Aula 64
Aula 64 (7 [1.ª], 8 [3.ª], 9/jan [4.ª])
Recantiga
(Miguel Araújo)
E
era as folhas espalhadas, muito recalcadas no correr do ano
A recolherem, uma a uma,
por entre a caruma de volta ao ramo
E era à noite a trovoada
que encheu na enxurrada aquela poça morta.
De repente, em
ricochete, a refazer-se em sete nuvens gota a gota
E era, de repente, o
rio, num só rodopio, a subir o monte
E a correr contra a
corrente assim de trás para a frente, a voltar à fonte
Um monte de cartas
espalhadas desmoronando-se todo em castelo
E era a linha duma vida
sendo recolhida de volta ao novelo
E era aquelas coisas
tontas, as afrontas que eu digo e [de] que me arrependo
A voltarem para mim,
como se assim tivessem remendo
E era eu um passarinho
caído no ninho à espera do fim
E eras tu, até que
enfim, a voltar para mim.
Tendo em conta a
letra da canção, assinala as características que a aproximariam dos dois
géneros principais da lírica trovadoresca:
características de «Recantiga» que a aproximam das |
|
cantigas de amigo |
cantigas de amor |
contexto popular,
campestre |
contexto nobre,
palaciano |
presença
de natureza (por vezes, até como confidente) |
ausência de cenário
descritível |
namoro, amor visto
como concretizável |
discurso
sobre amor, que é meramente idealizado |
sujeito lírico
feminino |
sujeito lírico
masculino |
tu acessível |
senhor[a] distante |
No
cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Vaticana esta cantiga de amigo de D. Dinis
foi copiada sem uma das estrofes. Porém, se nos guiarmos pelas regras da
paralelística, conseguimos reconstituir o terceto em falta. Preenche esses três
versos:
Bom dia vi amigo,
pois seu mandad’hei migo,
louçana.
Bom
dia vi amado,
pois
mig’hei seu mandado,
louçana.
Pois
seu mandad’hei migo,
rog’eu
a Deus e digo
louçana.
Pois
migo hei seu mandado,
rog’eu
a Deus de grado,
louçana.
Rog’eu
a Deus e digo
por
aquel meu amigo,
louçana.
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________________
_____________
Por
aquel meu amigo,
que
o veja comigo,
louçana.
Por
aquel namorado,
que
fosse já chegado,
louçana.
mandado = notícia | migo
= comigo | rogo = peço | louçana = bonita | de grado = de
bom grado
Sobre
cantigas de amigo,
vê pp. 374-377. Nas pp. 376-377, tens, analisada, uma cantiga de amigo que, em
termos de paralelística, é diferente das que vimos em aula. Quanto ao «enredo»,
assenta «num encontro falhado: a moça foi rezar a uma ermida, não por devoção,
[...] mas para se encontrar com o seu amigo; como ele não apareceu, considera
justo fazê-lo sofrer e recusar-lhe doravante qualquer recompensa».
O
site Cantigas Medievais Galego-Portuguesas
(https://cantigas.fcsh.unl.pt/), de onde tirei o resumo acima, é muito útil
para todas as revisões que queiras fazer em torno de lírica trovadoresca. A sua consulta pode
ficar como tepecê.
Transcrevo
ainda outra cantiga de amigo de D.
Dinis, desta vez só com quatro estrofes. O assunto é «a
donzela anuncia alegremente à mãe que vai ter com o seu amigo, que lhe marcou
um encontro». Imagina que teria mais outras quatro estrofes. Escreve esses
tercetos segundo o que a paralelística estipula e criando tu o resto.
Pera
veer meu amigo,
que talhou
preito comigo,
alá vou,
madre.
Pera
veer meu amado,
que mig’há
preito talhado,
alá
vou, madre.
Que
talhou preito comigo;
é
por esto que vos digo:
alá
vou, madre.
Que
mig’há preito talhado;
é
por esto que vos falo:
alá
vou, madre.
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talhar
preito = marcar encontro | alá = lá, ali | migo
= comigo | madre = mãe | esto = isto, isso
No
exame nacional de 2020
(2.ª fase), a parte B
do grupo I (itens 4-6) recorria a uma cantiga de amigo. (A parte A
assentava em textos de Saramago; a parte C
era um pedido de exposição sobre a representação da amada na lírica de Camões.)
Parte B
Leia o poema de Martim
Codax e as notas.
Mia irmana fremosa,
treides1 comigo
a la igreja de Vig’2,
u3 é o mar salido4:
E miraremos las ondas!
Mia irmana fremosa,
treides de grado5
5 a
la igreja de Vig’, u é o mar levado6:
E miraremos las ondas!
A la igreja de Vig’, u é o
mar salido,
e verra i7, mia
madre, o meu amigo:
E miraremos las ondas!
10 A
la igreja de Vig’, u é o mar levado,
e verra i, mia madre, o
meu amado:
E miraremos las ondas!
A Lírica Galego-Portuguesa, edição de Elsa Gonçalves
e Maria Ana Ramos, 2.ª ed., Lisboa, Comunicação, 1985, p. 262.
Notas: 1 treides
– vinde. 2 Vig’ – Vigo. 3
u – onde. 4 salido – agitado. 5
de grado – de vontade; com gosto. 6 levado –
agitado. 7 verra i – virá aí.
4. Refira dois dos
sentimentos que motivam o sujeito de enunciação desta cantiga a ir a Vigo.
Apresente, para cada um desses sentimentos, uma transcrição pertinente.
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[4.
O sujeito poético, uma rapariga, revela amor pelo seu namorado, o que fica
patente no uso das expressões «meu
amigo»
(v. 8) ou «meu
amado»
(v. 11). O eu da cantiga tem a esperança de ver aquele por quem está apaixonada, como
antecipa no refrão («E
miraremos las ondas!», vv. 3, 6, 9, 12)
e no verso 8 («e
verra i, mia madre, o meu amigo»).]
5. Explicite o papel da
natureza nesta cantiga, bem como o valor simbólico que assume.
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[5.
Se o espaço que a donzela anuncia como destino é a igreja, a verdade é que o
mar ou a ria de Vigo parecem ser o verdadeiro cenário para o encontro com o amigo, constituindo a
natureza a testemunha do desejado enlace amoroso. O mar agitado («salido»,
«levado») ou, metonimicamente, as suas ondas refletem, simbolicamente, o estado
de alma da donzela, que espera com ansiedade reunir-se ao namorado.]
6. Complete as afirmações
seguintes, selecionando a opção adequada a cada espaço. Na folha de respostas,
registe apenas as letras — a), b) e c) — e, para cada uma
delas, o número que corresponde à opção selecionada em cada um dos casos.
Do ponto de vista formal,
esta cantiga classifica-se como paralelística. Uma evidência dessa estrutura
formal é ______ a).
Quanto ao desenvolvimento temático, é de
assinalar, por um lado, o facto de, em todas as estrofes, o sujeito poético se
dirigir a um interlocutor; a partir da terceira estrofe, esse interlocutor
passa a ser ______ b). Por outro lado, constata-se que, nas duas últimas
estrofes, o sentido do verso «E miraremos las ondas!» evolui, podendo, mais
claramente, ser associado _______ c).
a) |
b) |
c) |
1. o facto de todos os dísticos terem o mesmo
número de sílabas métricas |
1. o mar revolto |
1. à ideia de proximidade entre a donzela e o seu
amado |
2. a existência de quatro estrofes, todas elas
constituídas por tercetos |
2. a mãe |
2. à permanente vigilância que familiares exercem
sobre a donzela |
3. a repetição dos versos da primeira estrofe na
segunda estrofe e da terceira estrofe na quarta estrofe, com variação das
palavras em posição de rima |
3. a irmã |
3. à preocupação da donzela com o estado do mar |
[6. a) 3; b) 2; c) 1.]
TPC — Consulta o site Cantigas Medievais Galego-Portuguesas. Além disso, não esqueças a leitura, já pedida,
do conto «Famílias desavindas», de Mário de Carvalho, nas pp. 163-165 do
manual.
Para a aula de quinta-feira, dia
16-1-2025, traz o livro ou livros que tens lido conforme
combinado. Ser-te-á pedido, então, que referencies o que leste até agora, bem
como alguma aplicação (exercício, resposta, etc.) em volta do livro, ou livros,
em causa.
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