Monday, September 06, 2021

Sonetos de Fernando Pessoa (para recitação)

Para juntar vinte oito sonetos de Pessoa (e Álvaro de Campos) socorri-me da tese de doutoramento de Carlos Pittella (Pequenos Infinitos em Pessoa. Uma aventura filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa, Rio de Janeiro, PUC, 2012), que aliás reuniu umas três centenas de sonetos, mas contando com todos os Pessoas e incluindo textos em inglês e em francês. Tive de selecionar os poemas sem lacunas ou sem dificuldades insuperadas de decifração; também quis escolher sonetos decassilábicos, para que todos ficassem em igualdade de circunstâncias (note-se que, por vezes, Pessoa parece deixar, em certos versos, uma sílaba a mais ou a menos...); e evitei os textos demasiado esotéricos.

Usei, em geral, as edições da INCM. Quando os sonetos tinham título, omiti-o (para não criar um elemento dissonante na disposição gráfica, embora, é claro, seja decisão erradíssima do ponto de vista da interpretação do texto). Incluí sonetos que fazem parte de séries mas que aqui surgirão autónomos (outro risco se o objetivo fosse interpretar devidamente cada texto). A única identificação, além do número, é a de «Fernando Pessoa» (para os textos ortónimos) ou «Álvaro de Campos» (para os poucos sonetos de Álvaro de Campos; Caeiro e Reis não assinam sonetos). A ordem foi a que calhou.

O soneto que cada um decorará é o que corresponde aos números da pauta (no 12.º 1.ª, de 1 a 28; no 12.º 3.ª, de 1 a 25). Creio que uma hora é suficiente para decorar um soneto. Depois, vai-se repetindo de vez em quando e aperfeiçoando a expressividade. Em aula, na sexta, dia 3, já não devem andar a consultar nervosamente a cábula. Eu levarei as folhas com os sonetos todos.

 

 

[1] Álvaro de Campos

 

Meu coração é um almirante louco

Que abandonou a profissão do mar

E que a vai relembrando pouco a pouco

Em casa a passear a passear...

 

No movimento (eu mesmo me desloco

Nesta cadeira, só de o imaginar)

O mar abandonado fica em foco

Nos músculos cansados de parar.

 

Há saudades nas pernas e nos braços.

Há saudades no cérebro por fora.

Há grandes raivas feitas de cansaços.

 

Mas — esta é boa! — era do coração

Que eu falava... e onde diabo estou eu agora

Com almirante em vez de sensação?...

 

 

[2] Álvaro de Campos

 

Quando olho para mim não me percebo.

Tenho tanto a mania de sentir

Que me extravio às vezes ao sair

Das próprias sensações que eu recebo.

 

O ar que respiro, este licor que bebo

Pertencem ao meu modo de existir,

E eu nunca sei como hei de concluir

As sensações que a meu pesar concebo.

 

Nem nunca, propriamente, reparei

Se na verdade sinto o que sinto. Eu

Serei tal qual pareço em mim? serei

 

Tal qual me julgo verdadeiramente?

Mesmo ante às sensações sou um pouco ateu,

Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

 

 

[3] Álvaro de Campos

 

A praça da Figueira de manhã,

Quando o dia é de sol (como acontece

Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,

Embora seja uma memória vã.

 

Há tanta coisa mais interessante

Que aquele lugar lógico e plebeu,

Mas amo aquilo, mesmo aqui... Sei eu

Porque o amo? Não importa nada. Adiante...

 

Isto de sensações só vale a pena

Se a gente se não põe a olhar p’ra elas.

Nenhuma d'elas em mim é serena...

 

De resto, nada em mim é certo e está

De acordo comigo próprio. As horas belas

São as dos outros, ou as que não há.

 

 

[4] Fernando Pessoa

 

Todo o passado me parece incrível.

Quem é a mim quem foi o que eu já fui?

Rio inconstante, sob meus olhos flui

Minha vida real e impossível.

 

Através de uma névoa eis-me insensível

Ao que vivi; e que já não se inclui

No que creio que sou, e sinto; e obstrui

Ver-me ver quem fui eu e hoje é invisível.

 

Cismo no que já fiz e me parece

Que incluo quem o fez mas não o sou.

Através da minha alma transparece

 

O que por mim viveu e se passou...

E um assombro de certo estremece

Em morto ser quem não ressuscitou.

 

 

[5] Álvaro de Campos

 

Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás de

Dizer aos meus amigos aí de Londres,

Embora não o sintas, que tu escondes

A grande dor da minha morte. Irás de

 

Londres p’ra York, onde nasceste (dizes —

Que eu nada que tu digas acredito...)

Contar àquele pobre rapazito

Que me deu tantas horas tão felizes

 

(Embora não o saibas) que morri.

Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,

Nada se importará. Depois vai dar

 

A notícia a essa estranha Cecily

Que acreditava que eu seria grande...

Raios partam a vida e quem lá ande!...

 

 

[6] Álvaro de Campos

 

Sou vil, sou reles, como toda a gente,

Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.

Quem diz que os tem é como eu, mas mente.

Quem diz que busca é porque não os tem.

 

É com a imaginação que eu amo o bem.

Meu baixo ser porém não mo consente.

Passo, fantasma do meu ser presente,

Ébrio, por intervalos, de um Além.

 

Como todos não creio no que creio.

Talvez possa morrer por esse ideal.

Mas, enquanto não morro, falo e leio.

 

Justificar-me? Sou quem todos são...

Modificar-me? Para meu igual?...

— Acaba lá com isso, ó coração!

 

 

[7] Álvaro de Campos

 

Deuses, forças, almas de ciência ou fé,

Eh! Tanta explicação que nada explica!

Estou sentado no cais, numa barrica,

E não compreendo mais do que de pé.

 

Porque o havia de compreender?

Pois sim, mas também porque o não havia?

Água do rio, correndo suja e fria,

Eu passo como tu, sem mais valer...

 

Ó universo, novelo emaranhado,

Que paciência de dedos de quem pensa

Em outra coisa te põe separado?

 

Deixa de ser novelo o que nos fica...

A que brincar? Ao amor, à indiferença?

Por mim, só me levanto da barrica.

 

 

[8] Álvaro de Campos

 

Corre, raio de rio, e leva ao mar

A minha indiferença subjetiva!

Qual «leva ao mar»! Tua presença esquiva

Que tem comigo e com o meu pensar?

 

Lesma de sorte! Vivo a cavalgar

A sombra de um jumento. A vida viva

Vive a dar nomes ao que não se activa,

Morre a pôr etiquetas ao grande ar...

 

Escancarado Furness, mais três dias

Te aturarei, pobre engenheiro preso

A sucessibilíssimas vistorias...

 

Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo

(E tu irás do mesmo modo que ias),

Qualquer, na gare, de cigarro aceso...

 

 

[9] Fernando Pessoa

 

Eu olho com saudade esse futuro

Em que serei mais novo que depois,

E essa saudade, com que me sinto dois,

Cerca-me como um mar ou como um muro.

 

Não descreio, nem creio; mas ignoro.

Estou posto onde se cruzam as estradas,

Multiplicando definidos nadas,

E no meio do jogo amuo e choro.

 

O presságio roeu os meus prenúncios.

Velei a esfinge com serapilheiras.

E os jardins dispostos em quincúncios

 

Dão sobre esteiras de mar morto e vago,

E um vapor de corda, sem bandeiras,

Para no tanque, que nos finge um lago.

 

 

[10] Fernando Pessoa

 

Não há verdade inteiramente falsa

Nem mentira de todo verdadeira.

O rio leva, na espumelhada esteira

Tudo o que esterilmente me realça...

 

Prazeres, talento, a perfeição consciente...

O tipo físico distante dos outros,

(E se eu deixar cair uma semente

No rio, os resultados serão neutros)...

 

Maravilha fatal de toda a verdade...

O homem que se interroga, e age por fora

E só regressa a casa se não piora...

 

No entanto, um bocado de saudade,

Uma maneira de um apego à hora

E uma reminiscência sem verdade

 

 

[11] Fernando Pessoa

 

Quem me roubou a minha dor antiga,

E só a vida me deixou por dor?

Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,

Me deixou só no fogo e no torpor?

 

Quem fez a fantasia minha amiga,

Negando o fruto e emurchecendo a flor?

Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga

A seu infiel e irreal sabor...

 

Quem me dispôs para o que não pudesse?

Quem me fadou para o que não conheço

Na teia do real que ninguém tece?

 

Quem me arrancou ao sonho que me odiava

E me deu só a vida em que me esqueço,

"Onde a minha saudade a cor se trava".

 

 

[12] Fernando Pessoa

 

Quem me roubou quem nunca fui e a vida?

Quem, de dentro de mim, é que a roubou?

Quem ao ser que conheço por quem sou

Me trouxe, em estratagemas de descida?

 

Onde me encontro nada me convida.

Onde me eu trouxe nada me chamou.

Desperto: este lugar em que me estou,

Se é abismo ou cume, onde estão vinda ou ida?

 

Quem, guiando por mim meus passos dados,

Entre sombras e muros que me deu

À súbita visão dos mudos fados?

 

Quem sou, que assim me caminhei sem eu,

Quem são, que assim me deram aos bocados

À reunião em que acordo e não sou meu?

 

 

[13] Fernando Pessoa

 

Depois que o som da terra, que é não tê-lo,

Passou, nuvem obscura, sobre o vale

E uma brisa afastando meu cabelo

Me diz que fale, ou me diz que cale,

 

A nova claridade veio, e o sol

Depois, ele mesmo, e tudo era verdade,

Mas quem me deu sentir e a sua prole?

Quem me vendeu nas hastas da vontade?

 

Nada. Uma nova obliquação da luz,

Interregno factício onde a erva esfria.

E o pensamento inútil se conduz

 

Até saber que nada vale ou pesa.

E não sei se isto me ensimesma ou alheia,

Nem sei se é alegria ou se é tristeza.

 

 

[14] Fernando Pessoa

 

Por mais que tente, não me desembrulho.

Há qualquer coisa de confuso em mim.

Lá pela confusão não dar barulho,

Não quer dizer que lhe não seja afim.

 

Na noite informe ao luar brilha o jardim.

O mar ao longe dorme o seu marulho.

Que quieto é tudo! Como até o orgulho

De poder ser alguém aqui tem fim!

 

Como nesta noturna quietação

Tudo se acalma e até se desconhece

No fundo ignoto do ermo coração.

 

Ah, com que quantidade tudo esquece!

Como tudo é silêncio e confusão

Onde só o som das árvores estremece!

 

 

[15] Fernando Pessoa

 

A criança que fui chora na estrada.

Deixei-a ali quando vim ser quem sou;

Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou.

 

Ah, como hei de encontrá-lo? Quem errou

A vinda tem a regressão errada.

Já não sei de onde vim nem onde estou.

De o não saber, minha alma está parada.

 

Se ao menos atingir neste lugar

Um alto monte, de onde possa enfim

O que esqueci, olhando-o, relembrar,

 

Na ausência, ao menos, saberei de mim,

E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar

Em mim um pouco de quando era assim.

 

 

[16] Fernando Pessoa

 

Sossego enfim. Meu coração deserto

Nada espera da inútil caravana.

Pouco a pouco meu espírito se irmana

Com ter perdido o próprio sonho incerto.

 

E sempre além de mim o indescoberto

Porto ao luar com que se o sonho engana.

De impercetível se descobre, plana

Parece a vida a este desacerto.

 

Estagno a lagos de algas por achar,

Sinto vazio o barco das amadas.

A noite despe não haver o luar

 

E como um filtro de poses encantadas

Tremem os rios, gelam as estradas

No absurdo vácuo de eu não ter que amar.

 

 

[17] Fernando Pessoa

 

Deixei de ser aquele que esperava,

Isto é, deixei de ser quem nunca fui...

Entre onda e onda a onda não se cava,

E tudo, em ser conjunto, dura e flui.

 

A seta treme, pois que, na ampla aljava,

O presente ao futuro cria e inclui.

Se os mares erguem sua fúria brava

É que a futura paz seu rastro obstrui.

 

Tudo depende do que não existe.

Por isso meu ser mudo se converte

Na própria semelhança, austero e triste.

 

Nada me explica. Nada me pertence.

E sobre tudo a lua alheia verte

A luz que tudo dissipa e nada vence.

 

 

[18] Fernando Pessoa

 

Meu coração é um pórtico partido

Dando excessivamente sobre o mar

Vejo em minha alma as velas vãs passar

E cada vela passa num sentido.

 

Um soslaio de sombras e ruído

Na transparente solidão do ar

Evoca estrelas sobre a noite estar

Em afastados céus o pórtico ido...

 

E em palmares de Antilhas entrevistas

Através de, com mãos eis apartados

Os sonhos, cortinados de ametistas,

 

Imperfeito o sabor de compensando

O grande espaço entre os troféus alçados

Ao centro do triunfo em ruído e bando...

 

 

[19] Fernando Pessoa

 

Dia a dia mudamos para quem

Amanhã não veremos. Hora a hora

Nosso diverso e sucessivo alguém

Desce uma vasta escadaria agora.

 

E uma multidão que desce, sem

Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.

Ah, que horrorosa semelhança têm!

São um múltiplo mesmo que se ignora.

 

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.

E a multidão engrossa, alheia a ver-me,

Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

 

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,

E, inúmero, prolixo, vou descendo

Até passar por todos e perder-me.

 

 

[20] Fernando Pessoa

 

Qualquer coisa de obscuro permanece

No centro do meu ser. Se me conheço,

E até onde, por fim mal, tropeço

No que de mim em mim de si se esquece.

 

Aranha absurda que uma teia tece

Feita de solidão e de começo

Fruste, meu ser anónimo confesso

Próprio e em mim mesmo a externa treva desce.

 

Mas, vinda dos vestígios da distância

Ninguém trouxe ao meu pálio por ter gente

Sob ele, um rasgo de saudade ou ânsia.

 

Remiu-se o pecador impenitente

À sombra e cisma. Teve a eterna infância,

Em que comigo forma um mesmo ente.

 

 

[21] Fernando Pessoa

 

Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,

Mas, quando despertei da confusão,

Vi que esta vida aqui e este universo

Não são mais claros do que os sonhos são.

 

Obscura luz paira onde estou converso

A esta realidade da ilusão.

Se fecho os olhos, sou de novo imerso

Naquelas sombras que há na escuridão.

 

Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,

É a mesma mistura de entresseres

Ou na noite, ou ao dia transferida.

 

Nada é real, nada em seus vãos moveres

Pertence a uma forma definida,

Rastro visto de coisa só ouvida.

 

 

[22] Fernando Pessoa

 

Se acaso, alheado até do que sonhei,

Me encontro neste mundo a sós comigo,

E, fiel ao que eu mesmo desprezei,

Meus passos falsos verdadeiros sigo,

 

Desperta em mim, contrário ao que esperei

Desta espécie de fuga, ou só abrigo,

Não o ajustar-me com a externa lei,

Mas o essa lei tomar como castigo.

 

Então, liberto já pela esperança

Deste mundo de formas e mudança,

Um pouco atinjo pela dor e a fé

 

Outro mundo, em que sonho e vida são

Num nada nulo, igual em escuridão,

E ao fim de tudo surge o Sol do que é.

 

 

[23] Fernando Pessoa

 

Sonhei — quem não sonhara? — porque a tarde

Baixou o azul do céu e já se via

Uma estrela pequena, sem alarde,

Ainda em dia a desmentir o dia.

 

Tudo quanto mal fiz ou não queria

Numa fogueira que não vejo arde,

Meu coração, que espera e não confia,

É como um poço aonde a água tarde.

 

Sonhei. Pois não havia de sonhar

Vendo ante mim este céu brando e o mar,

Ao longe um lago, parecer parado...

 

Sonhei... Não sei de quê, mas foi de um bem

Que não sei se era algum ou se era alguém

E que só conheci como ignorado.

 

 

[24] Álvaro de Campos

 

Há quanto tempo não escrevo um soneto

Mas não importa: escrevo este agora.

Sonetos são infância e, nesta hora,

A minha infância é só um ponto preto,

 

Que num imóbil e fatal trajeto

Do comboio que sou me deita fora.

E o soneto é como alguém que mora

Há dois dias em tudo que projeto.

 

Graças a Deus, ainda sei que há

Catorze linhas a cumprir iguais

Para a gente saber onde é que está...

 

Mas onde a gente está, ou eu, não sei...

Não quero saber mais de nada mais

E berdamerda para o que saberei.

 

 

[25] Fernando Pessoa

 

A minha vida é um barco abandonado,

Infiel, no ermo porto, ao seu destino.

Porque não ergue ferro e segue o atino

De navegar, casado com seu fado?

 

Ah, falta quem o lance ao mar, e alado

Torne seu vulto em velas, peregrino

Frescor de afastamento, no divino

Amplexo da manhã, puro e salgado.

 

Morto corpo da ação, sem a vontade

Que o viva, vulto estéril do viver,

Boiando à tona inútil da saudade -

 

Os limos esverdeiam tua quilha,

O vento embala-te sem te mover,

E é para além do mar a ansiada Ilha.

 

 

[26] Fernando Pessoa

 

No alto da tua sombra, a prumo sobre

A inconstância irreal de vida e dias,

Achei-me só e vi que as agonias

Da vida, o tédio as finda e a morte as cobre.

 

Ali, no alto de ser, sentir é nobre,

Despido de ilusões e de ironias.

Não sinto as mãos unidas, que estão frias,

Não sei de mim, o que fui era pobre.

 

Mas mesmo nessa altura de mistério

E abismo de ascensão, não encontrei

Paragem, conclusão ou refrigério.

 

Deixei atrás o acaso de viver,

O ser sempre outrem, a escondida lei,

Caos de existirmos, névoa de o saber.

 

 

[27] Fernando Pessoa

 

Súbita mão de algum fantasma oculto

Entre as dobras da noite e do meu sono

Sacode-me e eu acordo, e no abandono

Da noite não enxergo gesto ou vulto.

 

Mas um terror antigo, que insepulto

Trago no coração, como de um trono

Desce e se afirma meu senhor e dono

Sem ordem, sem meneio e sem insulto.

 

E eu sinto a minha vida de repente

Presa por uma corda de Inconsciente

A qualquer mão noturna que me guia.

 

Sinto que sou ninguém salvo uma sombra

De um vulto que não vejo e que me assombra,

E em nada existo como a treva fria.

 

 

[28] Fernando Pessoa

 

O silêncio é teu gémeo no Infinito.

Quem te conhece, sabe não buscar.

Morte visível, vens dessedentar

O vago mundo, o mundo estreito e aflito.

 

Se os teus abismos constelados fito,

Não sei quem sou ou qual o fim a dar

A tanta dor, a tanta ânsia par

Do sonho, e a tanto incerto em que medito.

 

Que vislumbre escondido de melhores

Dias ou horas no teu campo cabe?

Véu nupcial do fim de fins e dores.

 

Nem sei a angústia que vens consolar-me.

Deixa que eu durma, deixa que eu acabe

E que a luz nunca venha despertar-me!