Saturday, September 07, 2024

Aula 64

Aula 64 (7 [1.ª], 8 [3.ª], 9/jan [4.ª])

Recantiga (Miguel Araújo)

E era as folhas espalhadas, muito recalcadas no correr do ano

A recolherem, uma a uma, por entre a caruma de volta ao ramo

 

E era à noite a trovoada que encheu na enxurrada aquela poça morta.

De repente, em ricochete, a refazer-se em sete nuvens gota a gota

 

E era, de repente, o rio, num só rodopio, a subir o monte

E a correr contra a corrente assim de trás para a frente, a voltar à fonte

 

Um monte de cartas espalhadas desmoronando-se todo em castelo

E era a linha duma vida sendo recolhida de volta ao novelo

 

E era aquelas coisas tontas, as afrontas que eu digo e [de] que me arrependo

A voltarem para mim, como se assim tivessem remendo

 

E era eu um passarinho caído no ninho à espera do fim

E eras tu, até que enfim, a voltar para mim.

Tendo em conta a letra da canção, assinala as características que a aproximariam dos dois géneros principais da lírica trovadoresca:

características de «Recantiga» que a aproximam das

cantigas de amigo

cantigas de amor

contexto popular, campestre

contexto nobre, palaciano

presença de natureza (por vezes, até como confidente)

ausência de cenário descritível

namoro, amor visto como concretizável

discurso sobre amor, que é meramente idealizado

sujeito lírico feminino

sujeito lírico masculino

tu acessível

senhor[a] distante

No cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Vaticana esta cantiga de amigo de D. Dinis foi copiada sem uma das estrofes. Porém, se nos guiarmos pelas regras da paralelística, conseguimos reconstituir o terceto em falta. Preenche esses três versos:


 

Bom dia vi amigo,

pois seu mandad’hei migo,

       louçana.

 

Bom dia vi amado,

pois mig’hei seu mandado,

       louçana.

 

Pois seu mandad’hei migo,

rog’eu a Deus e digo

       louçana.

 

Pois migo hei seu mandado,

rog’eu a Deus de grado,

       louçana.

 

Rog’eu a Deus e digo

por aquel meu amigo,

       louçana.

 

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________________

       _____________

 

Por aquel meu amigo,

que o veja comigo,

       louçana.

 

Por aquel namorado,

que fosse já chegado,

       louçana.

mandado = notícia | migo = comigo | rogo = peço | louçana = bonita | de grado = de bom grado

Sobre cantigas de amigo, vê pp. 374-377. Nas pp. 376-377, tens, analisada, uma cantiga de amigo que, em termos de paralelística, é diferente das que vimos em aula. Quanto ao «enredo», assenta «num encontro falhado: a moça foi rezar a uma ermida, não por devoção, [...] mas para se encontrar com o seu amigo; como ele não apareceu, considera justo fazê-lo sofrer e recusar-lhe doravante qualquer recompensa».

O site Cantigas Medievais Galego-Portuguesas (https://cantigas.fcsh.unl.pt/), de onde tirei o resumo acima, é muito útil para todas as revisões que queiras fazer em torno de lírica trovadoresca. A sua consulta pode ficar como tepecê.

Transcrevo ainda outra cantiga de amigo de D. Dinis, desta vez só com quatro estrofes. O assunto é «a donzela anuncia alegremente à mãe que vai ter com o seu amigo, que lhe marcou um encontro». Imagina que teria mais outras quatro estrofes. Escreve esses tercetos segundo o que a paralelística estipula e criando tu o resto.

 

Pera veer meu amigo,

que talhou preito comigo,

       alá vou, madre.

 

Pera veer meu amado,

que mig’há preito talhado,

       alá vou, madre.

 

Que talhou preito comigo;

é por esto que vos digo:

       alá vou, madre.

 

Que mig’há preito talhado;

é por esto que vos falo:

       alá vou, madre.

 

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talhar preito = marcar encontro | alá = lá, ali | migo = comigo | madre = mãe | esto = isto, isso

No exame nacional de 2020 (2.ª fase), a parte B do grupo I (itens 4-6) recorria a uma cantiga de amigo. (A parte A assentava em textos de Saramago; a parte C era um pedido de exposição sobre a representação da amada na lírica de Camões.)

Parte B

Leia o poema de Martim Codax e as notas.

 

Mia irmana fremosa, treides1 comigo

a la igreja de Vig’2, u3 é o mar salido4:

               E miraremos las ondas!

 

Mia irmana fremosa, treides de grado5

5             a la igreja de Vig’, u é o mar levado6:

               E miraremos las ondas!

 

A la igreja de Vig’, u é o mar salido,

e verra i7, mia madre, o meu amigo:

               E miraremos las ondas!

 

10           A la igreja de Vig’, u é o mar levado,

e verra i, mia madre, o meu amado:

               E miraremos las ondas!

A Lírica Galego-Portuguesa, edição de Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, 2.ª ed., Lisboa, Comunicação, 1985, p. 262.

Notas: 1 treides – vinde. 2 Vig’ – Vigo. 3 u – onde. 4 salido – agitado. 5 de grado – de vontade; com gosto. 6 levado – agitado. 7 verra i – virá aí.

4. Refira dois dos sentimentos que motivam o sujeito de enunciação desta cantiga a ir a Vigo. Apresente, para cada um desses sentimentos, uma transcrição pertinente.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

[4. O sujeito poético, uma rapariga, revela amor pelo seu namorado, o que fica patente no uso das expressões «meu amigo» (v. 8) ou «meu amado» (v. 11). O eu da cantiga tem a esperança de ver aquele por quem está apaixonada, como antecipa no refrão («E miraremos las ondas!», vv. 3, 6, 9, 12) e no verso 8 («e verra i, mia madre, o meu amigo»).]

5. Explicite o papel da natureza nesta cantiga, bem como o valor simbólico que assume.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

[5. Se o espaço que a donzela anuncia como destino é a igreja, a verdade é que o mar ou a ria de Vigo parecem ser o verdadeiro cenário para o encontro com o amigo, constituindo a natureza a testemunha do desejado enlace amoroso. O mar agitado («salido», «levado») ou, metonimicamente, as suas ondas refletem, simbolicamente, o estado de alma da donzela, que espera com ansiedade reunir-se ao namorado.]

6. Complete as afirmações seguintes, selecionando a opção adequada a cada espaço. Na folha de respostas, registe apenas as letras — a), b) e c) — e, para cada uma delas, o número que corresponde à opção selecionada em cada um dos casos.

Do ponto de vista formal, esta cantiga classifica-se como paralelística. Uma evidência dessa estrutura formal é ______ a).

Quanto ao desenvolvimento temático, é de assinalar, por um lado, o facto de, em todas as estrofes, o sujeito poético se dirigir a um interlocutor; a partir da terceira estrofe, esse interlocutor passa a ser ______ b). Por outro lado, constata-se que, nas duas últimas estrofes, o sentido do verso «E miraremos las ondas!» evolui, podendo, mais claramente, ser associado _______ c).

a)

b)

c)

1. o facto de todos os dísticos terem o mesmo número de sílabas métricas

1. o mar revolto

1. à ideia de proximidade entre a donzela e o seu amado

2. a existência de quatro estrofes, todas elas constituídas por tercetos

2. a mãe

2. à permanente vigilância que familiares exercem sobre a donzela

3. a repetição dos versos da primeira estrofe na segunda estrofe e da terceira estrofe na quarta estrofe, com variação das palavras em posição de rima

3. a irmã

3. à preocupação da donzela com o estado do mar

[6. a) 3; b) 2; c) 1.]

TPC — Consulta o site Cantigas Medievais Galego-Portuguesas. Além disso, não esqueças a leitura, já pedida, do conto «Famílias desavindas», de Mário de Carvalho, nas pp. 163-165 do manual.

Para a aula de quinta-feira, dia 16-1-2025, traz o livro ou livros que tens lido conforme combinado. Ser-te-á pedido, então, que referencies o que leste até agora, bem como alguma aplicação (exercício, resposta, etc.) em volta do livro, ou livros, em causa.

 

 

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