro e salgado.
Morto
corpo da ação, sem a vontade
Que
o viva, vulto estéril do viver,
Boiando
à tona inútil da saudade -
Os
limos esverdeiam tua quilha,
O
vento embala-te sem te mover,
E
é para além do mar a ansiada Ilha.
[26] Fernando Pessoa
No alto da tua
sombra, a prumo sobre
A inconstância irreal de vida e dias,
Achei-me só e vi que as agonias
Da vida, o tédio as finda e a morte as cobre.
Ali, no alto de ser, sentir é nobre,
Despido de ilusões e de ironias.
Não sinto as mãos unidas, que estão frias,
Não sei de mim, o que fui era pobre.
Mas mesmo nessa altura de mistério
E abismo de ascensão, não encontrei
Paragem, conclusão ou refrigério.
Deixei atrás o acaso de viver,
O ser sempre outrem, a escondida lei,
Caos de existirmos, névoa de o saber.
[27] Fernando Pessoa
Súbita mão de algum
fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.
Mas um terror antigo, que insepulto
Trago no coração, como de um trono
Desce e se afirma meu senhor e dono
Sem ordem, sem meneio e sem insulto.
E eu sinto a minha vida de repente
Presa por uma corda de Inconsciente
A qualquer mão noturna que me guia.
Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria.
[28] Fernando Pessoa
O silêncio é teu
gémeo no Infinito.
Quem te conhece, sabe não buscar.
Morte visível, vens dessedentar
O vago mundo, o mundo estreito e aflito.
Se os teus abismos constelados fito,
Não sei quem sou ou qual o fim a dar
A tanta dor, a tanta ânsia par
Do sonho, e a tanto incerto em que medito.
Que vislumbre escondido de melhores
Dias ou horas no teu campo cabe?
Véu nupcial do fim de fins e dores.
Nem sei a angústia que vens consolar-me.
Deixa que eu durma, deixa que eu acabe
E que a luz nunca venha despertar-me!
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