Monday, September 06, 2021

Aula 114R-114

Aula 114R-114 (23 [1.ª], 24/mar [3.ª]) Eis a parte B do Grupo I do exame do ano passado (1.ª fase). Quanto à parte A, os itens 1, 2 e 3 eram sobre um poema de Alberto Caeiro. Na parte C, o item 7 era uma exposição sobre «a emergência de uma consciência coletiva do povo português» em Fernão Lopes.

parte B

Leia os dois textos e as notas. Na resposta aos itens de 4. a 6., tenha em consideração ambos os textos.

O oficial era moço, talvez não tinha trinta anos; posto que o trato das armas, o rigor das estações, e o selo visível dos cuidados que trazia estampado no rosto, acentuassem já mais fortemente, em feições de homem feito, as que ainda devia arredondar a juventude.

A sua estatura era mediana, o corpo delgado, mas o peito largo e forte como precisa um coração de homem para pulsar livre; seu porte gentil e decidido de homem de guerra desenhava-se perfeitamente sob o espesso e largo sobretudo militar – espécie de great-coat1 inglês que a imitação das modas britânicas tinha tornado familiar nos nossos bivaques2. Trazia-o desabotoado e descaído para trás, porque a noite não era fria; e via-se por baixo elegantemente cingida ao corpo a fardeta parda dos caçadores, realçada de seus característicos alamares3 pretos e avivada de encarnado...

Uniforme tão militar, tão nacional, tão caro a nossas recordações – que essas gentes, prostituidoras de quanto havia nobre, popular e respeitado nesta terra, proscreveram4 do exército... por muito português de mais talvez! deram-lhe baixa para os beleguins5 da alfândega, reformaram-no em uniforme da bicha6!

Não pude resistir a esta reflexão: as amáveis leitoras me perdoem por interromper com ela o meu retrato.

Mas quando pinto, quando vou riscando e colorindo as minhas figuras, sou como aqueles pintores da Idade Média que entrelaçavam nos seus painéis dísticos de sentenças, fitas lavradas de moralidades e conceitos... talvez porque não sabiam dar aos gestos e atitudes expressão bastante para dizer por eles o que assim escreviam, e servia a pena de suplemento e ilustração ao pincel... Talvez: e talvez pelo mesmo motivo caio eu no mesmo defeito...

Será; mas em mim é irremediável, não sei pintar de outro modo.

Voltemos ao nosso retrato.

Os olhos pardos e não muito grandes, mas de uma luz e viveza imensa, denunciavam o talento, a mobilidade do espírito – talvez a irreflexão... mas também a nobre singeleza de um carácter franco, leal e generoso, fácil na ira, fácil no perdão, incapaz de se ofender de leve, mas impossível de esquecer uma injúria verdadeira.

Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, 2.ª ed., Lisboa, Portugália, 1963, pp. 148-149.

 

– Meu pai! Não meta este senhor em maiores trabalhos! – disse Mariana.

– Não tem dúvida, menina – atalhou Simão; – eu é que não quero meter ninguém em trabalhos. Com a minha desgraça, por maior que ela seja, hei de eu lutar sozinho.

João da Cruz, assumindo uma gravidade de que a sua figura raras vezes se enobrecia, disse:

– Senhor Simão, Vossa Senhoria não sabe nada do mundo. Não meta sozinho a cabeça aos trabalhos, que eles, como o outro que diz, quando pegam de ensarilhar um homem, não lhe deixam tomar fôlego. Eu sou um rústico; mas, a bem dizer, estou naquela daquele que dizia que o mal dos seus burrinhos o fizera alveitar7. Paixões, que as leve o diabo, e mais quem com elas engorda. Por causa de uma mulher, ainda que ela seja filha do rei, não se há de um homem botar a perder8. Mulheres há tantas como a praga, e são como as rãs do charco, que mergulha uma, e aparecem quatro à tona d’água. Um homem rico e fidalgo como Vossa Senhoria, onde quer, topa uma com um palmo de cara como se quer, e um dote de encher o olho. Deixe-a ir com Deus ou com a breca, que ela, se tiver de ser sua, à mão lhe há de vir dar, e tanto faz andar pra trás como pra diante, é ditado dos antigos. Olhe que isto não é medo, fidalgo; tome sentido, que João da Cruz sabe o que é pôr dois homens duma feita a olhar o sete-estrelo9, mas não sabe o que é medo. Se o senhor quer sair à estrada e tirar a tal pessoa ao pai, ao primo, e a um regimento, se for necessário, eu vou montar na égua, e daqui a três horas estou de volta com quatro homens, que são quatro dragões.

Simão fitara os olhos chamejantes nos do ferrador, e Mariana exclamara, ajuntando as mãos sobre o seio:

– Meu pai! não lhe dê esses conselhos!…

– Cala-te aí, rapariga! – disse mestre João. – Vai tirar o albardão10 à égua, amanta-a, e bota-lhe seco. Não és aqui chamada.

– Não vá aflita, senhora Mariana – disse Simão à moça, que se retirava amargurada. – Eu não aproveito alguns dos conselhos de seu pai. Ouço-o com boa vontade, porque sei que quer o meu bem; mas hei de fazer o que a honra e o coração me aconselhar.

Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, edição de Aníbal Pinto de Castro, Porto, Caixotim, 2006, pp. 194-195.

notaS

1 great-coat – espécie de sobretudo; casaco comprido. || 2 bivaques – modalidade de estacionamento de tropas em que estas se alojam em tendas de campanha ou abrigos improvisados. || 3 alamares – cordões metálicos que guarnecem, pela frente, uma peça de vestuário, de um lado ao outro da abotoadura. || 4 proscreveram – baniram; afastaram. || 5 beleguins – oficiais de justiça. || 6 uniforme da bicha – uniforme de aspirante a oficial. || 7 alveitar – referência a alguém cujo conhecimento assenta na experiência de vida; aquele que trata de doenças de animais, sem diploma legal. || 8 botar a perder – deitar a perder. || 9 sete-estrelo – grupo de estrelas na constelação das Plêiades; as estrelas. || 10 albardão – sela grande; assento grosseiro que se coloca no dorso da cavalgadura para a montar.

* 4. O «oficial» e Simão apresentam características que permitem defini-los como heróis românticos. Explique o modo como uma dessas características, comum a ambas as personagens, se manifesta em cada uma delas. Na sua resposta, comece por identificar a característica comum às personagens.

* 5. O narrador, num caso, e João da Cruz, no outro, exprimem opiniões sobre o que observam no mundo em que vivem. Explicite uma opinião defendida por cada um deles.

6. Selecione a opção de resposta adequada para completar as afirmações abaixo apresentadas.

Nos excertos transcritos, é possível identificar características das narrativas do Romantismo.

Por exemplo, no excerto de Viagens na Minha Terra, o narrador interrompe o retrato da personagem para introduzir reflexões. Terminadas essas reflexões, afirma «Voltemos ao nosso retrato.» (linha 25), expressão através da qual se dirige _______.

Por seu lado, no excerto de Amor de Perdição, é percetível a diferença de classe social das personagens, entre outros aspetos, através ______.

(A) às leitoras … do registo de língua usado por João da Cruz

(B) ao «oficial» … da altivez revelada por Simão

(C) às leitoras … da altivez revelada por Simão

(D) ao «oficial» … do registo de língua usado por João da Cruz

Vimos estes minutos de episódios de 1986:

https://www.rtp.pt/play/p4460/e599390/1986 (episódio 9: 3-3.40; 5.40-8)

https://www.rtp.pt/play/p4460/e599399/1986 (ep. 10: 3.20-11; 18.30-20.35)

https://www.rtp.pt/play/p4460/e599407/1986 (ep. 12: 32.10-33)

https://www.rtp.pt/play/p4460/e599408/1986 (ep. 13: 35.20-40)

1986 — Patrícia (e Sérgio)

Amor de Perdição — Mariana (e Simão)

Há mensagens de paixão não assumida

Por exemplo, os escritos nas ____ da então Escola Secundária de Benfica.

Por exemplo, o ____ de Mariana ao ver o sangue de Simão.

Outros, sem querer, adivinham a paixão escondida

Depois de assistir a uma discussão entre Sérgio e Patrícia, Tiago comenta: «Vocês parecem um casal de ______».

Depois de a filha desmaiar, João da Cruz assinala, brincando, a sua exagerada ______ perante a ferida de Simão.

Pais são adjuvantes

Pai de Sérgio, representado por Nuno Markl, transporta mesa depois de convencer direção da Escola Secundária de Benfica de que se tratava de expediente para, mais tarde, melhorar o mobiliário do importante _______ de ensino.

João da Cruz, ao valorizar a filha relativamente às «fidalgas», ao dar-lhe o encargo de apoiar o enfermo, favorece proximidade de Mariana e Simão. Além disso, depois de assassinado o ferrador, é a ______ que vai ajudar Mariana a consagrar-se ao apoio a Simão.

As apaixonadas são como irmãs ou colegas, dedicam-se ao seu amor sem exigir reciprocidade

Coleção de cromos, despiques sobre gostos musicais ou sobre o Jornal do Incrível mostram que Patrícia aceita desempenhar esse papel de simples colega, companheira dos lazeres, ainda que vão surgindo «arrufos de ______».

É o próprio Simão que trata Mariana por «minha irmã», ao mesmo tempo que descarta qualquer outro tipo de relação («Pudesse eu ser o ______ de sua filha», diz ele para João da Cruz).

As duas apaixonadas ajudam as rivais

Patrícia vai ouvindo os projetos de Sérgio relativamente à loira desconhecida, disfarçando a contrariedade, troçando dele mas colaborando nos seus planos (cujo conhecimento servirá o seu propósito). É _____ de Sérgio acerca dos seus anseios quanto à putativa amante.

Mariana apoia sempre Simão no amor por Teresa, por exemplo, levando e trazendo correspondência. O ciúme que sente não a leva a agir contra quem ama aquele que ela ama. É a _____ de Simão acerca do seu amor por Teresa.

Apaixonadas revelam tardiamente a sua paixão

Patrícia nada diz a Sérgio até ao dia das eleições; nessa altura aparece ela no encontro marcado, em vez da ______. Sérgio percebe finalmente os sentimentos de Patrícia, aceita a sua aproximação, parece esquecer a loira e acolhe bem a nova situação.

A partir de certa altura, Mariana assume que, mesmo sem ser a escolhida por Simão, quer estar sempre a seu lado. Simão percebe que ela o ama, quer ______ de alterar assim a vida por ele, mas nem por isso a impede de continuar a seu lado.

As apaixonadas acabam por ficar ao lado do seu herói

No dia das eleições e do encontro crucial, Patrícia cumpre o desejo de ______ Sérgio. O elemento masculino do par parece acomodar-se à situação sem mostrar demasiada surpresa.

No dia do lançamento do cadáver ao mar, Mariana cumpre o desejo de não _______ Simão. O elemento masculino do par parece acomodar-se à situação sem mostrar demasiada surpresa.

E, afinal, qual é o verdadeiro par romântico (no sentido de par de «heróis românticos») de 1986? Quem luta contra o que esperam deles, enfrentando o senso comum? Quem tem preocupações com a liberdade, a sua e a dos outros? Quem quebra barreiras sociais (ou, neste caso, de papel profissional)?

É o par{escolhe, circundando:} Marta-Tiago, Patrícia-Sérgio, Mariana-Gonçalo, Eduardo-Alice.

 

 

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