Monday, September 06, 2021

Jorge Luís Borges, «Análise da obra de Herbert Quain»


Lê o conto de Jorge Luis Borges — com que O ano da morte de Ricardo Reis estabelece uma relação de intertextualidade — «Análise da obra de Herbert Quain» (na tradução brasileira: «Exame da obra de Herbert Quain»). Usei a edição da Teorema (tradução de José Colaço Barreiros). A transcrição de uma parte do conto, relativa a uma estrutura matemática, não a consegui fazer capazmente (assinalo-o entre chavetas no próprio texto). (No seguinte PDF de uma tradução brasileira da obra de Borges está boa essa transcrição: https://teoriadoespacourbano.files.wordpress.com/2013/02/borges-ficc3a7c3b5es.pdf — pp. 34-37.) Fica então a tradução do conto de Borges, aqui na variante europeia do português. No final, um vídeo educativo sobre Jorge Luis Borges. 

Análise da obra de Herbert Quain
Herbert Quain morreu em Roscomrnon; verifiquei sem espanto que o Suplemento Literário do Times mal lhe dedica meia coluna de piedade necrológica, em que não há epíteto laudatório que não esteja corrigido (ou seriamente admoestado) por um advérbio. O Spectator, no número a seu respeito, é sem dúvida menos lacónico e talvez até mais cordial, mas equipara o primeiro livro de Quain — The God of the Labyrinth — a um de Mrs. Agatha Christie e outros aos de Gertrude Stein: evocações que ninguém julgará inevitáveis e que não alegrariam o defunto. Este, aliás, nunca se julgou genial; nem sequer nas noites peripatéticas de conversação literária, em que o homem que já deu que fazer aos prelos brinca invariavelmente a ser Monsieur Teste ou o doutor Samuel Johnson... Apercebia-se com toda a lucidez da condição experimental dos seus livros: admiráveis talvez pelo novo e por certa lacónica probidade, mas não pelas virtudes da paixão. “Sou como as odes de Crowley”, escreveu-me de Longford a seis de Março de 1939. “Não pertenço à arte, mas à simples história da arte”. Para ele, não havia disciplina inferior à história.
Repeti uma modéstia de Herbert Quain; naturalmente, esta modéstia não esgota o seu pensamento. Flaubert e Henry James habituaram-nos a supor que as obras de arte são raras e de execução laboriosa; o século dezasseis (recordemos a Viagem do Parnaso, recordemos o destino de Shakespeare) não compartilhava desta desconsolada opinião. Herbert Quain também não. Achava que a boa literatura é muito comum e que quase não há diálogo de rua que não consiga sê-la. Também achava que o facto estético não pode prescindir de nenhum elemento de espanto e que é difícil espantar-se de cor. Deplorava com sorridente sinceridade a servil e obstinada conservação de livros pretéritos... Ignoro se a sua vaga teoria é justificável; sei que os seus livros anseiam demasiado pelo espanto.
Deploro ter emprestado a uma senhora, irreversivelmente, o primeiro que publicou. Já declarei que se trata de um romance policial: The God of the Labyrinth; posso agradecer que o editor tenha proposto a sua venda nos últimos dias de Novembro de 1933. Nos primeiros de Dezembro, as agradáveis e árduas involuções do Siamese Twin Mistery ocuparam Londres e Nova Iorque; eu prefiro atribuir a essa coincidência ruinosa o fracasso do romance do nosso amigo. E também (e vou ser totalmente sincero) à sua execução deficiente e à vã e frígida pompa de certas descrições do mar. Ao cabo de sete anos, é-me impossível recuperar os pormenores da ação; eis o seu plano; tal como agora o empobrece (tal como agora o purifica) o meu esquecimento. Há um indecifrável assassinato nas páginas iniciais, uma lenta discussão nas intermédias, e uma solução nas últimas. Já esclarecido o enigma, há um parágrafo longo e retrospetivo que contém esta frase: “Todos julgaram que o encontro dos dois jogadores de xadrez havia sido casual.” Esta frase dá a entender que a solução é errónea. O leitor, inquieto, relê os capítulos pertinentes e descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor deste livro singular é mais perspicaz que o detetive.
Ainda mais heterodoxo é o “romance regressivo e ramificado” April March, cuja terceira (e única) parte é de 1936. Ninguém, ao considerar este romance, se nega a descobrir que é um jogo; permitam-me recordar que o autor nunca o considerou outra coisa. “Eu reivindico para esta obra”, ouvi-o dizer, “os aspetos essenciais de todo o jogo: a simetria, as leis arbitrárias e o tédio”. Até o nome é um débil calembour: não significa “Marcha de Abril” mas sim, literalmente, “Abril Março”. Alguém sentiu nas suas páginas um eco das doutrinas de Dunne; o prólogo de Quain prefere evocar esse inverso mundo de Bradley, em que a morte antecede o nascimento e a cicatriz a ferida e a ferida o golpe (Appearance and Reality, 1897, página 215)1. Os mundos que propõe April March não são regressivos; regressiva é a maneira de historiá-los. Regressiva e ramificada, como já disse.
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1. {Nota no pé da página} Ai da erudição de Herbert Quain, ai da página 215 de um livro de 1897. Um interlocutor do Político, de Platão, já descreveu uma regressão parecida: a dos Filhos da Terra ou Autóctones que, submetidos à influência de uma rotação inversa do cosmos, passaram da velhice à maturidade, da maturidade à infância, e da infância à desaparição e ao nada. Também Teopompo na sua Filípica, fala de certos frutos boreais que originam em quem os come o mesmo processo retrógrado... Mais interessante é imaginar uma inversão do Tempo: um estado em que recordávamos o porvir e ignorávamos, ou só pressentíamos, o passado. Cf. o canto décimo do Inferno, versos 97-102, onde se comparam a visäo profética e o presbitismo.
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Integram a obra treze capítulos. O primeiro refere o ambíguo diálogo de uns desconhecidos numa gare de estação. O segundo refere os acontecimentos da véspera do primeiro. O terceiro, também retrógrado, refere os acontecimentos de outra possível véspera do primeiro; o quarto, os de outra. Cada uma destas três vésperas (que rigorosamente se excluem) ramifica-se noutras três vésperas, de índole muito diferente. A obra total consta, portanto, de nove novelas; cada novela, de três longos capítulos. Destas novelas, uma é de carácter simbólico; outra, sobrenatural; outra, policial; outra, psicológica; outra, comunista; outra, anticomunista, etc. Talvez um esquema ajude a compreender a estrutura.
x1 y1 x3 x4 x y2 x5 x6 x7 y3 x8 x9 {Não está bem transcrito este esquema}
Desta estrutura pode-se repetir o que declarou Schopenhauer das doze categorias kantianas: “sacrifica tudo a um furor simétrico”. Previsivelmente, um ou outro dos nove contos é indigno de Quain; o melhor não é o que ele ao princípio ideou, o x 4; é o de natureza fantástica, o x 9. Outros são estragados por graçolas lânguidas e por pseudoprecisões inúteis. Quem os ler por ordem cronológica (por exemplo: x 3, y 1, z) perde o sabor peculiar do estranho livro. Dois contos — o x 7 e o x 8 — carecem de valor individual; é a justaposição que lhes dá eficácia... Não sei se deva recordar que, já depois de publicado April March, Quain se arrependeu da ordem ternária e previu que os homens que o imitassem optariam pela binária
x1 y1 x2 z x3 y2 x4 {Não está bem transcrito este esquema}
e os demiurgos e os deuses pelo infinito: infinitas histórias, infinitamente ramificadas.
Muito diferente, mas retrospetiva também, é a comédia heroica em dois actos The Secret Mirror. Nas obras já resumidas, a complexidade formal tinha entorpecido a imaginação do autor; aqui, a sua evolução é mais livre. O primeiro ato (o mais extenso) passa-se na casa de campo do general Thrale, C.I.E., perto de Melton Mowbray. O invisível centro da trama é Miss Ulrica Thrale, filha mais velha do general. Através de algum diálogo adivinhamo-la amazona e altiva; suspeitamos que ela não costuma frequentar a literatura; os jornais anunciam o seu noivado com o duque de Rutland; os jornais desmentem o noivado. Venera-a um autor dramático, Wilfred Quarles; ela concedeu-lhe uma ou outra vez um beijo distraído. As personagens são de vasta fortuna e de antigo sangue; os afetos, nobres embora veementes; o diálogo parece hesitar entre a mera vaniloquência de Bulwer-Lytton e os epigramas de Wilde ou de Mr. Philip Guedalla. Há um rouxinol e uma noite; há um duelo secreto debaixo de um alpendre. (Quase totalmente impercetíveis, há uma ou outra curiosa contradição, há pormenores sórdidos.) As personagens do primeiro ato reaparecem no segundo — com outros nomes. O «autor dramático» Wilfred Quarles é um caixeiro-viajante de Liverpool; o seu verdadeiro nome, John William Quigley. Miss Thrale existe; Quigley nunca a viu, porém morbidamente colecciona fotografias suas do Tatler ou do Sketch. Quigley é autor do primeiro ato. A inverosímil ou improvável “casa de campo” é a pensão judaico-irlandesa em que vive, transformada e exaltada por ele... A trama dos atos é paralela, mas no segundo tudo é levemente horrível, tudo se adia ou se frustra. Quando The Secret Mirror se estreou, a crítica pronunciou os nomes de Freud e de Julien Green. A menção do primeiro parece-me absolutamente injustificada.
A fama divulgou que The Secret Mirror era uma comédia freudiana; esta interpretação propícia (e falaciosa) determinou o seu êxito. Infelizmente, Quain já tinha completado os quarenta anos; estava aclimatado ao fracasso e não se resignava com doçura a uma mudança de regime. Resolveu desforrar-se. Em fins de 1939 publicou Statements, porventura o mais original dos seus livros, sem dúvida o menos gabado e o mais secreto. Quain costumava argumentar que os leitores eram uma espécie já extinta. “Não há europeu (arrazoava ele) que não seja um escritor, em potência ou em ato”. Afirmava também que, das diversas felicidades que pode fornecer a literatura, a mais elevada era a invenção. Já que nem todos são capazes dessa felicidade, muitos terão de se contentar com simulacros. Foi para esses “escritores imperfeitos”, cujo nome é legião, que Quain redigiu os oito contos do livro Statements. Cada um deles prefigura ou promete um bom argumento, voluntariamente frustrado pelo autor. Uns — que não os melhores — insinuam dois argumentos. O leitor, distraído pela vaidade, crê tê-los inventado. Do terceiro, The Rose of Yesterday, cometi a ingenuidade de extrair “As ruínas circulares”, que é uma das narrativas do livro O jardim dos caminhos que se bifurcam.
1941

Jorge Luis Borges é um autor que lhes recomendo. Muitas vezes, como Pessoa, brinca «aos autores inventados», criando bibliografias, biografias, sinopses, etc., de escritores e livros que nunca existiram.